segunda-feira, 20 de março de 2017

Tecnocracia e ilusão tecnológica

por Daniel Vaz de Carvalho
http://resistir.info/

O pior dos analfabetos é o analfabeto político. O analfabeto político é tão estúpido que se orgulha e enche o peito para dizer que detesta a política. Ele não sabe, o imbecil, que é a sua ignorância política que produz (…) o político desonesto, mentiroso e corrupto que lambe os pés das empresas nacionais e multinacionais. 
Bertolt Brecht


1 – A ilusão tecnológica, uma forma de alienação

A ilusão tecnológica manifesta-se de duas maneiras: mais tecnologia representa mais progresso; a tecnologia há de resolver todos os problemas, isto é, não temos que nos preocupar nem com os outros, nem com a própria sociedade a que se pertence, nem com resto do mundo. 

Na realidade, as mudanças tecnológicas têm servido em primeiro lugar para evitar a baixa tendencial da taxa de lucro e não como factor de libertação da Humanidade. A técnica não é por si a salvadora da Humanidade. O ambiente natural e o tecido social, têm sido destruídos mesmo com técnicas muito evoluídas, através de doutrinas económicas que potenciam aquelas crises. Muita da informática foi usada para aumentar burocracias, quando era suposto ser o contrário. Os aumentos de produtividade levaram a massivos despedimentos, reduções de salários, degradação das condições de trabalho. 
Não nos devemos iludir com as proezas tecnológicas, pois elas próprias estão ao serviço de ideologias, e desta forma que também servem também para acelerar e ampliar erros. Uma mega estrutura bancária, o banco Lehmon Brothers que faliu fraudulentamente em 2008, utilizava três mil programas informáticos e 25 mil servidores. O mesmo se passou com muitos outros que tiveram o mesmo destino ou se encontraram dependentes das ajudas estatais. 

Além disto, note-se que há características que pessoas experientes conseguem realizar em segundos e que os mais potentes computadores mesmo de grande capacidade só o fariam ao longo de muito tempo. Falamos por exemplo de características visuais, olfativas, paladar, etc. 

Um caso característico ocorre na astronomia. Os computadores conseguem dizer com precisão a cor da galáxia, uma ideia da sua dimensão, da forma e do seu tipo, mas não conseguem reconhecer detalhes como o cérebro humano. A classificação das imagens de milhares de galáxias obtidas através do Hubble está a ser feita por técnicos experientes: são precisos alguns segundos para algo que atualmente demoraria semanas e seria necessário uma grande capacidade computacional. 

A palração à volta das "novas tecnologias" e da "modernidade" que tudo resolveria foi e é uma forma de alienação. Os quadros técnicos e investigadores que se deixam seduzir pelos avanços tecnológicos acabam por assumir os valores da direita num processo de alienação da sua posição social e produtiva, que os coloca demasiadas vezes – mesmo que inconscientemente – do lado do capital contra os outros trabalhadores. Contudo são depois lançados na precariedade, no desemprego, na emigração – numa vida sem perspetivas. Trata-se do agravamento da condição proletária dos quadros técnicos apanhados na ilusão apolítica do progresso pela técnica. 

De facto, o trabalho qualificado está sujeito às mesmas regras que determinam o trabalho no capitalismo. Isto foi o que ocorreu a partir de 1986, com o neoliberalismo e o ataque selvagem aos salários. [1]

A ilusão tecnológica desempenha parte importante no condicionamento das consciências. Nos conceitos capitalistas a tecnologia é apresentada como o fator fundamental das transformações sociais, da evolução da sociedade, que substituiria a luta de classes. Não passa de uma falsificação do processo histórico, evidente desde a revolução industrial. 

A tecnologia por si não predetermina os objetivos da sua utilização. As técnicas são apenas meios de atingir objetivos estabelecidos pela política, pela ideologia, pela sociedade e sua direção. 

