segunda-feira, 20 de março de 2017

MISSIONÁRIOS NA POLÍTICA - Neopentecostais e o Projeto de Poder

A luta pela pauta moral intensificou nos evangélicos a consciência, ou inclinação, para a construção de um Estado cristão e para uma possível hegemonia amparada pelo crescimento sistêmico e exponencial de sua Igreja no país. Não poucos líderes começaram a vislumbrar a possibilidade, e a necessidade, desse Estado evangélico


por: Ariovaldo Ramos e Nilza Valéria Zacarias
diplomatique.org.br/

     Crédito da Imagem: Valter Campanato
Evangélicos protestam em frente ao Congresso Nacional

Com outros pastores e pregadores da Palavra de Deus, fui convidado a falar em uma grande igreja. Pregamos pela manhã e, na hora do almoço, fomos recebidos no refeitório pastoral, para almoçarmos juntos. Para minha surpresa, o líder daquela denominação, junto com todos nós, e na frente de todos, começou a delimitar quantos votos cada pastor ali presente deveria angariar para uma candidata a vereadora que também estava no almoço, com o esposo – que era deputado estadual –, para que fosse eleita em nome da Igreja.
Sem nenhum pudor, o líder da Igreja se dirigia aos pastores de sua denominação, de acordo com o tamanho da igreja, estabelecendo o número de votos que deveriam conquistar para haver êxito na eleição daquela senhora. Assisti àquela situação com certo estarrecimento. Mas, aos poucos, fui me dando conta de que estava olhando para uma nova realidade: a Igreja evangélica começava a pensar como um dos elementos constitutivos do poder.

Naquele almoço percebi que as eleições deixavam de ser um embate entre cidadãos para se tornarem um confronto entre instituições de toda ordem, e a Igreja estava se colocando como uma dessas instituições, em luta pelo controle do poder. Em outra cena, em reunião promovida por uma autodenominada rede de apóstolos, uma nova casta da liderança evangélica surgida no bojo de uma das variantes mais místicas da fé pentecostal e neopentecostal trava a batalha espiritual que acredita que o maligno se incrusta em instituições e que destas deve ser desalojado; e que isso se faz por meio da mística e da tomada consciente do poder político. Ouvi um deputado federal alegar que a defesa do direito da Igreja ao poder era a máxima de seu mandato.



O começo

Manoel de Mello era um homem simples, sem educação formal, que aprendeu a ler e escrever. Oriundo da Assembleia de Deus, nos anos 1950 fundou sua própria denominação, que seria chamada Igreja O Brasil para Cristo. Como primeiro líder evangélico a usar o rádio para pregações do Evangelho, ele juntou multidões em ruas, praças e estádios para cultos de milagres. O programa de evangelização radiofônico, iniciado na emissora Piratininga de São Paulo, tornou-se um sucesso e passou a ser veiculado em todo o país pela Rádio Tupi, permanecendo no topo das pesquisas de audiência por 34 anos consecutivos.

A influência do pastor – que garantia curar paralíticos, que passavam a andar, e mudos, que ganhavam voz – o aproximou de um movimento intencional em direção à política. As acusações de curandeirismo e charlatanismo o colocaram na mira do regime militar. Apesar da presença constante de agentes federais nos cultos públicos que realizava, Manoel de Mello passou a denunciar em fóruns internacionais e no Conselho Mundial de Igrejas os abusos e injustiças vividas no Brasil sob o comando dos militares.

Toda essa atuação fez de Manoel de Mello o primeiro pastor sistematicamente visitado por políticos, das mais diversas vertentes ideológicas, que tentaram aproveitar a influência que ele passou a exercer em sua época. A postura do pastor desagradava às lideranças protestantes tradicionais, que ainda viam o rádio como um instrumento profano, logo inadequado para propagar a Palavra de Deus, bem como não gostavam de seu envolvimento intencional com a política.

