Mauro Lopes
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O culto ao Deus-dinheiro oficializado nas cédulas no Brasil e EUA
O filósofo italiano Giorgio Agamben, um dos relevantes protagonistas do pensamento crítico na virada do século XX para o XXI disse numa entrevista em 2012 que “Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro” (aqui). A afirmação de Agamben inspirou-se em outro filósofo, este um protagonista da primeira metade do século XX, um pensador fora da curva, Walter Benjamin. Em seu curto e denso “O Capitalismo como Religião”, de 1921 (aqui), Benjamin escreveu que o capitalismo é em si mesmo a religião mais implacável que já existiu, e promove um culto ininterrupto ao Dinheiro, “sem trégua nem piedade”, uma religião que não visa a reforma da pessoa, “mas seu o seu esfacelamento”.[1]
O filósofo alemão sugeriu uma comparação entre as imagens dos santos das religiões e as cédulas de dinheiro de diversos países –ele não imaginava, à época, que este Deus-dinheiro estaria diretamente louvado nas cédulas nos EUA (In God we Trust, em Deus Confiamos) e, desde 1980, no Brasil, onde lê-se em todas as notas a frase de adoração à moeda corrente: Deus seja louvado.
Ambos inspiraram-se num dito de Jesus, que está no centro da liturgia católica do 8º Domingo do Tempo Comum (26), às portas do período quaresmal que antecede a Semana Santa e a Páscoa: “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.” O texto proclamado é do Evangelho de Mateus (Mt 6,24-34). A oposição entre Deus e o dinheiro é um tema central ao longo da história e, para Jesus, a relação de cada qual com o dinheiro é definidora de sua relação com as outras pessoas e a vida.
Como essa questão aparece na vida das pessoas? A psicanálise procurou investigar a relação entre o ser humano e o dinheiro e chegou a conclusões que podem soar surpreendentes e inacreditáveis num primeiro momento. Como apontou o sacerdote jesuíta e teólogo espanhol Carlos Domingues Morano, dinheiro é um assunto crucial, apesar de muitas vezes escamoteado -como o sexo. Na verdade, o tema nunca é “só dinheiro”. As relações entre os homens/mulheres com o dinheiro comportam dimensões nem sempre lógicas, que extrapolam o discurso racional mais ou menos organizado –é sempre “algo mais” que dinheiro.[2] Na relação das pessoas com o dinheiro, revelou-nos a psicanálise, “está também implicada uma ‘questão de amor’; dito em termos mais freudianos, uma questão de ordem libidinal, inconsciente e com raízes na infância. Isso nos permite compreender, entre outras coisas, porque, assim como ocorre com a sexualidade, o dinheiro provoca tantas reações de dissimulação, falso pudor e hipocrisia.”[3]
Há uma questão oculta que Freud trouxe à tona –e causou enorme mal-estar: a intimidade entre nossa relação o dinheiro e a fase da libido anal, relacionando-o com os excrementos.
O valor nodal do dinheiro para os adultos é, descobriu Freud, análogo ao altíssimo valor que os excrementos possuem para as crianças. Outro psicanalista, Sandor Ferenczi, do grupo de Freud, demonstrou o caminho passo a passo pelo qual a criança efetua a sublimação do conteúdo anal até chegar, finalmente, à transmutação simbólica em dinheiro. “A matéria fecal vai passando por uma série de substituições, nas quais vai progressivamente distorcendo a primitiva satisfação auto erótica relacionada com a defecação: o barro, a areia, a pedra, o jogo com bolinhas de gude e botões todos objetos que proporcionam tanta satisfação à criança que facilitam a substituição do fétido, duro, mole pelo inodoro, seco duro.”[4] O dinheiro ingressa nessa cadeia de sublimações por um caminho complexo até desvincular-se de toda a aparência com sua “fonte original” e permitir o surgimento da máxima de que o dinheiro não fede (pecunia non olet).
A relação entre as fezes e o dinheiro pode parecer um absurdo num primeiro momento. Mas, se observamos com mente aberta, veremos que são abundantes e recorrentes as imagens e símbolos que desnudaram ao longo da história relação que os homens estabelecem entre as fezes e o ouro ou o dinheiro. Uma delas é a figura do “cagador de ducados” que está representada nos portais de bancos alemães. São inúmeras as expressões populares que consagram esta associação sem que nos demos conta disso. Quando uma pessoa tem muito dinheiro dizemos que está “podre de rica”; se o dinheiro tem origem suspeita, falamos em “dinheiro sujo” e, ao contrário, se a pessoa está sem dinheiro, dizemos que está “limpa”; ou que está “apertada”.
