quarta-feira, 8 de março de 2017

Entender que o Direito é estrutura que privilegia homens é um passo para se compreender

  Foto: Reprodução da Internet

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Apesar de ser de 1827 o Decreto que cria as duas primeiras Faculdades de Direito do Brasil, a primeira advogada a ter autorização para atuar no Brasil foi Myrthes Gomes de Campos, em 1906. Graduada pela UFRJ em 1898, requereu insistentemente sua inscrição no Instituto dos Advogados do Brasil desde 1899, tendo sido por sete anos impedida de exercer a profissão. Em sua primeira atuação em um Tribunal do Júri, consta-se que mais de 500 pessoas disputaram espaço para assistir ao espetáculo da mulher que se dirige ao plenário com autoridade. O caso saiu na imprensa e teve grande repercussão. 

Há apenas 63 anos as mulheres passaram a ser admitidas na magistratura: Thereza Grisólia Tang foi a primeira juíza nomeada no Brasil, em 1954. Enfrentando a barreira do machismo, conta-se que um primo pagou por seus estudos escondido, enquanto seus pais queriam que seguisse uma carreira mais feminina, como a de professora secundária.

Precisamos esperar até o ano 2000 para que uma mulher ocupasse o cargo de Ministra do Supremo Tribunal Federal. Quando da posse de Ellen Gracie, foi necessária a construção de um banheiro feminino próximo ao plenário, já que, há apenas 17 anos, foi necessária uma reforma no prédio do STF para que uma mulher pudesse ocupar uma de suas cadeiras. 

Quanto entrei no curso de direito, sentia que ali não era meu lugar, mas não conseguia compreender o porquê. Interessava-me pela organização do Estado, pelas leis, seus poderes, deveres e impedimentos, pela atuação judiciária e mesmo pelos fait divers da animada atuação legislativa brasileira. Mesmo assim, na faculdade, no estágio, no fórum e nos debates da sala de aula, meu corpo se sentia deslocado.

Entender que o incômodo é gerado por uma estrutura, e não por uma inadequação pessoal ou por uma conformação de personalidade, me tomou muitos anos. De certa forma, a falta de referências femininas é tão presente que quase cega.

Foi preciso compreender que o Direito, enquanto performance que exige do profissional a pura racionalidade, objetividade seca, segurança quanto ao que acredita a despeito de qualquer argumentação contrária, e a desenvoltura de estapear o adversário com sua opinião sem misericórdia, é extremamente masculino. Qualquer mulher que procure se desenvolver na área, terá que ultrapassar seus condicionamentos educacionais, as pressões sociais e a própria constituição física, em vários momentos.

Só pra começar, a função social feminina é exatamente o oposto disso. Enquanto mulheres, somos ensinadas a desenvolver o feminino, que é o polo da subjetividade, da emoção, do cuidado e da abnegação pelo próximo. Se foi valorada como inferior pela história, foi por puro exercício egoísta do poder masculino, já que se a humanidade fosse composta unicamente pelas características do polo “racional”, já teria sucumbido, incapaz de se reproduzir e manter uma mínima harmonia necessária ao desenvolvimento.

Ademais, não bastasse sair de largada pouco estimulada no que se refere à disputa e acúmulo de poder individual, a mulher também sofre a pressão social contínua em sua vida, sendo diariamente empurrada para os espaços privados e para as funções de cuidado: esposa, mãe, secretária. Costuma-se tratar isso como coisa do passado, como se esse gargalo tivesse sido atravessado, mas é extremamente atual o conflito da mulher entre ser uma boa profissional e ter uma vida social e familiar realizada, já que cada um dos caminhos demanda uma performance muito distinta: ou agressiva e individualista, como um homem, ou maternal e atenciosa, como uma boa mulher. Não incomum a mulher terá de optar entre ser bem sucedida ou ser querida pela família e amigos. 

Por fim e não menos cruel, nosso próprio corpo nos coloca para trás. Nossa forma física é motivo de descrédito. Se fora dos padrões, somos motivo de risos e nosso trabalho é desvalorizado. Se dentro dos padrões, somos sexualizadas e nosso trabalho é desvalorizado. Nossa voz parece não ter autoridade suficiente, e quantas de nós já não desejou ter escolhido outra roupa para nos sentir mais confiantes em algum momento entre atender cliente, tratar com chefe, lidar com juiz ou caminhar até o fórum?

Claro que, a despeito de tudo, existem muitas mulheres bem sucedidas, grandiosas e talentosas, que não deixam os fluxos contrários frearem a luta. A criatividade e a capacidade de resistência das mulheres que, a despeito da pressão diária, encontram mil caminhos alternativos por estarem marginalizadas da estrada tradicional, e desenvolvem, a despeito de privadas de tantas ferramentas, as próprias formas de fazer as coisas e chegar lá. E é essa saída alternativa. É o motor que altera o rumo dessa história de silenciamento.

É que, a bem da verdade, a gente aprende bem cedo que não basta que as mulheres “cheguem em postos mais altos de trabalho”, ou “atinjam espaços até então só ocupados por homens”. Isso nós faremos sem dúvida, já estamos fazendo. Mas não mimetizando o modo masculino de performance. Primeiro, porque é um caminho muito mais longo, e destrutivo internamente, o da masculinização de nossa personalidade; segundo, e mais importante, porque agir orientadas pelo polo masculino significa reproduzir um tipo cuja saturação tem feito da nossa uma sociedade destrutiva, na qual não nos encaixamos e, principalmente, não acreditamos.

Muito mais do que com sua mera presença, as mulheres têm a contribuir com sua concepção de mundo, com uma forma distinta de pensar, e com toda uma bagagem de concepções e avanços desenvolvidos pela sociedade que ficaram escondidos junto com elas nos espaços privados do mundo. A entrada não só das mulheres, mas do feminino, mas instâncias de decisão, é necessária para ambos homens e mulheres, tendo em vista a necessidade de equilibrar e reestruturas nossas instituições e relações sociais que, convenhamos, andam bem sofridas.

O trabalho é lento e cotidiano, mas as datas são importantes para marcar ciclos. Para esse 8 de março, compartilho essa minha sensação de que a divisão igualitária do trabalho entre homens e mulheres não é uma necessidade de reparação histórica para com as mulheres do passado, ou uma medida de justiça para as do futuro, e sim uma urgência para que possamos reencontrar o caminho de desenvolvimento da nossa sociedade. Não queremos que os espaços nos sejam dados, enquanto nos é esperado um comportamento masculino. Queremos alcançar mais longe, levando conosco a outra metade do mundo.

Alguém duvida que tem algo faltando?
Tainã Góis é membra da Rede Feminista de Juristas, advogada e mestranda pela Faculdade de Direito da USP.

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