Com o fim do regime militar e com a Igreja O Brasil para Cristo com menor presença em ruas e praças, tudo parecia estar como antes, com crentes distantes da vida política, sem envolvimento em projetos de poder ou governabilidade. Os crentes que participavam da vida pública o faziam por vocação pessoal. E foram estes que entraram em cena no governo Sarney. Quando o presidente decidiu acrescentar um ano ao seu mandato constitucional, a negociação precisou ir além de seus correligionários partidários. Nesse jogo, os evangélicos eleitos para a Constituinte anunciaram apoio ao mandatário em troca de concessões de emissoras de rádios. Esses políticos também favoreceram transações que permitiram que pastores recebessem empréstimos do governo a fundo perdido.

Os evangélicos eleitos, esse grupo sem intencionalidade, foram a nascente de um poder evangélico em posição de governo. Para receber as benesses oferecidas pelo poder, os evangélicos políticos recuperaram a Confederação Evangélica Brasileira, uma entidade de cooperação entre os crentes do país que teve sua ação interrompida com o golpe de 1964. Contrários à tomada do poder, os líderes da confederação foram presos e exilados.

Os escândalos da troca de favores pelas concessões e pelos empréstimos geraram reação em um grupo significativo de evangélicos, que formaram a Aliança Evangélica Brasileira (AEVB), liderada na época pelo reverendo Caio Fábio. Esta desbancou a Confederação Evangélica, que estava cooptada pelos deputados, sendo finalmente extinta. Uma das ênfases da AEVB era a isenção em relação à questão político-partidária.

Esse novo ciclo durou pouco tempo. Um novo elemento surgiu no horizonte: a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que ganhou força com um intencional projeto político, marcado pela busca de recursos midiáticos, em rádio ou televisão. Tendo superado a ideia de que eram instrumentos profanos, os evangélicos brasileiros, em grande parte inspirados pelo modelo de Igreja dos Estados Unidos, passaram a ter profunda consciência do poder da mídia, sobretudo o rádio, que é bastante gregário. Portanto, muito útil para a construção de comunidades de fé.

Gradativamente, a liderança evangélica também passou a perceber a força da televisão. A Iurd se adiantou nessa percepção do uso dos meios de comunicação, estabelecendo um projeto eficaz na área. E se deram conta de que os órgãos de comunicação no Brasil, sendo concessões públicas, são questões de poder. Quem não tem nenhuma interação, ou influência, com o poder constituído tem pouca chance de conseguir tais concessões.

Para alavancar seus projetos, a Iurd começou a agir como demolidora da Aliança Evangélica, não sem antes tentar fazer parte dela, tendo sido rejeitada em seu pedido. A AEVB não tinha segurança em relação às práticas desenvolvidas pela Igreja, que crescia em visibilidade e número de fiéis.

O interesse da Universal e seu sucesso em adquirir emissoras de rádio e, principalmente, a Rede Record aguçaram a liderança evangélica, majoritariamente a liderança pentecostal e neopentecostal, grupo este que tem na Universal a sua mais forte expressão. Assim foi despertado nesses líderes o desejo e a consciência da possibilidade de ter à sua disposição esses meios de comunicação. E o caminho era único, era o caminho do poder, o caminho da interação político-partidária.



O crescimento

Nos anos 1990, o Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) realizou o Censo Institucional Evangélico, publicando uma série de estudos que apontavam o crescimento dos evangélicos no Brasil, sobretudo do pentecostalismo. Esse crescimento aponta mudanças no cenário protestante no país, com a chegada da Igreja evangélica na base da pirâmide social a partir da década de 1980. Entre 1990 e 1992, de cada dez Igrejas registradas no Rio Grande do Sul, nada menos que sete eram pentecostais. Em treze municípios da Grande Rio de Janeiro, o Iser identificou, na época, 85 denominações (Igrejas com quatro ou mais filiais), sobretudo em regiões pobres e periféricas. Esse cenário de mudanças significa os evangélicos incidindo culturalmente na sociedade.