2 – Tecnocracia 

A tecnocracia é uma das armas do arsenal ideológico da política de direita para captar determinadas camadas, designadamente quadros técnicos e juventude. A tecnocracia representa uma falsa racionalidade antidialética como argumento para a menorização e mesmo menosprezo dos aspetos sociais. O otimismo tecnocrático exibe a convicção que as questões sociais são resolvidas no campo da técnica sendo os problemas que ocorrem originados por comportamentos individuais irracionais. 

A tecnocracia exibe a prostração intelectual perante a propaganda (comercial e ideológica) dos países dominantes e que a aplicação das tecnologias não depende do regime social. 

O mais grave na tecnocracia é a sua ignorância sobre os processos históricos e sociais. Ignorância que no entanto se assume com a arrogância do desprezo pelas formas mais abrangentes da cultura – outra característica de empréstimo ao fascismo. 

A oligarquia serve-se de pseudo-elites desligadas dos problemas sociais para a gestão política e económica, com apelos à "competência" profissional, sendo que a avaliação dessa competência é feita pelos critérios aprovados pela oligarquia. Uma falsa modernidade com réstias das teses fascistas revive por via do neoliberalismo e das suas formas de austeridade e "competitividade". 

Nas ilusões tecnocráticas de alguns epígonos da direita e do seu governo não é difícil encontrar o desígnio de "pôr ordem no país". Um país que no fundo desprezam, que consideram infectado pelo "vírus" do 25 de ABRIL e para cuja "cura" pretendem que se submeta às técnicas neoliberais. 

Segundo Ortega e Gasset [o especialista] não é um sábio porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade, mas também não é um ignorante (...) Em política, em arte, nas outras ciências tomará posições de primitivo, de ignorantíssimo, mas tomá-las-á com a energia e suficiência de um sábio, sem admitir – e isto é paradoxal – especialistas destas coisas. Ao especializado a civilização fê-lo hermético e satisfeito dentro das suas limitações". [2]

Acrescenta O. Gasset: "Poderão dizer que criticando a especialização limita-se a criatividade. Não, defendemos a criatividade, mas não a dos especialistas. Os especialistas são a contra cultura. A cultura tem de ser generalista, ou melhor, abrangente por natureza, englobando obviamente as disciplinas humanísticas". "O especialista representa afinal a desarticulação do saber". 

Em "Galileu Galilei", escreveu Brecht: "Com o tempo vós podeis descobrir tudo o que há para descobrir e no entanto o vosso progresso afastar-vos-á cada vez mais da Humanidade. O abismo entre ela e vós pode tornar-se um dia, tal que ao vosso grito de alegria perante alguma nova conquista científica responderá um grito de horror universal." 

Face à tecnocracia e ao "especialismo", o marxismo, exprime "contra a unilateralidade, uma perspectiva totalizante e dialética. O concreto não se confunde com a mera amálgama de determinações", "pelo contrário remete-nos para investigar a realidade na sua textura e interações". [3] 

3 – Tecnocracia, tecnologia e progresso social 

Tecnologia não é por si só progresso, é especialização. Estes especialistas recheados de títulos académicos, formatados no "pensamento único" – "o grau zero do pensamento" (J. Saramago) – são alcandorados ao poder dos grandes interesses dominantes criam uma estrutura tecnoburocrática irresponsável perante os povos e inimiga da democracia em tudo o que contrarie os seus dogmas. 

Cecilia Malmstrom, comissária europeia do comércio internacional liderava as negociações da UE no TTIP, ao ser questionada por um jornalista pelo prosseguimento das negociações perante uma maciça oposição pública respondeu: "Eu não devo o meu mandato ao povo europeu. [4]

Eis uma resposta que define o pensamento da clique burocrática a mando dos "novos senhores do mundo" – na expressão de Jean Ziegler – que dirige de facto os povos com a imposição de regras, diretivas, resoluções, que apenas servem o interesse de uma mais que restrita camada de bilionários. Mas quem são estes burocratas? 

Foram óptimos alunos em escolas de prestígio, apreenderam acriticamente o que lhes foi leccionado, preencheram os curricula com pós-graduações, seguiram ciclos de formação dados por enaltecidos gurus das mesmas escolas. Todos eles longe da economia real e muito mais da vida do trabalhador comum. 

