segunda-feira, 3 de abril de 2017

America First: a superfície da palavra de ordem

Trump alerta para que os Estados atuem não só em conformidade com o direito internacional, mas principalmente em consonância com os interesses americanos.

    Álvaro Okura de Almeida

Alguém disse que a tentação pertinente aos que escrevem, ontem como hoje, é acreditar que estão sempre na manhã de um novo dia, na aurora de um novo tempo. Pecado difícil de resistir quando Donald Trump é eleito presidente da América... Que loucura! (?)

Destrinchar, esmiuçar, buscar inteligibilidade nos sinais aparentemente desconexos das manifestações midiáticas de Donald Trump é tarefa urgente para que não fiquemos perplexos com os falsos indícios de loucura do novo presidente norte-americano. A eleição de Trump deixou evidente a necessidade de nos atermos as formas pelas quais a internet, e as mídias sociais em particular, influi decisivamente em eleições, plebiscitos e referendos - os exemplos do Brexit e da ascensão de vários grupos de ódio e de extrema-direita - e de modo geral na opinião pública. Em especial, é preciso que se reflita a confluência desta tecnologia de comunicação com as já antigas modalidades de "marketing político" e "propaganda eleitoral" na captura interessada do voto e da opinião, conformando um ambiente, ao menos nas democracias mais ricas, denominado de "pós-verdade". 

Neste cenário jornalístico/midiático/eleitoral, percebe-se que a difusão de ideias, posições e valores políticos e a busca por espaços de fala não estão necessariamente vinculadas à pretensão de validade geralmente associada, ao menos no plano das formulações teóricas da democracia, aos integrantes da comunidade de fala numa conversação. Tanto Trump quanto a campanha do Brexit fizeram uso sem reservas de falsas notícias, informações e dados históricos e estatísticos, com objetivo não de convencer com discursos racionais, mas de provocar adesão por meio de sentimentos que usualmente não identificamos com a política, como o entusiasmo apaixonado, a raiva, o ódio e a indignação. 

O padrão de compartilhamento de notícia nas mídias sociais, que explora manchetes escandalosas e notícias bombásticas, com alto potencial de "viralização", foi habilmente explorada pelos marketeiros de Trump em nível audacioso e inédito. A exposição de Trump por meio de declarações falsas e indecorosas se mostrou mais eficiente - do ponto de vista eleitoral - que a exposição sem showbizz de suas propostas políticas. O importante era manter Trump na mira, nos holofotes, nas headlines. Na verdade, a própria aparição de Trump como presidenciável figurava, meses antes do inesperado, como mais uma piada de mau gosto gerada pela fábrica de notícias escandalosas do que uma possibilidade plausível, dado o seu estilo e histórico excêntrico.

Na corrida presidencial de Trump ficou evidente a estratégia baseada na confiança da eficácia de afirmações que “soam como verdade” mas que não têm correspondência fidedigna com os fatos. Bem verdade que, no terreno do político, a mentira não é uma novidade. Mesmo Maquiavel já havia chamado atenção para a atitude do príncipe que sabia “envolver com astúcia a mente dos homens”, numa estratégia retórica. Assim, não é segredo que, mesmo no marketing político, o que contam não são os programas e os fatos, mas os discursos e sua aceitação popular.

Traduzir o desejo e o afeto predominante na sociedade (civil ou de massas?) em discurso político é sua tarefa por excelência. A aposta numa estratégia "pós-verdade" não significa afirmar que a verdade (ou os fatos) não tem importância. Ao invés disso, aposta-se na contestação da versão de verdade corrente, jogando suspeitas, desconfiando de mentira ou o engodo na versão corrente do verdadeiro. Nesta estratégia, busca-se mostrar que nossas percepções sobre o "real" são falsificáveis ou contestáveis; que podem nos ter sido intencionalmente falseadas pela mídia ou pelos "donos do poder". Daí um dos motivos da grande dose de hostilidade (real ou encenada) do novo presidente para com alguns grupos jornalísticos. 

O emprego desta estratégia parece ter demonstrado que a "verdade" do assunto em questão - sobre as causas da pobreza nos Estados Unidos por exemplo - tem apenas importância secundária. Do ponto de vista da estratégia eleitoral, o desafio aos diagnósticos hegemônicos do tempo presente, verdadeiros ou não, teve como efeito o reforço da imagem de Trump como desafiador do "establishment" de Washington, Wall Street, dos conglomerados midiáticos e dos "experts" em favor da certeza simples própria do the people esquecido pelo discurso das identidades. A função da "narrativa alternativa" é reforçar os preconceitos e a predisposição dos cidadãos em relação a certos temas. 