Entre as mudanças está a relação com a política e os partidos, como a denunciada pela Operação Sanguessuga, que apurou superfaturamento na aquisição de ambulâncias pelas prefeituras, muitas das quais encontradas em Igrejas evangélicas, e envolveu 26 parlamentares evangélicos.

Com o surgimento do movimento apostólico, os crentes com vocação para a vida política, muitas vezes vistos com desconfiança e até mesmo desmotivados pela Igreja, passaram a ser tidos como missionários da Igreja junto ao poder, expressando a consciência de que esta precisa de protagonismo político-partidário para garantir seus interesses, conquistar os benefícios que entende necessários para a pregação do Evangelho de forma maciça e garantir sua liberdade de culto. Assim começou uma nova fase na Igreja, intencionalmente voltada para a conquista do poder.

Esse quadro foi se tornando hegemônico em várias denominações, a maioria absoluta de cunho pentecostal e neopentecostal. Essa consciência assumiu o controle da liderança, e todos começaram a pensar com essa categoria de incidência política. A atuação desses missionários no poder facilitou o acesso das Igrejas em parcerias políticas públicas na área social, beneficiou Igrejas em processos de construção e revogou decisões tomadas com base nas leis de silêncio. A atuação missionária dos políticos garantia, por exemplo, que o Cheque-Cidadão, no Rio de Janeiro, fosse distribuído por pastores em Igrejas, em um duplo clientelismo: o dos pastores para o projeto e o dos beneficiários para a Igreja.



Governo popular e medo

Com a eleição do governo Lula renasceu no meio dessa Igreja evangélica brasileira um medo, o mesmo que esteve presente em 1964: o do comunismo. Por alguma razão, os evangélicos foram convencidos de que o governo popular representava o perigo do comunismo, ainda que essa possibilidade nem sequer tenha se aproximado. Parte do medo se explica: a Igreja evangélica é muito arredia em relação aos movimentos de esquerda. Não por questões ideológicas. Contudo, vale lembrar que o movimento protestante, em maioria, olhava o capitalismo com desconfiança por causa das ênfases bíblicas contra a riqueza e pelo amor ao mundo, a ideia de pregar aos pobres e necessitados que é marca de Jesus de Nazaré.

Entretanto, os comunistas, na era de Stalin na União Soviética e de Mao Tsé-tung na Revolução Cultural na China, foram inclementes com os evangélicos e os perseguiram, produzindo mártires cujas histórias eram contadas por todo mundo, em relatos de uma Igreja sofredora, existente nesses territórios.

A Igreja evangélica olhava o comunismo com desconfiança. Com o governo popular, ela entendeu que precisava se defender. Além dessa questão, com a ascensão de temas relacionados aos direitos individuais, como a defesa da comunidade LGBT, a Igreja foi despertada para a possibilidade de que sua principal base comunitária, a família, esteja sob ataque. Isso fez os evangélicos elegerem uma pauta moral para defender a família do que entendem ser uma perversão. E mais uma vez se deu conta de que essa defesa é possível com injunções ao poder institucional, no qual marca presença com um tradicionalismo moral de aparente cunho bíblico.



Teologia e artigo de fé

A Bíblia é incisiva na condenação dos ricos pelo que acumulam em bens e recursos. Isso fazia a teologia, tanto dos evangélicos históricos como dos pentecostais, colocar as riquezas e os ricos em desconfiança. Mas houve uma mudança com o surgimento da teologia da prosperidade, oriunda de teólogos dos Estados Unidos. Ela ensina que o sinal principal da salvação é a riqueza, a obtenção de prosperidade econômica.