O “cagador de ducados”, figura frequente nos portais dos bancos alemães
Esta relação foi capturada mais de mil anos antes de Freud numa intuição genial do bispo Basílio de Cesareia, em meados do século IV. São Basílio decretou: o dinheiro é o cocô do diabo. A expressão foi deixada de lado pelos cristãos séculos a fio até que São Francisco, no século XII, mencionou Basílio; agora, ela foi novamente posta á luz pelo Papa Francisco em fevereiro de 2015, apesar de ele preferir a palavra “esterco”, talvez menos crua. Clique e veja o vídeo em que o Papa menciona a expressão de Basílio (Francisco trata do assunto entre 1min50 e 2min30).
Como se dá esta articulação dinheiro-fezes? A psicanálise explorou as relações entre as dinâmicas de possessão, características da fase anal, e de propriedade, fundante da civilização ocidental e especialmente do capitalismo.
Quando uma criança perde suas fezes sente a dor de ter deixado escapar algo que lhe era tão essencial que estava dentro de si, era parte de seu corpo, mas que não mais consegue por de volta; isto é a possessão. A propriedade refere-se a objetos externos, mas que deveriam me pertencer, “coisas que de fato estão fora, mas simbolicamente estão dentro”. São objetos revestidos de “qualidade do eu”. Para muitas pessoas, talvez a imensa maioria no capitalismo, o dinheiro reveste-se desta qualidade do eu. Isso origina processos intensos de defesa e projeção. Perder dinheiro para essas pessoas é muito mais que perda de algo externo, exterior, “mas sim de algo que foi previamente in-corporado”, ou seja, algo que se tornou parte de mim. A posse e controle do dinheiro têm o mesmo papel que o controle da atividade defecatória para a criança diante do mundo exterior. Uma “relação regressiva com o dinheiro ou com a propriedade de objetos” fica impregnada pela dimensão possessiva (retentiva) da fase anal.[5]
O resultado é avassalador: o amor ao dinheiro, quando extravasa suas funções de adaptação à realidade, acaba expressando uma dimensão infantil da afetividade, o que implica uma dominância do narcisismo, um desenvolvimento truncado da afetividade (da relação com o outro, da capacidade de amar e/ou odiar) e do autorrespeito e respeito pelo outro.[6] Esta infantilização narcísica dos ricos ou, dos “novos ricos”, numa expressão recorrentes de Basílio, é facilmente verificável na convivência com eles e espalha-se em ondas pela indústria do entretenimento, especialmente o cinema feito para o grande público.
Ter e reter dinheiro são tentativas continuadas de encobrir as carências internas e conquistar segurança. Lembro-me de uma conversa com um consultor de investimentos sobre um casal, cliente do banco em que ele trabalhava. Eles haviam feito uma série de contas em planilhas (como se a vida pudesse ser contida em planilhas Excel) e concluído que quando tivessem R$ 20 milhões em aplicações financeiras (excluídos bens como casa e carros) poderiam finalmente “desestressar” e olhar com tranquilidade para a vida. Esta posição remetia-os a frequentes crises de insegurança e angústia extrema, pois como escreveu Erich Fromm, “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?”[7]
Ou, expressando Fromm de maneira complementar: se sou o que tenho e nunca tenho o que considero suficiente, sempre haverá uma “insuficiência de mim” que precisa ser coberta e recoberta com necessidade de acúmulo cada vez maior enquanto o fosso da insegurança aprofunda-se, na medida em que a possibilidade apavorante da perda de dinheiro para outro é um fantasma permanente. É uma vida em estado de guerra permanente para defender o que é “meu” contra aquele que deseja apropriar-se, podendo ser desde um competidor, políticas públicas de um governo que deixam de favorecer o crescimento de minha fortuna, os pobres que se mobilizam para tomar dinheiro do governo que a mim pertence “de direito”. Pois o capitalismo garante: tenho direito a possuir tudo e tudo reter para mim, sem limites.