Fazer depender a evolução humana do progresso técnico é a ilusão da eficiência quando a primeira devia subordinar a segunda, tornando-se complementares. Apesar dos impressionantes avanço científico-técnicos, que fracasso para a Humanidade, com as suas proezas espaciais e cibernéticas, não ser capaz de proporcionar a cada ser humano vida livre e feliz. Que escândalo tanta tecnologia avançada quando milhões morrem de fome, de doença ou sob o mais sofisticado armamento. Alguém se pergunta se as inovações na tecnologia militar trouxeram mais dias de paz ao mundo, trouxeram, sim, aos oligarcas milhares de milhões de dólares confiscados aos povos oprimidos. 

O primeiro objetivo do desenvolvimento tecnológico (DT) em capitalismo é impedir a queda da taxa de lucro. Porém, a "taxa de lucro cai devido à natureza específica das inovações tecnológicas". Nos EUA a produtividade aumentou de 28 milhões de dólares por trabalhador em 1947 para 231 milhões em 2010, ao passo que os trabalhadores por meio de produção se reduziram de 75 em 1947 para 6 em 2010. A taxa média de lucro no período 1950-1960 foi de 15%, no período 2000-2010 caiu para cerca de metade. Nos países do G7 desde meados dos anos 60 a taxa de lucro reduziu-se 20%. (…) O sistema é cada vez menos capaz de produzir mais-valia por unidade de capital investido, um facto oculto por uma taxa de exploração crescente. [1]

A tecnologia não levou nem leva à redução das contradições do capitalismo nem reduz o domínio dos mercados pelas grandes transnacionais. A ilusão de progresso pela inovação e as "novas tecnologias" em nome da competitividade, são um lugar-comum que ignorando o social apenas serve para mascarar o aumento da exploração e a acrescida instabilidade. 

O desenvolvimento científico-técnico pode contribuir para a melhoria da condição das camadas trabalhadoras e dos povos, mas uma possibilidade não é uma realidade. Depende das políticas e dos objetivos sociais, depende da economia-política seguida. 

O DT em capitalismo acentua a corrida ao lucro, à anarquia da produção e consequentemente às crises, às desigualdades sociais e entre países, à degradação ambiental, pois o objetivo fundamental é a maximização da taxa de lucro. O que se pode ver desde há dois séculos é que as tecnologias não alteram as características fundamentais do capitalismo, tudo o que foi conseguido a favor dos trabalhadores foi-o através de abnegadas lutas. E isto são apenas factos 

Nenhuma "revolução tecnológica" salvou ou salva o capitalismo das suas contradições e crises. O capitalismo mostrou-se incapaz de dominar as consequências negativas da revolução científico-técnica. E se propagandistas e devotos do capital sonham com os "anos de ouro" dos países capitalistas mais ricos, fazem por ignorar as duras lutas populares que ocorreram nesses países, os fenómenos de neocolonialismo, as guerras coloniais e imperialistas. 

Políticas visando um DT equilibrado, planeado, com vistas ao desenvolvimento da produção nacional, foram consideradas "ideias do passado" face às ilusões à volta das "novas tecnologias" entregando aquelas funções ao capital transnacional que se encarregaria da "especialização produtiva". 

A principal tarefa da Humanidade é conseguir dotar-se de um sistema económico e social cuja tarefa prioritária dos cientistas e técnicos seja justamente reduzir o impacte ambiental e social do desenvolvimento e a erradicação da fome e da miséria na Terra, terminar com o ciclo de intermináveis crises, desigualdades, estagnação económica e pobreza com que o capitalismo confronta a Humanidade. 

Tal só é possível lutando pela paz e pelo socialismo, única saída para a sobrevivência e o progresso da Humanidade.

Ver também sobre este tema: 
  • Tecnologia: uma questão política central 
  • A digitalização da indústria e dos serviços 


  • [2] A Rebelião das Massas, Ortega e Gasset, p. 114 
    [3] Totalidade e Contradição. Acerca da Dialética, José Barata Moura, Ed. Avante, p. 286 e 291. 
    [4] The Rise of the Corporatocracy , Graham Vanbergen 

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