É prioritariamente a mobilização de sentimentos políticos - não os fatos e suas explicações - que realmente importa neste tipo de situação. A recusa dos oponentes políticos a aceitar a descrição imposta pelo mentiroso acentua a polarização nós-contra-eles que é um dos objetivos deste tipo de estratégia. Podemos pensar que, num ambiente incendiado pelo escândalo, o choque ou a indignação, a demonstração da falsidade dos argumentos torna-se secundária, os políticos tradicionais raramente conseguem escapar do terreno minado escolhido pelos oponenetes. Um bom exemplo é o falso argumento mobilizado pela campanha Brexit sobre os elevadíssimos custos da manutenção do Reino Unidos na União Européia e os benefícios fiscais que seriam possíveis a partir da retirada. A estratégia da campanha Stay de refutar a narrativa dos custos inflacionados de permanência do GB na UE promovido pelo Brexit fez com que a pauta sobre custos fiscais e monetários da escolha permanecesse como principal foco do embate em uma semana decisiva na corrida pelos votos indecisos. O debate sobre custos e o peso da decisão dos votantes sobre o erário público e os impostos a pagar impuseram uma situação que se mostrou longe da ideal para a defesa da posição Stay, porque distante do conteúdo programático que gostaria de defender. Ainda que, depois do referendo, alguns de seus defensores de Brexit tenham vindo "retificar" os cálculos anteriormente apresentados. 

Segundo a revista The Economist, geralmente conservadora, o "regime da pós-verdade" encontra suas origens históricas na crescente desconfiança popular perante as instituições representativas e nos diagnósticos produzidos pelos peritos nas democracias ocidentais, que parecem apenas servir as elites econômicas e políticas. O crescimento exponencial das mídias digitais também contribuiu para o alcance do fenômeno. A pluralidade crescente de fontes de informação e a propagação de notícias e opiniões também fez com que fofocas, especulações e rumores de um mundo atomizado nos sujeitos isolados cresçam em proporção e importância. Mentiras compartilhadas amplamente por uma rede, cujos membros confiam mutuamente mais que nas fontes hegemônicas de informação, puderam rapidamente tomar a aparência de verdade. Pessoas com crenças fortemente arraigadas, quando confrontadas com evidências bem fundamentadas, tenderam a abandonar os fatos, quando o custo de sua verificação era alto e as convicções em jogo profundas. 

Num certo sentido, a campanha de Donald Trump pode ser lida nesta chave. São incontáveis as ocasiões em que o então candidato utilizou as mídias sociais para proferir inverdades - a respeito da economia, do desemprego - e atacar com calúnias seus adversários políticos. Não foram poucas as vezes que apelou à retórica do nós-contra-eles e à capacidade de viralização de seu comportamento bizarro e de se manter no foco, uma estratégia do holofote.. Há quem diga que o discurso patriótico de Trump foi, desde o início, para consumo interno. A mais nova e acabada versão da tão comentada "ascensão do populismo" nos Estados Unidos, destinado a tocar os corações dos pobres brancos do interior rural do país, numa estratégia de pós-verdade. 

É verdade que a campanha de Trump conseguiu "virar do avesso" o discurso da vulnerabilidade social, típico das vitoriosas campanhas democratas, consagrando para si o papel de salvador dos "esquecidos e abandonados"; não mais mulheres, negros, imigrantes, mas famílias pobres das pequenas cidades do interior do país. Como estratégia de campanha o que assistimos foi um malabarismo retórico que equilibrava fortalecimento da soberania nacional - cujo exemplo máximo é o muro na fronteira com o México - e diminuição da vulnerabilidade social dos norte-americanos supostamente esquecidos pelos defensores das "minorias".

Ainda que concedamos que toda campanha política midiatizada, em democracias de massas, sujeita a todo tipo de relação com o poder econômico e social, opere com promessas e discursos praticamente inviáveis e que as técnicas de "marketing político" tem peso decisivo na condução dos "debates" e de outras formas de aparição na esfera pública, é sintomática a permanência do slogan, do mote, da campanha como fio condutor do governo Trump.

