segunda-feira, 24 de abril de 2017

A manufatura brasileira se afunda na crise


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Corroída pela importação de bens intermediários, o setor tem cada vez mais a cara das fábricas mexicanas

A desindustrialização da economia brasileira talvez não seja tão aguda como sugerem alguns diagnósticos, mas a manufatura local, apesar de ainda manter tamanho e complexidade relativamente importantes no contexto mundial, está sendo comida por dentro.

Sob uma avalanche de importações de bens intermediários, aqueles utilizados na fabricação de produtos finais, o setor caminha para assumir, cada vez mais, a cara das maquilas mexicanas, caracterizadas por quase nenhuma produção doméstica e limitadas à montagem final.

O alerta consta do estudo Desempenho recente da indústria brasileira no contexto de mudanças estruturais domésticas e globais (em PDF), dos economistas Fernando Sarti e Célio Hiratuka, professores do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadores do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia, da mesma universidade.

Enquanto o País permaneceu estacionado na segunda revolução industrial, de base metalmecânica e química, a rápida industrialização da China, com escalas elevadas, custos reduzidos e penetração crescente nos mercados externos, aumentou as dificuldades para os países defasados. Entre outros efeitos, acentuou a forte tendência mundial rumo a preços decrescentes, agravada com a crise financeira de 2008, sublinha Sarti.

Nesse contexto, poderia ser animador, mas não chega a tanto, o fato de que o grau de industrialização, medido pela relação entre o valor agregado manufatureiro e o PIB a preços constantes, ao contrário de diminuir, é crescente para as economias emergentes, segundo os autores. “Não há, portanto, uma desindustrialização generalizada em virtude da expansão e sofisticação do setor de serviços. Além disso, parte daquela regressão, em alguns países em desenvolvimento, é um fenômeno monetário, de preços relativos, não de volume”, analisa o economista.

Examinar o processo de regressão da indústria segundo o critério do valor ou o do emprego mostra tendências diferentes, chamam atenção os economistas. A evolução da produção física do ponto de vista do emprego no setor não indica uma queda tão vertiginosa nos últimos 20 anos e não aponta para uma desindustrialização no grau propalado por muitos.

“O economista Gabriel Palma e vários outros usam o referencial do emprego exatamente para não incorrerem no problema monetário, que surge quando se trabalha com os preços industriais e tem-se de levar em conta o câmbio. Como o setor é muito capital intensivo, as quedas de produção afetam menos o emprego.”

O problema atual mais importante da indústria não estaria, portanto, no seu decantado encolhimento, mas nas dimensões e na dinâmica perversa do seu setor de bens intermediários, e este é um dos principais achados do estudo de Sarti e Hiratuka. O segmento inclui alimentos e bebidas básicos, combustíveis, carburantes e insumos industriais, inclusive peças, acessórios e equipamentos de transporte. “As pessoas não tinham ideia de que esses bens representam 70% da indústria”, diz Sarti.

Na mesma proporção, o aumento das importações de insumos industriais esvaziou a cadeia produtiva da manufatura e reduziu seus efeitos multiplicadores. Não se sustenta, portanto, a falácia neoliberal sobre um suposto Brasil fechado ao comércio internacional e por isso mergulhado no atraso, que parece ter turvado a percepção do crescimento exponencial do coeficiente e do conteúdo importados. A tendência, iniciada nos anos 1990 e aprofundada nos anos 2000, acentuou-se com a crise mundial.

Os bens intermediários representam mais de dois terços da estrutura produtiva brasileira

Os insumos industriais elaborados são metade dessa fração (em %)
Economia
Nesse processo, “o Brasil trocou investimento por demanda por importações. Ao contrário de outros países, externalizou sua demanda em vez de externalizar sua produção, por meio de investimento no exterior e exportação. O argumento liberal de que a inserção nas cadeias de produção através de maiores importações é condição necessária e suficiente para ampliar as exportações não se verificou. O coeficiente exportado não acompanhou o crescimento do coeficiente importado”, chama atenção o economista.

Nas pesquisas, diz, costuma-se trabalhar com recortes setoriais, mas quando se examina a indústria automobilística, por exemplo, é importante separar os bens finais dos intermediários e o mesmo vale para o segmento farmacêutico ou outro qualquer. “Recorremos ao ponderador usado pelo IBGE para montar a produção física por constatarmos que o grande aumento no volume do comércio internacional foi de bens intermediários, não de bens de consumo”, explica o economista. Esses bens compõem o centro nevrálgico da movimentação no interior das cadeias globais de valor e cruzam fronteiras várias vezes antes de tomar a forma de um produto final e chegar ao consumidor.

