quinta-feira, 20 de abril de 2017

Lições da derrocada da Elf, a Petrobras francesa


PAULO MOREIRA LEITE
http://www.brasil247.com/

Os estudiosos dos movimentos do mercado mundial de petróleo, que apontam para uma retomada do controle norte-americano sobre maiores reservas do planeta, numa situação que lembra o mundo da Primeira Guerra (1914-1918), não podem deixar de encontrar paralelos entre o desmonte da Petrobras no governo Michel Temer com a dissolução da Elf-Aquitaine. Estatal francesa de petróleo criada em 1963, tornando-se uma dez das maiores do planeta, com um papel reconhecimento no fortalecimento da economia do país, a Elf foi privatizada e absorvida pela Total, quase quatro décadas mais tarde, na sequência de denúncias de corrupção que envolviam 305 milhões de francos, equivalentes a 1% de um faturamento gigantesco. 

Responsável pela etapa inicial do caso, uma juiza de primeira instância, Eva Joly, tornou-se celebridade nacional. Ela chegou a disputar a presidência da França pelo Partido Verde -- ficou com 2% dos votos -- e depois conquistou uma cadeira de deputada no parlamento europeu. O escândalo inspirou uma série de TV de relativo sucesso, "Os Predadores," com Nicole Garcia no papel da juíza, num retrato próximo do heroísmo. No cinema Claude Chabrol, um dos mestres da Nouvelle Vague, fez "A Comédia do Poder," com Izabelle Hupert, num perfil mais crítico. Após uma pesquisa minuciosa nos arquivos do Instituto Nacional de Televisão, que armazena a produção integral da TV francesa, o estudioso Gregory Carteaux julgou a cobertura em termos duros, como folhetim policial: "Apesar da falta evidente de informações, os casos financeiros são todos tratados em sequencias imóveis e escapadas dramáticas que não deixam lugar a dúvida: a televisão escreve a justiça-espetáculo," escreveu, no livro " Eva Jolly et les affaires financiéres. " 

Se a Petrobras foi fundada em 1954 por Getúlio Vargas, personagem que se projetou sobre a história do país por um quarto de século, deixando uma herança favorável ao desenvolvimento econômico e a defesa de uma política de autonomia frente as potências estrangeiras, de Gaulle liderou a resistência à ocupação nazista da França e, mais tarde, tomou várias iniciativas de afastamento, diferenciações e atritos limitados em relação a hegemonia norte-americana. 

Como a Petrobras no Brasil, a Elf cumpriu uma parte importante neste processo. Uma diferença, no caso francês, é que tratava-se do instrumento de uma potencia capaz de exercitar uma hegemonia -- muitas vezes de caráter imperial -- sobre outros povos e países. Mais do que uma empresa igual a tantas outras, privadas ou não, a Elf foi um braço economico-político do Estado. Organizada e administrada por homens de confiança do general de Gaulle, em grande parte saídos das Forças Armadas e do serviço secreto, a quem a estatal prestava substituía nos casos em que o próprio governo não podia agir diretamente.

Em busca de reservas de petróleo necessárias a industrialização do país, a Elf foi uma das responsáveis pelo desenvolvimento francês a partir da década de 1960, com um parque tecnológico respeitável e tecnologia de ponta em áreas importantes. A Elf protegeu e ampliou a influência francesa sobre nações africanas que tentavam livrar-se de vez do domínio colonial. Num processo contraditório, pelo qual estímulos ao desenvolvimento criam novas formas de domínio e atualizam antigas estruturas de poder, o pagamento aberto, com poucos disfarces, de comissões milionárias distribuídas a uma ampla clientela de lideranças locais abriu novas portas e consolidou aproximações diplomáticas. 

O acesso às reservas africanas, num período em que o Oriente Médio armazenava uma riqueza fora de cogitação além do mundo anglo-saxão, trouxe benefícios indiscutíveis para o país e também ajudou a transformar a Elf numa potência subterrânea da política francesa. Recursos fora de qualquer controle transparente, transformaram a empresa naquilo que Roland Dumas, advogado, socialista, antigo presidente da Corte Constitucional -- o Supremo Tribunal Federal francês -- e acima de tudo amigo de François Mitterrand , presidente da França entre 1981 e 1995, definiu como "vaca leiteira da República."