A partir dessa teologia, esse grupo de evangélicos começou a fazer uma opção ideológica. E pior, transformou a ideologia em um artigo de confissão de fé. É tácito, não está escrito, não está explícito, mas a ideologia capitalista é assumida como se fosse um dos artigos da fé. Isso explica, em parte, a maciça adesão dos evangélicos ao golpe de Estado que segue em curso. Os motivos: primeiro há o moral, que ganhou preponderância sobre a questão midiática; depois há a questão ideológica, a ideia de liberdade de culto e o pensamento equivocado de que só no sistema capitalista a liberdade seria mantida. Um grande equívoco, uma vez que a liberdade de culto só é garantida em um Estado verdadeiramente democrático e laico, que, aliás é resultado da militância protestante no Ocidente.

A luta pela pauta moral intensificou nos evangélicos a consciência, ou inclinação, para a construção de um Estado cristão e para uma possível hegemonia amparada pelo crescimento sistêmico e exponencial de sua Igreja no país. Não poucos líderes começaram a vislumbrar a possibilidade, e a necessidade, desse Estado evangélico.

Nada disso aconteceu sem ruptura, sem enfrentamentos internos, sem o estabelecimento do controverso, do contraditório, desde 1964 e antes. O campo evangélico não é um campo hegemônico, as fissuras são notórias. E há uma resistência bastante relevante e cada vez mais organizada.

O embate é muito intenso. O grupo influenciado por essa ideologia e por essa teologia do poder é forte, com influência sobre a comunidade. Mas o grupo resistente também tem influência. Em sua maioria, os que resistem são proponentes de uma teologia conhecida como Missão Integral, uma teologia latina que surgiu na década de 1960 do pressuposto de que o governo de Deus, que é a ascendência espiritual e ética do Cristo sobre os que se confessam seu povo, é um governo para o bem dos empobrecidos, dos injustiçados, dos despossuídos, dos marginalizados. Portanto, uma teologia que busca a justiça social.



Pretos, mulheres e pobres

A chegada dos evangélicos à base da pirâmide é crescente. Nas periferias, as comunidades carentes são cada vez mais evangélicas. Nos movimentos sociais de base, nos movimentos de moradia, de luta pela terra, há cada vez mais crentes. O campo evangélico se tornou capilar, está em todos os matizes da sociedade brasileira, principalmente entre os pobres, as mulheres, as crianças, os pretos.

A Igreja evangélica é, majoritariamente, feminina, preta e pobre, e basicamente liderada por pastores de Igrejas independentes. Os vínculos das Igrejas das grandes denominações foram se esgarçando e o poder destas foi enfraquecido pelo surgimento e multiplicação de Igrejas independentes.

Hoje o que há é uma disputa no campo do ideário, no campo teológico. Diversos segmentos disputam a ascendência sobre o grupo independente. Esse é o patamar em que se encontra agora a batalha dentro do campo evangélico.

Os números são superlativos, a vitória de segmentos evangélicos no campo político partidário incentiva isso. A primeira vitória foi do governador Anthony Garotinho, que se tornou um governador evangélico por excelência. Garotinho foi um marco e uma inspiração dentro desse projeto de poder. Foi um evangélico que poderia chegar à Presidência da República, e quase o conseguiu. Houve também a figura do prefeito de Osasco, Francisco Rossi, que se tornou forte candidato ao governo do estado de São Paulo.

Agora Marcelo Crivella é o novo prefeito do Rio. Uma vitória significativa, sendo essa a segunda maior cidade da Federação e uma vitrine que expõe o país para o mundo. É a vitória de um bispo da Iurd, sobrinho do fundador da Igreja, Edir Macedo; é a vitória de um movimento consistente e persistente, e o descortinar de uma nova realidade sociopolítica. Farão bem as forças progressistas se, em vez de menosprezá-la, começarem a buscar caminhos para a compreensão e para o diálogo, uma vez que conta com correspondentes dentro desse mundo complexo e real que poderíamos chamar de “o poder evangélico”.

*Ariovaldo Ramos é presidente da Visão Mundial; e Nilza Valeria Zacarias é secretária-geral da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

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