Testemunhas da história narram como foi o dia do golpe e os que se seguiram anunciando a sombra que durou 21 anos
Por Lilian Primi
Em 31 de março de 1964, as tropas do general Olímpio Mourão Filho saíram de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em direção à capital do estado da Guanabara, para depor o presidente em exercício, João Goulart, e destruir o “demônio comunista”. Uma reação dramática e precipitada ao discurso de Jango na Central do Brasil em favor das reformas de base.
Naquela tarde, Luiz Carlos Prestes reuniu-se com companheiros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na sala de sua casa, um apartamento no bairro Botafogo, onde se decidiu que ele deveria ligar para o brigadeiro Francisco Teixeira, comandante da 3ª Zona Aérea e membro do partido, e perguntar se não seria viável um ataque aéreo às tropas de Mourão, para dispersá-las. “A resposta que ouviu é que todos os seus comandados já haviam passado para o outro lado e que não havia nada mais a fazer”, conta hoje a filha de Prestes, Anita Prestes, na época estudante de Química na Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro)
“Esse é um episódio pouco conhecido e muito deturpado. Eu sei de fonte limpa, ouvi de meu pai na época”, afirma Anita.
As bases de sustentação de João Goulart haviam sido literalmente derretidas com a campanha contra o “perigo comunista” impetrada pela elite civil e militar com apoio dos Estados Unidos e levada a cabo pela mídia burguesa, que estampou sua posição de apoio nas edições dos dias posteriores ao golpe. Para Anita, reação às medidas que Jango vinha ocorrendo desde janeiro, quando assinou a lei de controle da remessa de lucros para o estrangeiro. “Os americanos ficaram furiosos. Fizeram de tudo para demover o Jango dessa ideia, mas não conseguiram”, lembra Anita.
O jornalista Flávio Tavares, colunista político do jornal Última Hora (UH) na época, diz que na manhã seguinte, um subordinado do brigadeiro Teixeira, o coronel Rui Moreira Lima, sobrevoou as tropas de Mourão com um jatinho desarmado. “Ele era comandante da Base Aérea de SantaCruz, a maior do Brasil na época, e herói de guerra, com 94 missões de bombardeio na Itália. Chovia torrencialmente de Minas até o Rio, mas ele conseguiu furar as nuvens e sobrevoar as tropas, que correram para o mato”, narra Tavares.
Flávio já tinha atuação política na esquerda gaúcha, havia deixado a militância, mas retomou depois do AI-5, o que o levou à prisão. “Fui trocado pelo embaixador dos Estados Unidos”, conta, se referindo ao sequestro de Charles Burke Elbrick. Por conta da coluna no UH, estava junto de Jango durante suas últimas horas na presidência.
Ele conta que Moreira Lima ainda propôs bombardear as posições, mas precisava de uma ordem do presidente, que não deu. Juntamente com outros jornalistas, Flávio viu Jango limpar as gavetas e o ouviu dizer que estava indo para Porto Alegre, onde o general Ladário Pereira Teles, comandante do 3º Exército pretendia montar um governo de resistência com o Grupo dos 11, liderado por Brizola.
Anita Prestes lembra que durante vários dias manteve a esperança nessa resistência no Rio Grande do Sul. “E a gente iria para lá lutar, mas nada disso aconteceu. Jango não quis derramamento de sangue e fugiu, levando o Brizola”, conta ela, que faz uma autocrítica: “Na época achava totalmente possível, mas hoje vejo que realmente não havia condições. Resistência armada seria suicídio e acho que o imperialismo dos Estados Unidos não admitiria de jeito nenhum um governo progressista naquele momento.”
Precipitação
O UH, criado por Getúlio Vargas e dirigido por Samuel Weiner, foi o único a não apoiar o golpe. Na mesma tarde do dia 31, o hoje escritor Ignácio de Loyola Brandão, na época com 28 anos e trabalhando como editor na redação paulistana do UH, esperava o desenrolar com apreensão junto com os colegas. “A filha do Mourão (Laurita) conta que, nesse dia, Castelo Branco pediu para retroceder porque ele e seu grupo não estavam de acordo. Estavam combinados para dar o golpe apenas no fim do mês. Mas o Mourão era um louco. Era educadíssimo, mas nesse dia disse um palavrão e saiu com suas tropas”, relata Flávio.
“Ficamos, eu e toda a equipe da redação esperando notícias do Kruel (Amaury), com a primeira página aberta até a meia-noite”, lembra Ignácio. A adesão de Kruel, comandante do 2º Exército em São Paulo e tido como apioador de Jango, seria decisiva para barrar Mourão. Ao contrário do clima em Brasília, onde segundo Flávio a direita estava alvoroçada, e de Minas, onde a repressão já promovia uma onda de violência, em São Paulo a vida cotidiana corria sem alardes e ninguém acreditava em golpe, apesar de boatos circularem há pelo menos dois anos. “Haviam as marchas das famílias, mas o povo mesmo sequer sabia o que era aquilo, o que era o tal perigo comunista”, relata o escritor.
A tensão mais visível era a provocada pela violência policial durante as greves. “Que é a mesma de agora. Me lembro da greve de jornalistas de 1961, quando a polícia veio nos atacar com brucutus e bombas de efeito moral”, conta Ignácio, que estava no piquete dos Diários Associados na ocasião.