Por décadas a fio, era dali que saiam os recursos que financiavam os aliados e mais tarde herdeiros políticos do gaullismo, numa lista que incluiu presidentes, ministros, senadores e deputados, alimentados por um núcleo permanente de diretores e gerentes capazes de passar incólumes pelas tempestades políticas do país.

Empossado no Palácio do Eliseu, após 23 anos de domínio conservador sobre a presidência, durante seu reinado de 14 anos Mitterrand manteve tudo como encontrou. Abriu espaços generosos para os políticos aliados, mas também preservou os interesses dos antecessores. Nomeou o presidente da empresa, mas manteve os remanescentes do gaullismo na maioria dos postos-chave.

Com Mitterrand, os cofres da Elf também se abriram para cimentar o acordo entre o presidente francês e o chanceler alemão Helmut Kohl, que deu origem a União Europeia. As tratativas envolveram na aquisição bilionária de uma refinaria obsoleta, de baixa produtividade, em Leuna, na antiga Alemanha Oriental. O acordo serviu para preservar dois mil empregos. Também ajudou Kohl a receber os votos que necessitava para sua reeleição, conforme relato do jornalista Eric Decouty: "A compra da refinaria deu lugar a uma comissão de 250 milhões de francos," descreve Decouty, registrando que os recursos clandestinos que se encontravam numa conta secreta na Suíça.

Encerrado em segunda instância no final de 2003, o processo contra 37 executivoa e empresários gerou 30 condenações, em sua maioria por "desvio de patrimônio e créditos", "abuso de poder" e "uso de documentos falsos." Presidente da Elf entre 1989-1994, o engenheiro Loike Le Floch-Pringent foi condenado a três anos e meio de prisão. Cumprindo dois anos e meio. Era um aliado e protegido de Mitterrand, que logo após a chegada ao Eliseu já lhe entregou um posto de primeira linha, o comando da gigante estatal Rhone Poulanc, dona, entre outros produtos, dos tecidos Rhodia.

Outro personagem, que para muitos observadores cumpriu o papel mais relevante, teve um destino diverso. Colega de turma do gaullista Jacques Chirac na Escola Nacional de Administração, a disputada ENA, instituição que forma os principais quadros da elite política francesa, o executivo Andre Tarallo recebeu a maior condenação no caso, sete anos de cadeia. Também foi condenado no papel a pagar a maior multa, 2 milhões de euros.

Por trás de uma ocupação de nome genérico, Diretor geral de Hicrocarbonetos, Tarallo era conhecido como Monsieur Afrique por sua influência única nas tratativas com antigas colônias. Possuía um patrimonio lendário, que incluia uma villa espetacular na Corsega, sua terra natal. Chegou a admitir, no processo, que desviava 3 francos de cada barril de petróleo para uma conta secreta no paraíso fiscal de Liechtenstein e alegou agir com o aval de todos os presidentes que passaram pelo Eliseu durante a existência da Elf. Conseguiu deixar a prisão por motivos de saúde, semanas depois da condenação. Durante o governo de Nicolas Sarkozy, ganhou uma ação contra o fisco no valor de 6 milhões de euros, três vezes o valor do que multa sobre os desvios que foi levado a pagar após muita relutância.

A etapa final de existência da Elf teve inicio no período de coabitação entre Mitterrand e o primeiro ministro conservador Georges Balladur, que assumiu o posto com uma orientação de mercado, postura que obviamente incluía a estatal de petróleo. Em 1999, quando a Elf foi absorvida pela Total, a equação política entre presidente e primeiro-ministro estava invertida. O republicano Jaques Chirac encontrava-se no Eliseu e os socialistas foram chamados a formar o governo, com Lionel Jospim como primeiro ministro. Numa guerra de gigantes na Bolsa de Paris, na qual cada parte de tentava tomar posse do patrimônio da outra, a Total acabou levando a melhor. O caso só pode ser fechado com a concordância do governo, que possuía uma golden share que lhe dava o direito, se quisesse, de vetar a transação. 



(Em seguida, na primeira parte de uma entrevista ao 247, Loik Le Floch-Pringent, fala sobre impacto da dissolução da Elf sobre a economia francesa: "nossa potência industrial caiu em todas as áreas". Em outra parte da entrevista ao 247, Le Floch-Pringent fala sobre a corrupção que envolve nos negócios do petróleo desde o final do século XIX e explica suas condenações como efeito do "ataque combinado" de "jornalistas que se portavam como promotores de Justiça e juizes com problemas de ego e notoriedade").

Nenhum comentário:

Postar um comentário