domingo, 2 de abril de 2017

O dia do golpe


Testemunhas da história narram como foi o dia do golpe e os que se seguiram anunciando a sombra que durou 21 anos

Por Lilian Primi

Em 31 de março de 1964, as tropas do ge­neral Olímpio Mourão Filho saíram de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em direção à capital do estado da Guanabara, para depor o presi­dente em exercício, João Goulart, e destruir o “demônio comunista”. Uma reação dramática e precipitada ao discurso de Jango na Central do Brasil em favor das reformas de base.
Naquela tarde, Luiz Carlos Prestes reuniu-se com companheiros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na sala de sua casa, um apartamento no bairro Botafogo, onde se de­cidiu que ele deveria ligar para o brigadeiro Fran­cisco Teixeira, comandante da 3ª Zona Aérea e membro do partido, e perguntar se não seria vi­ável um ataque aéreo às tropas de Mourão, para dispersá-las. “A resposta que ouviu é que todos os seus comandados já haviam passado para o ou­tro lado e que não havia nada mais a fazer”, con­ta hoje a filha de Prestes, Anita Prestes, na época estudante de Química na Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro)

“Esse é um episódio pouco conhecido e muito deturpado. Eu sei de fonte limpa, ouvi de meu pai na época”, afirma Anita.

As bases de sustentação de João Goulart ha­viam sido literalmente derretidas com a cam­panha contra o “perigo comunista” impetrada pela elite civil e militar com apoio dos Estados Unidos e levada a cabo pela mídia burguesa, que estampou sua posição de apoio nas edições dos dias posteriores ao golpe. Para Anita, rea­ção às medidas que Jango vinha ocorrendo des­de janeiro, quando assinou a lei de controle da remessa de lucros para o estrangeiro. “Os ame­ricanos ficaram furiosos. Fizeram de tudo para demover o Jango dessa ideia, mas não conse­guiram”, lembra Anita.

O jornalista Flávio Tavares, colunista político do jornal Última Hora (UH) na época, diz que na manhã seguinte, um subordinado do brigadeiro Teixeira, o coronel Rui Moreira Lima, sobrevoou as tropas de Mourão com um jatinho desarma­do. “Ele era comandante da Base Aérea de SantaCruz, a maior do Brasil na época, e herói de guerra, com 94 missões de bombardeio na Itália. Chovia torrencialmente de Minas até o Rio, mas ele conseguiu furar as nuvens e sobrevoar as tro­pas, que correram para o mato”, narra Tavares.

Flávio já tinha atuação política na esquer­da gaúcha, havia deixado a militância, mas re­tomou depois do AI-5, o que o levou à prisão. “Fui trocado pelo embaixador dos Estados Uni­dos”, conta, se referindo ao sequestro de Char­les Burke Elbrick. Por conta da coluna no UH, estava junto de Jango durante suas últimas ho­ras na presidência.

Ele conta que Moreira Lima ainda pro­pôs bombardear as posições, mas precisava de uma ordem do presidente, que não deu. Junta­mente com outros jornalistas, Flávio viu Jan­go limpar as gavetas e o ouviu dizer que es­tava indo para Porto Alegre, onde o general Ladário Pereira Teles, comandante do 3º Exér­cito pretendia montar um governo de resistên­cia com o Grupo dos 11, liderado por Brizola.

Anita Prestes lembra que durante vários dias manteve a esperança nessa resistência no Rio Grande do Sul. “E a gente iria para lá lutar, mas nada disso aconteceu. Jango não quis derramamento de sangue e fugiu, levan­do o Brizola”, conta ela, que faz uma auto­crítica: “Na época achava totalmente possí­vel, mas hoje vejo que realmente não havia condições. Resistência armada seria suicídio e acho que o imperialismo dos Estados Uni­dos não admitiria de jeito nenhum um gover­no progressista naquele momento.”

Precipitação

O UH, criado por Getúlio Vargas e dirigido por Samuel Weiner, foi o único a não apoiar o golpe. Na mesma tarde do dia 31, o hoje escri­tor Ignácio de Loyola Brandão, na época com 28 anos e trabalhando como editor na redação paulistana do UH, esperava o desenrolar com apreensão junto com os colegas. “A filha do Mourão (Laurita) con­ta que, nesse dia, Caste­lo Branco pediu para re­troceder porque ele e seu grupo não estavam de acordo. Estavam combi­nados para dar o golpe apenas no fim do mês. Mas o Mourão era um louco. Era educadíssimo, mas nesse dia disse um palavrão e saiu com suas tropas”, relata Flávio.

“Ficamos, eu e toda a equipe da redação espe­rando notícias do Kruel (Amaury), com a primei­ra página aberta até a meia-noite”, lembra Ig­nácio. A adesão de Kruel, comandante do 2º Exér­cito em São Paulo e tido como apioador de Jan­go, seria decisiva para barrar Mourão. Ao con­trário do clima em Brasília, onde segundo Flávio a direita estava alvoroçada, e de Minas, onde a repressão já promovia uma onda de violência, em São Paulo a vida cotidiana corria sem alardes e ninguém acreditava em golpe, apesar de boatos circularem há pelo menos dois anos. “Haviam as marchas das famílias, mas o povo mesmo sequer sabia o que era aquilo, o que era o tal perigo co­munista”, relata o escritor.

A tensão mais visível era a provocada pela violência policial durante as greves. “Que é a mesma de agora. Me lembro da greve de jorna­listas de 1961, quando a polícia veio nos atacar com brucutus e bombas de efeito moral”, conta Ignácio, que estava no piquete dos Diários As­sociados na ocasião.

