Entre 1970 e 80 a população carcerária dos Estados Unidos quase dobrou e a mídia reforçava o racismo no cidadão branco e estimulava o medo dele do negro.
Léa Maria Aarão Reis*
http://cartamaior.com.br/
Este é o (malicioso) texto da décima terceira emenda acrescentada à Constituição americana, abolindo a escravidão no país e promulgada em 1865, o documento seminal da fundação de um estado livre, copiada e celebrada pelo mundo ocidental como exemplo, guia e norte de nação democrática: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.”
O impacto causado pela brecha na lei que regulamenta essa emenda na vida dos afro-americanos até os dias de hoje é o eixo central de um devastador documentário - o 13th. Ele focaliza a evolução do sistema da justiça criminal americano, o complexo prisional do país com dezenas de unidades privatizadas a partir do governo Clinton, o encarceramento em massa praticado – visando e servindo mais ao lucro e menos à justiça - e, sempre, o reforço e a renovação incansável do mito da criminalidade dos negros.
O corajoso filme concorreu ao Oscar deste ano com o título em português de A 13ª Emenda (13th), foi produzido pela Netflix**, em 2016 e dirigido pela cineasta Ava Marie DuVernay, afro americana de 45 anos, nascida na Califórnia, ex-publicitária e autora de outro excelente filme, Selma: uma luta pela igualdade, sobre a marcha histórica liderada por Martin Luther King e seus companheiros.
O complexo industrial prisional americano é o herdeiro da escravidão”, resume a ativista Angela Davis, numa das inúmeras entrevistas apresentadas em 13th onde é mostrado como a cidadania continua negada aos afro-americanos na ‘’terra da liberdade’’. Sociedade com polícia que se destaca pela brutalidade com que castiga os negros jovens e pobres, seus alvos preferenciais, país onde prisões desumanas (detentos depositados em celas sem janelas aguardam julgamento durante 14 anos enquanto se encontram ‘’sob supervisão’’ da justiça) e onde 96% dos promotores em exercício são brancos.
O processo do encarceramento em massa, porém, sinalizou o risco de sair do controle há poucas décadas, por ser dispendioso demais ao estado. Na era Clinton, o sistema penitenciário americano foi colocado sobre o balcão de negócios neoliberal capitalista - ele funciona 24 horas; não fecha nunca – para se converter em mais um produto rentável com a privatização de dezenas de unidades prisionais.
As empresas proprietárias das cadeias - uma das maiores é a CCA, líder da indústria das prisões privadas que atualmente se dedica a implantar monitoramento de presos em condicional através de GPS - contam com subsídio do estado cujo valor depende do número de corpos recebidos. O negócio se tornou investimento formidável também para centenas de empresas de serviços para detentos (alimentos, telefonia, por exemplo) e oferece também força de trabalho semi escravo, pago a preço vil, a diversas corporações cujos produtos são fabricados pelos detentos. Victoria Secret, Boeing, J. Penney são algumas delas.
No filme, fica-se sabendo que as prisões privatizadas ganham do governo uma diária de 200 dólares por cada detento que recebe. Este, por sua vez, ganha um dólar por dia de trabalho compulsório, forçado, e paga uma tarifa de cinco dólares por minuto em ligação telefônica que porventura necessite ou deseje fazer para a família de dentro da cadeia.
Negócio não mais ‘’da China’’, como se exclamavam todos, com admiração. Negócio genuinamente americano.
No seu início, o doc chama a atenção para o clássico O nascimento de uma nação, filme de David Griffith, de 1915, no qual é enfatizada a supremacia branca, de modo sutil, e romantizada uma Ku Klux Klan punindo estupros de mulheres brancas por negros. Esta produção, na época, foi exibida em sessão especial na Casa Branca, no governo de Woodrow Wilson. Nove anos depois, a popularidade da organização era tal que na convenção do Partido Democrata de 1924 350 delegados tinham a sigla da KKK tatuada no peito.
Com o fim da escravidão, a pergunta era esta: o que fazer com os quatro milhões de negros alforriados que faziam parte ativa do sistema econômico do país? O que fazer com essa formidável força de trabalho gratuita?
Os negros começaram a ser presos por motivos fúteis. Vadiagem, porte de pequenas quantidades de maconha. (E atenção: lá e aqui, neste nosso Brasil/Colônia atual, a mesma manobra sórdida prevalece.) Os negros eram presos sem provas. Por convicção dos seus crimes. E por presunção de culpa.
Na sua época, Nixon afiou o discurso racista hoje anabolizado por Trump, invocando ‘’a ‘’lei e a ordem’’ para submeter os ‘’superpredadores’’ mencionados por sinal por Hillary Clinton em um discurso de campanha. Na agenda do atual presidente, Trump chegava a pedir a pena de morte para menores infratores. Negros, é óbvio.
“Na verdade, a guerra total contra as drogas,” ressalta Angela Davis no filme, ”foi uma guerra contra as comunidades negras.’’ Enquanto a cocaína corria solta nos subúrbios ricos, o crack invadia as comunidades de afro-americanos. Era 1982 e Nixon oficializava a guerra ‘’total’’ contra as drogas.
Entre 1970 e 80 a população carcerária dos Estados Unidos quase dobrou e a mídia reforçava o racismo no cidadão branco e estimulava o medo dele do negro. Estuprador, consumidor de droga, batedor de carteira, vagabundo. Hoje, nos bairros populares, os assassinatos nas ruas, por policiais, se sucedem e os agentes ‘’da lei e da ordem’’ em geral não são punidos.
‘’A presunção de culpa é privilégio dos afro-americanos,’’ conclui o filme. E relembra que a brutalidade da polícia sempre motivou os protestos que no fim das contas são históricos. São o produto de um processo da História americana.’’
Como enfrentar então essa brutal questão do encarceramento em massa, da escandalosa seletividade das forças urbanas de segurança que têm como alvo preferencial os mais pobres e os negros, e em face de uma justiça exclusivista, no mínimo comodista e de juízes ideologizados?
As sociedades tendem esconder sob o tapete esses temas que incomodam. Escandalizam-se em momentos espasmódicos: nos episódios de rebeliões com degolas de prisioneiros, suicídios nas cadeias ou na volta à liberdade depois de prolongadas detenções concluídas com o reconhecimento de inocência, prisões arbitrárias, perseguições seguidas de assassinatos, nas ruas, por forças que deveriam garantir a... segurança.
Convém assistir ao filme A 13a Emenda com olhos e ouvidos espertos. O jornalista Tomás Chiaverini, do The Intercept Brasil, publicou dados relevantes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de junho de 2014, no Brasil. Não levam em conta, portanto, os mais de cem mortos em massacres recentes nas nossas penitenciárias. Ele escreve:
“A chance de um detento ser morto atrás das grades é cerca de seis vezes maior do que a de um cidadão comum ser assassinado do lado de fora. O levantamento mostra que, à época, a população carcerária brasileira somava cerca de 608 mil pessoas, quase o dobro das 378 mil vagas disponíveis. Que entre os anos de 2008 e 2014, a quantidade de detentos aumentou 33%.’’ (Grifo nosso). (...) ”A maioria dos encarcerados (67%) era da raça negra e quase a metade deles (41%) estava atrás das grades sem ter passado por julgamento.’’
O pretexto é sedutor para mais uma mega privatização do setor, no país. O tema já se insinua e procede: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil de hoje. Um viva para os escravos de Tio Sam.
*Jornalista
** Filme disponível na Netflix em versão original ou dublada.
Créditos da foto: reprodução
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