O suspense continuou até o dia seguinte, quando Kruel aderiu aos golpistas - a adesão dele foi uma incógnita até o início deste 2014, quando o coronel reformado, Erimá Pinheiro Moreira, revelou na Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, que Kruel aceitou suborno de 1,2 milhão de dólares proposto pelo então presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Raphael de Souza Nochese. “A direita, que era muito atrasada, falava abertamente em derrubar o governo. A direita criou a ideia de que Jango estava preparando um golpe”, lembra Flávio.
A notícia da adesão de Kruel chegou à redação do UH de São Paulo no dia seguinte, junto com um aviso de que o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) havia saído do campus do Mackenzie, em Higienópolis, para atacar o jornal. “O diretor da redação, o Jorge da Cunha Lima, desceu e liberou todos os funcionários. Só que ninguém saiu. Plantamos um olheiro na esquina do Teatro Municipal”, relata Loyola. A redação foi invadida no final daquela tarde. “Eles quebraram a máquina de escrever, teletipo e telefotos”, lembra Loyola.
O escritor lembra ainda de uma cena no jantar daquele dia: “Os artistas todos frequentavam o (restaurante) Gigetto, assim como os jornalistas. Na noite do dia primeiro, lembro da comemoração dos repórteres Maurício Loureiro Gama e José Carlos de Moraes, o Tico Tico. Eles entraram gritando ‘agora o Brasil está bom. Acabou a bagunça!’. E se tornaram para sempre odiados por toda a classe artística.”
Vida Normal
Loyola avalia que, apesar desses arroubos e das passeatas da classe média, a maior parte da população da cidade não entendia o que estava acontecendo. “O Kruel aderiu, o Jango tinha ido embora do País e a vida seguia normal. A redação foi reaberta 20 dias depois com uma baixa de 30% do quadro de funcionários, e o jornal voltou a circular sem um único anúncio.”
No Rio de Janeiro, Anita conta que também experimentou certa normalidade nesses primeiros dias pós-golpe, mas havia medo no ar. “As pessoas estavam com medo, medo do comunismo. A classe média em grande parte foi ganha e houve uma participação importante da ala conservadora da igreja, tanto que houve grandes manifestações”, argumenta.
“Eu vi a Marcha dos 100 Mil no dia dois de abril. Veio de Copacabana, um bairro de classe média alta, com o general Dutra (Eurico Gaspar) à frente, a igreja com aqueles estandartes contra o comunismo. Passaram pela minha rua. Era uma marcha gigantesca, não sei quantas pessoas, mas era uma massa gigantesca apavorada gritando contra o comunismo, bandeiras penduradas nas janelas dos prédios.”
Ela também se lembra da “chuva torrencial” que caiu no Rio nos dias um e dois, porque aumentava a sensação de caos, em meio a uma greve parcial nos transportes. “Tivemos muita dificuldade de nos locomover nesses dias. Lembro-me de que houve uma grande manifestação geral dos estudantes na Cinelândia na tarde do dia primeiro. Eu não fui – fiquei no campus da Praia Vermelha, tentando tirar uma greve.” A ideia era terminar as assembleias e ir direto ao Centro. Muita gente foi. E para surpresa de todos, os tanques chegaram e se voltaram contra o povo. “Quando viram os tanques chegando, pensaram que tinham sido enviados para apoiar a manifestação. Foi um choque. Confusão danada. Aí foi um horror”, conta Anita, que foi avisada de que estava sendo procurada pela polícia e não foi para a Cinelândia.
Como na redação do UH de Loyola Brandão, na União Nacional dos Estudantes (UNE), também ficaram até tarde esperando a decisão de Kruel. “A questão que se discutia era a seguinte: o que o grande general Kruel ia fazer. Era decisiva a sua atitude. Havia um suspense e depois se soube que Kruel disse ao Jango: ‘ou fechava os sindicatos e acabava com os comunistas ou então não teria o apoio das Forças Armadas’.” Anita não foi presa no golpe por “inexperiência” da polícia, como ela define. “Eram tantas buscas, que mobilizaram inclusive as delegacias de bairro, com efetivos totalmente desqualificados”, explica. Com os pais na clandestinidade desde o dia 31, ela ficou com as tias em casa, esperando que a polícia chegasse. “Isso só aconteceu no dia nove. O policial entrou e perguntou por mim. Dissemos que eu não estava e, para a minha sorte, eles acreditaram”, diz ela, que anos depois deixou o País com destino a Moscou.
Depois do golpe também se descobriu que a prometida mobilização popular era uma ilusão, avalia Anita. “Se falava há dois anos sobre o golpe e nunca acontecia. Aí todo mundo subestimou. E não havia mobilização popular na realidade. Falava-se muito, mas na realidade não se fazia nada. Era tudo restrito a uma cúpula”, diz Anita, no que é seguida por Flávio Tavares: “Ninguém queria o golpe, então não se acreditava.”
A partir do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva e Rubem Fonseca, foi lançada uma campanha de difamação para fomentar a ideia de que Jango planejava implantar uma ditadura comunista no Brasil. “Espalhou as coisas mais inverídicas, mas tão bem espalhada que o País todo acreditou”, diz Flávio.
“O Brasil nunca tinha despertado para tantas coisas como naqueles anos. Na cultura, cinema, arte, pintura, ciências. O Brasil se redescobriu”, descreve Flávio o momento efervescente que o País vivia com Bossa Nova, Cinema Novo, os centros populares de cultura, Teatro de Arena, do Oprimido, literatura etc., incluindo também as novidades - ideológicas e comportamentais - que chegavam de fora, como a contra-cultura, o underground, os beatniks, hippies etc.
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