Os autores do estudo optaram por não lançar mão da medida clássica da relação entre importações e PIB. “Por esse critério, o coeficiente brasileiro é igual ao dos Estados Unidos, e eu nunca ouvi nenhum analista dizer que esse país tem uma economia fechada”, critica Sarti. O caminho adotado foi dividir as importações de manufaturados (exceto petróleo e outros itens) pelo produto industrial. Esse enfoque mostra que o grau de abertura da nossa economia não só cresceu muito como superou as economias do mesmo nível de desenvolvimento.

“O que mais impactou a economia brasileira, o que entrou pesado e derrubou grande parte da produção manufatureira não foram o macarrão e o vinho importados, mas os bens intermediários, sobretudo os industriais”, sublinha Sarti.

“Essa é a questão que consideramos mais importante e que, de alguma maneira, está endogeneisada nas empresas. Elas reverteram seu processo para fora, externalisaram, arbitraram, vamos dizer assim, o diferencial de ociosidade produtiva entre os diversos países em que mantêm produção. Quando um grupo tem capacidade ociosa no México ou na Coreia, por exemplo, começa a importar mais de lá. Traz bens de consumo final, mas, sobretudo, intermediários. Isso se acentuou de forma absolutamente exponencial depois da crise, revelando um forte componente corporativo no processo. O mundo permanece estagnado, a demanda aqui não está ‘bombando’ e, mesmo nesse contexto, o Brasil é a economia com maior crescimento das importações depois da crise mundial de 2008.”

O boom importador de insumos abrange principalmente os setores eletroeletrônico, químico e de autopeças e inclui empresas nacionais e multinacionais instaladas no País, mas é muito mais forte nas últimas.

“A conclusão é que, quando se fala em abertura, não é suficiente considerar só o comércio, é preciso examinar principalmente o aspecto da origem do capital. Assim se percebe que o Brasil se tornou um grande receptor de capital estrangeiro, o que faz com que o centro decisório sobre o que produzir, onde produzir, o que exportar e o que importar é cada vez mais transferido para fora.”

O esvaziamento provocado pela avalanche de semimanufaturados e produtos acabados importados ocorreu num setor estacionado na segunda revolução industrial, conforme mencionado acima, e que não internalizou, ou internalizou só parcialmente, a terceira revolução, a da eletrônica e das tecnologias de informação. A defasagem diminuiu a sua capacidade de capturar os impactos das novas tecnologias da chamada quarta revolução indústrial. Nessa etapa, sistemas combinam máquinas e robôs com processos digitais, através da internet das coisas e da computação na nuvem, em fábricas inteligentes articuladas em redes.

O que já era ruim, portanto, tende a piorar. Reduzida cada vez mais a uma casca, o outrora vibrante e complexo parque fabril do País corre o risco de sucumbir ao advento da indústria 4.0. O recuo do crescimento do setor de transformação, de 1,4% em janeiro para insignificante 0,1% em fevereiro, reforçou a convicção de que a retomada sustentada continua a ser uma miragem para um segmento imerso em problemas de vários tipos. Superar a recessão e a austeridade fiscal, livrar-se da valorização do real e dos juros inviabilizadores da atividade e vencer a defasagem tecnológica e a concorrência dos importados nunca pareceu tão distante.

Entrevistado por CartaCapital, Sarti fez um alerta: “O Brasil, bem ou mal, ainda segura uma indústria, mas sua sobrevivência não está garantida. Ela enfrenta a concorrência predatória da fábrica asiática e uma pressão baixista dos preços, que drena recursos para investir. Todas as empresas estão trocando investimento por importação, porque ninguém quer imobilizar recursos aqui numa estrutura não competitiva. O processo é semelhante ao das maquiladoras mexicanas, de importar cada vez mais peças e outros insumos. É como se o setor jogasse fora o recheio do sanduíche, que é o bem intermediário, onde reside boa parte da intensidade tecnológica, da agregação de valor. O nosso parque fabril está sendo comido por dentro. Há um grau extremamente preocupante de crescimento do coeficiente e do conteúdo de importação. Aquilo que poderia ser um salto para o futuro, com aproveitamento das novas tecnologias, talvez agrave a situação, pois a estrutura existente e os problemas crônicos, conjunturais e estruturais dificultarão o aproveitamento e a capitalização das novas mudanças.”

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