Sim, o capitalismo é, numa linguagem popular, o encontro da fome com a vontade de comer. Nele, esta condição pulsional presente na vida de cada ser humano é organizada como um sistema social que alcançou, na expressão de Benjamin, a dimensão suprema de um culto organizado e sistemático. O psicanalista austríaco Otto Fenichel demonstrou como, antes de tudo, a função real do dinheiro numa sociedade determina o alcance e a intensidade das tendências pulsionais de retenção. Tais processos acontecem em sociedades determinadas com estruturas econômicas, sociais e culturais determinadas, com uma Igreja determinada e, portanto, alcançam dimensões que, levando em conta as escolhas e histórias individuais, situam-nas num contexto geográfico-temporal preciso.
Portanto, a “mobilização para a guerra” que garanta a cada indivíduo o seu “direito supremo à retenção” é o mantra do capitalismo e “mobiliza a hostilidade como tendência a despojar o outro, de modo a fazer com que o desejo de fraudar, explorar e frustrar os outros acabe se convertendo numa autêntica norma cultural.”[8] Essa hostilidade torna-se a base relacional que se reproduz em todas as relações, mesmo as mais íntimas: assim, por exemplo, o encontro com o outro ou a outra para a vida amorosa e o casamento converte-se numa série de cálculos e contratos e precauções para a possibilidade futura de separação e rompimento.
A dissonância absoluta entre o amor pelo dinheiro e o amor a Deus proclamada por Jesus e como ela atinge dimensões dramáticas no interior de um sistema que no qual o dinheiro ocupa o lugar de Deus. Trata-se de uma incompatibilidade radical, apesar de todos os esforços dos rigoristas e integristas católicos, dos neopentecostais e outros cristãos para amenizar as palavras de Jesus e relativizá-las: “Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão e a misericórdia e ao mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar o tomar tudo para si, a acumulação que é a base de toda a injustiça e de todo o desamor: fome, guerra, exploração, morte etc.”[9]
É o que tem feito seguidamente o Papa Francisco. Uma das marcas de seu pontificado é a denúncia da submissão ao Deus-dinheiro. A primeira vez em que explicitou sua postura foi dois meses depois de sua posse. Em maio de 2013, ele afirmou, num discurso que indicou a revolução nascente no Vaticano, que no capitalismo “criamos novos ídolos; a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e impiedosa imagem no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem rosto nem propósito verdadeiramente humanos” e que a base deste culto ao Deus-dinheiro está “na relação que temos com o dinheiro, em aceitar o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades”. Três anos depois, numa entrevista, em agosto de 2016, o Papa acentuou: “No centro da economia mundial está o deus Dinheiro, e não a pessoa, o homem e a mulher”. Na mensagem para a Quaresma de 2017, período que se abre com a Quarta-feira de Cinzas Francisco foi taxativo: “A ganância do dinheiro é a raiz de todos os males”.
Se para os cristãos, o amor não é apenas um preceito, mas é o conteúdo sobre o qual o cristianismo está edificado, se é a “pedra angular”, o apego ao dinheiro, fonte de desamor, não se restringe a um problema ético, mas é um ataque direto à fé. A fidelidade a Deus fica interditada para aquele que não realiza a escolha por Ele e, por caminhos explícitos ou cheios de sombras e ilusões e autoengano, opta pela adoração à coisa: o dinheiro.
Por isso as religiões estão profundamente abaladas em seu fundamento na contemporaneidade e, muitas delas, ou tendências poderosas em seu interior, como no caso da Igreja Católica, realizam explicita ou implicitamente operações de substituição de um culto pelo outro, colocando o dinheiro no lugar de Deus. Tornam-se promotoras da tendência pulsional identificada por Jesus e estudada à profundidade pela psicanálise e igrejas-sucursais da “religião oficial”: o capitalismo.
[por Mauro Lopes]
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[1] Benjamin, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial, 2013, p. 22
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.233
[3] Ibid. Morano, 2003, p. 234
[4] Ibid. Morano, 2003, p. 236
[5] Ibid. Morano, 2003, p. 239
[6] Ibid. Morano, 2003, p. 240
[7] In Morano, 2003, op cit., p. 240
[8] Ibid. Morano, 2003, p. 243
[9] Ibid. Morano, 2003, p. 246
Que dia o blogueiro volta para trazer outros textos fantásticos,para suscitarem novas reflexões?Já estão fazendo falta.
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