Contudo, nem todo discurso eleitoral de Trump é inverdade, engodo, demagogia ou marketing político. Apesar do caos instalado com sua disposição em atropelar "o bom-senso" e sua aparente insensatez é preciso levá-lo à sério. E aqui gostaria de chamar a atenção para mais um aspecto da nova fórmula da comunicação presidencial, o mote de sua campanha e governo: America First. Assim como é preciso dar conta da aparente insensatez da produção de polêmicas nas redes sociais, é preciso estarmos atentos às várias implicações da aparente inocência ou inocuidade do slogan escolhido. Penso que deveríamos estar mais atentos à profundidade do slogan desta nova América. Refletir, portanto, sobre como o lema, o slogan, o chavão criado pela campanha e agora governo de Donald Trump pode dar indícios interessantes sobre o lugar/papel que o governo republicano quer garantir aos Estados Unidos no cenário internacional, na sua interação com outros estados e no sistema do direito internacional. 

America First em sua simplicidade aponta, efetivamente, em muitas direções, de acordo com o contexto e da plateia. Poderíamos ler na afirmação: que, no início desta nova ordem mundial, nascida do fim da Guerra Fria, estava a América; in the begginning of this new world order was the american power and values; Que em primeiro lugar, do ponto de vista de qualquer competição, militar, esportiva, científica, tecnológica, financeira, the USA is the champion, the greatest, the number one; Que nas batalhas militares e comerciais entre os estados, os EUA tomarão seus interesses, como o primeiro critério, na solução de conflitos ou na condução dos negócios. America First diz, quase literalmente, que foi, é e será os EUA o primeiro a contar, inclusive a história. É, de qualquer modo, uma asserção sobre a sua primazia. Há, sem dúvida, uma dose de exagero nesta interpretação mas ela, como o slogan, é só um prefácio, um indício, um começo, um sinal. 

Desde este ponto de vista, o slogan e o logo e sua mensagem são promessas de que as relações diplomáticas entre nossos países serão marcadas pela assimetria e pela hierarquia do começo ao fim. A supremacia e a "liderança" dos Estados Unidos não devem ser tomadas como o pano de fundo fático e incontornável - como já vinha sendo há décadas - mas o princípio explícito para o começo de qualquer conversa. Mais uma vez, a primazia orgulhosa indica que a rede das relações exteriores dos Estados Unidos não buscará, prioritariamente, a construção de uma ordem internacional que busque a paz por meio do direito (seja ele o direito internacional ou os direitos humanos) em que os estados participantes gozem - apesar de todas as disparidades em termos de poderio econômico e militar - de um mínimo de igualdade de tratamento. A via privilegiada parece ser a da barganha e da negociação direta e bilateral - entre EUA e Europa, EUA e América Latina, etc. Uma ordem internacional estável regulada por meio de um ordenamento normativo como o Direito Internacional dos Direitos Humanos pode até ser incentivada, se concedermos aos americanos o privilégio da exceção. 

Assim, America First não é uma "retirada" do cenário internacional. Que os EUA venha em primeiro lugar aponta também para a pretensão de ser seguido, de ser o primeiro de uma série virtuosa, de uma boa ordenação. Uma boa ordem internacional, conquistada com a vitória americana na segunda metade do século XX, na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria. Não se trata de destruir ou abalar os alicerces e as vigas erguidas pelos próprios americanos na construção de uma ordem mundial mais cosmopolita – e mais afinada com os valores dos direitos humanos, da democracia e do livre-mercado - mas de dirigi-la; de ser ao mesmo tempo garantidor e exceção, criador e protagonista.

A escolha do primeiro número ordinal também aponta para a retórica da competição, da disputa e da ordenação hieráquica em detrimento da cooperação horizontal ou paritária. Ter sido o primeiro, ser o primeiro, almejar o primeiro lugar invoca uma atitute competitiva, onde as relações consistem, majoritariamente, num jogo de soma zero. Onde um ganha outro perde, onde os maiores triunfos são conquistados num ambiente de esforços contraditórios, em competição. 

O quadro competitivo, aliás, é uma das portas de entrada de uma retórica alicerçada no vocabulário dos mercados e dos negócios. À maneira das grandes corporações, Trump - assim como Dória, é bom não esquecer - pretende governar o país "negociando" com aliados, sendo, ao mesmo tempo "smart and tough", explorando as vulnerabilidades e as necessidades daqueles fornecedores, compradores, consumidores para que sintam o "peso e a força" do grande homem de negócios. Assim como atuam as grandes corporações, fazer todos os concernidos reconhecer a importância, o potencial de barganha e os riscos que se corre ao se enfrentar essas potências. 

