quarta-feira, 12 de abril de 2017

A Paixão de Cristo: breve análise criminológica


Por Ismar Nascimento Jr. 
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Todo ano, no feriado de páscoa, apesar do apelo consumista criado pelo mercado, e dos trabalhos temporários gerados nas fábricas de chocolate, muitas pessoas refletem sobre, quem sabe, o mais marcante processo penal que a humanidade já conheceu: o julgamento e condenação de Jesus Cristo, cuja pena, a crucificação, é um dos símbolos do ocidente. O julgamento do Cristo foi sumário, isto porque, contra ele, pairava uma acusação vaga.
Nem mesmo Pilatos, a quem foi apresentado, conseguia encontrar um motivo real para condená-lo: “havei-me apresentado este homem como pervertor do povo; e eis que, examinando-o na Vossa presença, nenhuma culpa, das que o acusais, acho neste homem”. Essa afirmação foi feita perante os sacerdotes (que o entregaram e criminalizaram), os magistrados e o povo. Atualmente, a humanidade caminhou, no ocidente, para o estágio em que, se a acusação não consegue ser provada, o acusado é absolvido, isto é, declarado inocente.

Outro detalhe: a acusação, a partir das contribuições do Iluminismo, deve ser formulada com base em um crime previsto antes da realização da conduta pelo acusado. Justamente, para evitar uma criminalização de ocasião, como aconteceu, por exemplo, com Jesus Cristo. Ele não havia cometido nenhum delito.

Mas o status quo, sentindo-se ameaçado pelas suas ações, buscou uma forma de condená-lo. Em Lucas, 5, 6, diz a passagem “ e os escribas e os fariseus observavam-no, se o curaria no sábado, para acharem de que o acusar”.

Howard Becker, na obra Outsiders: Estudo de Sociologia do Desvio, contrariando a noção de que haveria características inatas ao criminoso, afirma que os processos de criminalização se dão quando determinadas classes sociais têm o poder de criminalizar a conduta de outras, com base em seus interesses. As presentes linhas sugerem que, no caso do Cristo, a classe dominante da época, temendo o crescimento da popularidade do mesmo e o que isso significaria em termos de ameaça ao poder,buscaram uma forma de, a todo custo, criminaliza-lo para, em seguida, justificar a sua condenação à morte.

O castigo, como salienta Nietzsche em sua Genealogia da Moral, precisava ser exemplar, para incutir no povo o medo. Infelizmente, no caso do Cristo e em outras passagens não nobres da história, a punição era um verdadeiro “espetáculo” grotesco, em que o poder afrontado era reafirmado nos corpos dos condenados, de acordo com Foucalt, em Vigiar e Punir.
"O senso comum quer(ia) ver sangue; tortura. Aquela multidão bem poderia, atualmente, dar audiência a algum programa sensacionalista que prega execuções sumárias, sem processo. E que destrói reputações com a mesma rapidez com que o Cristo foi condenado, porque, tecnicamente, arriscamos dizer que sequer houve um julgamento de fato" 
  
Mas, é preciso que se diga, a crucificação se deu, também, com a contribuição do povo, que preferiu “soltar” Barrabás, acusado de homicídio, ao Cristo, cuja acusação era tão vaga que Pilatos intentava soltá-lo. É o que informa Lucas, 23, 20: “Falou, pois, outra vez Pilatos, querendo soltar a Jesus. Mas eles clamavam em contrário, dizendo: crucifica-o, crucifica-o”. Eles, a que o texto se refere, é a multidão. O “zé povinho”, nas palavras de Mano Brown[1], na música Vida Loka: “enquanto o zé povinho apedrejava a cruz...”. Podemos dizer, numa livre interpretação[2], que o zé povinho era o senso comum de então. O senso comum quer(ia) ver sangue; tortura. Aquela multidão bem poderia, atualmente, dar audiência a algum programa sensacionalista que prega execuções sumárias, sem processo. E que destrói reputações com a mesma rapidez com que o Cristo foi condenado, porque, tecnicamente, arriscamos dizer que sequer houve um julgamento de fato.

O que sobressai, numa brevíssima análise criminológica, é que Jesus, filho de carpinteiro, um homem simples, cujo discurso não legitimava as práticas realizadas pelo status quo de então, precisava ser barrado, detido. Mas, para a autoridade local - Pilatos, não havia motivo para condená-lo. Ora, se o crime, como afirmam alguns teóricos, não existe em si, é preciso que a sociedade escolha, dentre as diversas condutas, aquelas que podem configurar um delito[3].

Ocorre que, segundo Howard Becker[4], ao escolher quais condutas serão criminalizadas, as sociedades também escolhem quais indivíduos ou grupos de pessoas serão considerados criminosos. É o chamado labelling approach, ou etiquetamento. Tão importante quanto definir quais condutas serão criminalizadas, é preciso reconhecer os processos de criminalização dirigidos a pessoas determinadas.

Em territórios dominados por estrangeiros, alerta-nos Hobsbawm[5], tal dominação se torna mais viável com a conivência das elites locais. Como ocorreu na terra onde Jesus viveu.

Por fim, afirmar uma “verdade” não é, nem de longe, a intenção das presentes linhas[6]. Mas, o que nos chama a atenção, abstraindo as explicações teológicas, é o exemplo inconformista do Cristo, ao denunciar “os mercadores do templo” e fazer um contraponto à lei então vigente. E as consequências que isso pode acarretar, ontem e hoje.

Referências

[1] É interessante sinalizar, como fizeram os Racionais MC’s, que um dos últimos atos do Cristo, em vida, foi perdoar Dimas, um dos criminosos crucificados. A propósito, uma pesquisa recente realizada no Rio de Janeiro informa que um dentre cada três cariocas apoiam a frase “bandido bom é bandido morto” http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/um-em-tres-cariocas-apoia-frase-bandido-bom-e-bandido-morto-diz-pesquisa.ghtml.

[2] Segundo Roland Barthes, há um fenômeno denominado “morte do autor”, ou seja: quando um texto é disponibilizado, o significado do mesmo é (re)criado por quem tem acesso à informação. Assim, analisar “a Paixão de Cristo” sob o prisma da criminologia significa buscar as “bordas de significado” propostas por Derrida, ou seja: as possibilidades de ir além do sentido dos textos, entendendo-se texto não só enquanto a palavra escrita.

[3] Segundo Durkeim, em “As Regras do Método Sociológico” o crime é um fato observável em todas as sociedades, que tendem a criminalizar condutas.

[4] Na obra “Outsiders...”, Becker analisou o efeito estigmatizante da criminalização dirigida a determinados indivíduos e grupos sociais. Assim, superou-se o paradigma criminológico centrado no chamado “criminoso nato”, de cunho duvidoso, para investigar os processos demarginalização/criminalização que ocorrem nas sociedades.

[5]Guerra, Paz e hegemonia no início do século XXI. In.: Globalização, democracia e terrorismo (tradução José Viegas). São Paulo: Companhia das Letras, 2007

[6] Afinal, como Raul já dizia, “se eu ver de verde o verde da verdade, dois e dois são cinco, não é mais quatro não”.

 Ismar Nascimento Jr. é advogado

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