O suspense continuou até o dia seguinte, quando Kruel aderiu aos golpistas - a adesão dele foi uma incógnita até o início deste 2014, quando o coronel reformado, Erimá Pinhei­ro Moreira, revelou na Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, que Kruel aceitou subor­no de 1,2 milhão de dólares proposto pelo en­tão presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Raphael de Souza Nochese. “A direita, que era muito atrasada, falava aber­tamente em derrubar o governo. A direita criou a ideia de que Jango estava preparando um gol­pe”, lembra Flávio.

A notícia da adesão de Kruel chegou à reda­ção do UH de São Paulo no dia seguinte, jun­to com um aviso de que o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) havia saído do campus do Ma­ckenzie, em Higienópolis, para atacar o jornal. “O diretor da redação, o Jorge da Cunha Lima, desceu e liberou todos os funcionários. Só que ninguém saiu. Plantamos um olheiro na esquina do Teatro Municipal”, relata Loyola. A redação foi invadida no final daquela tarde. “Eles que­braram a máquina de escrever, teletipo e telefo­tos”, lembra Loyola.

O escritor lembra ainda de uma cena no jan­tar daquele dia: “Os artistas todos frequentavam o (restaurante) Gigetto, assim como os jornalis­tas. Na noite do dia primeiro, lembro da come­moração dos repórteres Maurício Loureiro Gama e José Carlos de Moraes, o Tico Tico. Eles entra­ram gritando ‘agora o Brasil está bom. Acabou a bagunça!’. E se tornaram para sempre odiados por toda a classe artística.”

Vida Normal

Loyola avalia que, apesar desses arroubos e das passeatas da classe média, a maior parte da população da cidade não entendia o que estava acontecendo. “O Kruel aderiu, o Jango tinha ido embora do País e a vida seguia normal. A reda­ção foi reaberta 20 dias depois com uma baixa de 30% do quadro de funcionários, e o jornal voltou a circular sem um único anúncio.”

No Rio de Janeiro, Anita conta que também experimentou certa normalidade nesses primei­ros dias pós-golpe, mas havia medo no ar. “As pessoas estavam com medo, medo do comunis­mo. A classe média em grande parte foi ganha e houve uma participação importante da ala con­servadora da igreja, tanto que houve grandes manifestações”, argumenta.

“Eu vi a Marcha dos 100 Mil no dia dois de abril. Veio de Copacabana, um bairro de clas­se média alta, com o general Dutra (Eurico Gaspar) à frente, a igreja com aqueles estan­dartes contra o comunismo. Passaram pela mi­nha rua. Era uma marcha gigantesca, não sei quantas pessoas, mas era uma massa gigantes­ca apavorada gritando contra o comunismo, bandeiras penduradas nas janelas dos prédios.”

Ela também se lembra da “chuva torrencial” que caiu no Rio nos dias um e dois, porque au­mentava a sensação de caos, em meio a uma greve parcial nos trans­portes. “Tivemos muita dificuldade de nos loco­mover nesses dias. Lem­bro-me de que houve uma grande manifesta­ção geral dos estudantes na Cinelândia na tarde do dia primeiro. Eu não fui – fiquei no campus da Praia Vermelha, ten­tando tirar uma greve.” A ideia era terminar as as­sembleias e ir direto ao Centro. Muita gente foi. E para surpresa de todos, os tanques chegaram e se voltaram contra o povo. “Quando viram os tan­ques chegando, pensaram que tinham sido en­viados para apoiar a manifestação. Foi um cho­que. Confusão danada. Aí foi um horror”, conta Anita, que foi avisada de que estava sendo pro­curada pela polícia e não foi para a Cinelândia.

Como na redação do UH de Loyola Brandão, na União Nacional dos Estudantes (UNE), tam­bém ficaram até tarde esperando a decisão de Kruel. “A questão que se discutia era a seguinte: o que o grande general Kruel ia fazer. Era deci­siva a sua atitude. Havia um suspense e depois se soube que Kruel disse ao Jango: ‘ou fechava os sindicatos e acabava com os comunistas ou então não teria o apoio das Forças Armadas’.” Anita não foi presa no golpe por “inexperiên­cia” da polícia, como ela define. “Eram tantas buscas, que mobilizaram inclusive as delegacias de bairro, com efetivos totalmente desqualifica­dos”, explica. Com os pais na clandestinidade desde o dia 31, ela ficou com as tias em casa, esperando que a polícia chegasse. “Isso só aconteceu no dia nove. O policial entrou e perguntou por mim. Dissemos que eu não estava e, para a minha sorte, eles acreditaram”, diz ela, que anos depois deixou o País com destino a Moscou.

Depois do golpe também se descobriu que a prometida mobilização popular era uma ilusão, avalia Anita. “Se falava há dois anos sobre o golpe e nunca acontecia. Aí todo mundo subestimou. E não havia mobilização popular na realidade. Falava-se muito, mas na realidade não se fazia nada. Era tudo restrito a uma cúpula”, diz Anita, no que é seguida por Flávio Tavares: “Ninguém queria o golpe, então não se acreditava.”

A partir do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva e Rubem Fonseca, foi lançada uma campanha de difamação para fomentar a ideia de que Jango planejava implantar uma ditadura comunista no Brasil. “Espalhou as coisas mais inverídicas, mas tão bem espalhada que o País todo acreditou”, diz Flávio.

“O Brasil nunca tinha despertado para tantas coisas como naqueles anos. Na cultura, cinema, arte, pintura, ciências. O Brasil se redescobriu”, descreve Flávio o momento efervescente que o País vivia com Bossa Nova, Cinema Novo, os centros populares de cultura, Teatro de Arena, do Oprimido, literatura etc., incluindo também as novidades - ideológicas e comportamentais - que chegavam de fora, como a contra-cultura, o underground, os beatniks, hippies etc.

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