Contra-dizer o America First é desafiar a possibilidade de estruturação das relações entre os estados (e dos habitantes dentro dos EUA) cujo pressuposto irretocável é a assimetria absoluta de um de seus participantes. Com um pouco de exagero, poderíamos dizer que não se trata de ser o primeiro da série (da ordem), mas do único fora dela. O elemento exterior que possibilita a inteligibilidade, a coerência e a estabilidade do conjunto inteiro. Not be the first, but be the one. 

Também consiste em desafiar a tese da anterioridade lógica do interesse próprio; do sujeito autossuficiente e consciente de suas próprias demandas, vulnerabilidades e valores. Segundo esta tese (ou princípio), todos os estados tendem naturalmente à priorização de suas próprias demandas e interesses em temas conflitantes no cenário internacional. Ainda que se conceda a este ponto, é questionável a afirmação de que é necessário que assim seja e que outros fatores, como crises humanitárias, genocídios e guerras, não possam assumir o lugar prioritário no nível das decisões inter-estatais. É o pressuposto de um sujeito estatal autocentrado, autossuficiente, plenamente consciente e independente das relações com o mundo na construção de sua identidade. Que historicamente tenha prevalecido esta ideia de ator e de interesse não resulta a avaliação de que assim deva ser. 

A leitura atenta e a interpretação ativa das formas de comunicação social do presidente Trump - seus tuítes, seus posts, seus discursos e suas entrevistas - poderão ajudar a criar uma narrativa que não esbarre na perplexidade causada pelo exotismo e aparente insensatez do novo comandante-em-chefe. Uma das contribuições mais interessantes do debate sobre a crítica da ideologia do final do século XX, já apontava para a proposta de não tentar procurar algo por detrás da aparência, de uma realidade encoberta, distorcida ou mesmo invertida no discurso e na dominação política. A forma da legitimação política no capitalismo tardio não necessita e não pretende esconder, mascarar, inverter os seus propósitos: estes são cruamente defendidos e afirmados. Pode-se, portanto, neste caso, explorar todas as implicações presentes na superfície mesma do discurso, de puxar as várias linhas de um novelo que se encontram amalgamadas numa única frase, num único mote, numa única ideia para criticar os modos de dominação atualmente existentes. Não há nada implícito, escondido, escamoteado neste slogan. Podemos encará-lo em sua crueza, em sua simplicidade. Em sua literalidade. 

De acordo com Charles Krauthammer, articulista conservador do Washington Post, o aparente destempero do presidente poderia funcionar para impulsionar os interesses norte-americanos no exterior porque atende, de uma só vez, os requisitos básicos da comunicação estratégica tanto com aliados quanto com inimigos. Numa revisão da MAD theory (mutual assured destruction) (ou teoria do louco em tradução livre), a imprevisibilidade do comportamento de Donald Trump serviria como constante alerta a aliados de que a menor de suas sensibilidades pode ser irritada por decisões que afetem os interesses dos Estados Unidos. Sua instabilidade serviria de alerta para o potencial dano desproporcional que poderia ser desencadeado pela insânia de vossa excelência. Para os inimigos, fica o alerta de que qualquer provocação pode ser tomada como uma declaração de guerra e que a "resposta" não encontra medida além da própria irritação do presidente. A ressignificação da MAD theory, que apaga a ameaça de destruição mútua para indicar a destruição total assegurada de apenas um dos lados - que é todo o resto do globo não-alinhado - e interpreta sua atividade por uma "teoria do louco" pura e simples espelha, de maneira indubitável, os contornos da interpretação hiperpatriótica da ordem internacional pós-Guerra Fria. 

Redundante dizer que tanto esta ideologia quanto este cenário não foram inaugurados por Trump. Talvez estejamos diante de uma nova versão de excepcionalismo sem peias, sem vergonha de sua autossuficiência e de fato orgulhoso de sua vocação empresarial. A promessa do Tio Sam vitaminado é que a retaliação virá não somente com a violação de certos direitos atrelados à soberania estatal no sistema do direito internacional, mas também, e sobretudo, quando interesses geopolíticos e comerciais estiverem em xeque. O alerta de Trump é para que os outros Estados atuem não somente em conformidade com o direito internacional, mas principalmente em consonância com os interesses americanos. O louco só fica descontrolado quando os sensatos (e os que tem juízo!) não conseguem interpretar corretamente seu simples imperativo prioritário: America First!
 
God bless all of us. 
Créditos da foto: Gage Skidmore

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