quinta-feira, 13 de abril de 2017

O grande truque de transformar liberdade em qualquer outra coisa

O grande truque de transformar liberdade em qualquer outra coisa

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A discussão sobre o sistema prisional brasileiro pode ser encarada, por algumas perspectivas. Iremos classificar, de forma rápida, em três posições: a primeira, de uma forma responsável do ponto de vista intelectual e com conhecimento da realidade prisional, discutindo-se a real necessidade do encarceramento e da política punitivista. A partir dessa, só é possível concluir por seu fim. As outras perspectivas são menos comprometidas com os dois aspectos anteriores: uma posiciona-se no ponto mais extremo da primeira já narrada, em que fundamenta um aumento do aprisionamento como um fim em si mesmo.

Sobre essa, não é a oportunidade de (des)tratar, mas oportunidades não faltam ao leitor e autores qualificados para tanto também. No meio do caminho – e que será tratado como medíocre, já que fica no meio – fica um discurso bem absorvido pela maioria – compondo um senso comum – sobre um sistema prisional episodicamente ruim, ou eventualmente ilegal. Uma ilegalidade progressiva, ou qualquer criatura que exista.
Explicando melhor: a fé e crença na existência de um sistema prisional que na teoria é muito bem desenhado e pode funcionar, mas que por motivos fáticos impedem que a prática seja correspondente à teoria. Sempre são circunstancias que impedem que o sistema prisional cumpra sua função. Essa perspectiva é igualmente falha, e um ponto central  dela precisa ser combatido.
Essa visão opera uma espécie pareidolia jurídica da abordagem dada ao problema do sistema prisional. Passamos a enxergar o sistema prisional com as mesmas premissas – já questionáveis, como veremos – que os direitos sociais são postos em nosso ordenamento jurídico, o que facilita um conformismo social e vende muito bem essa perspectiva.
Por convenção – de quem, não é possível afirmar – no ordenamento jurídico brasileiro tomamos como verdade inquestionável a distinção dada aos direitos de status positivo ou negativo. No caso dos direitos fundamentais de status negativo, garante-se ao indivíduo um espaço de liberdade frente ao Estado, guardando-o de uma interferência arbitrária. Tais direitos, por supostamente exigirem somente uma ausência de violação através omissão do Estado, poderiam ser garantidos de forma mais eficaz – quase plena – e imediatamente.
Por sua vez, os direitos fundamentais de status positivo conferem ao indivíduo o direito de exigir do Poder Público prestações materiais, atuando positivamente para realizar uma prestação. Por isso, tais direitos recebem uma ressalva quanto à sua concretização: devem ser prestados de forma programática, de acordo com as reais condições de o Estado ofertar aqueles direitos. O grande truque.
Antes de avançar para o tratamento do sistema prisional, é importante frisar que essa distinção – como dito – é convencional e merece ser rediscutida, não tomada como um dogma indiscutível. Um dos pontos para essa revisão e que é importante para o momento é a falácia do custo zero dos direitos fundamentais de status negativo. Não são direitos garantidos de forma desonerada ao Estado. Justamente porque não basta existirem, mas precisam também ser garantidos, o que pressupõe a existência de uma estrutura que permita o seu gozo de forma livre e seu restabelecimento imediato, no caso de violações. Nesse quadro, podemos incluir praticamente todo o funcionamento do sistema de justiça como custo da garantia dos direitos fundamentais de status negativo. Ainda, o exercício do Poder de Polícia da atividade executiva e a própria polícia.
Ainda que ao poder judiciário também sejam levados casos relativos aos direitos sociais – prestacionais – a maioria dos feitos pode ser associado à garantia de direitos de primeira dimensão: liberdade de ir e vir, contratual, propriedade ou qualquer outro do extenso rol.
Retornando ao ponto de partida, quando tratamos dos problemas relativos ao sistema prisional, costumamos fazer uma pareidolia jurídica: olhar para um problema que envolve eminentemente questões relativas a direitos de status negativo – liberdades – e enxergar justificativas e distorções que são aplicáveis – e de forma crítica – aos direitos de status positivo.
Falar do sistema prisional é falar dos indivíduos que estão presos. Prisão, que envolve restrição de liberdade. Liberdade: status negativo. O ambiente prisional não é um sistema para “garantia tardia” de direitos sociais. Embora seja indiscutível que a maioria absoluta das pessoas presas – vide Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil/Secretaria-Geral da Presidência da República. Brasília. 2014 – sejam vulneráveis em decorrência da não efetivação anterior de direitos sociais, não é por essa razão (ou não no discurso manifesto) que são presos. Portanto, o cárcere não é um estabelecimento cuja função seja efetivar tais direitos. Reforçamos tal entendimento ao afastar qualquer pretensão ressocializadora da pena, mas que não será objeto de abordagem neste momento.
Ao garantir ao preso o acesso à saúde, educação, trabalho ou qualquer outro elemento que exija uma prestação estatal, só podemos encontrar duas justificativas constitucionais: a primeira é a de que a própria constituição não admitiu a retirada de qualquer desses direitos, já que a pena constitucional máxima admitida é a restrição à liberdade de ir e vir; e a segunda – e desdobramento da primeira – é a de que tais direitos são mantidos como forma de impedir a imposição de penas cruéis e que ofendam a dignidade humana da pessoa encarcerada.
Portanto, não é função da prisão a efetivação dos direitos prestacionais, mas sim um limite à pena imposta cujo Poder Público não pode violar. Assim, tais limites não desnaturam, mas sim reforçam que o sistema prisional trata essencialmente de direitos de status negativo – liberdades! Independe do fato de que para garantir tais limites tenha o estado que custear e ter despesas, já que a teoria do custo zero dos direitos de status negativo não se sustenta.
Doutro lado, quando falamos em sistema prisional brasileiro e nos seus problemas, embora sempre possamos destacar a falta de garantia de tais limites ao poder punitivo estatal – carência de vaga de emprego, estudo, lazer etc – o cerne da questão não gira em torno de tais elementos prestacionais satélites. Quem atua no sistema prisional brasileiro, e até mesmo quem não conseguiu ignorar os últimos massacres ocorridos em unidades prisionais no ano de 2017 sabe que as mazelas do sistema prisional falam antes de violação às liberdades e dignidade: hiper encarceramento, excesso de execução da pena e de prisão provisória, falta de espaço, condições insalubres de habitação, falta de condições mínimas para garantir uma pena cumprida por um ser humano, tortura.
Na atuação e litigância no sistema prisional em favor das pessoas presas, nenhuma ação, ainda que vise exclusivamente a prestação de uma medida prestacional por parte do estado – vagas de trabalho ou estudo, médicos e prestação de serviços da saúde etc – deveria deixar de ter como ponto de partida as péssimas condições estruturais das unidades prisionais, o excesso de pessoas presas, as violações à integridade do preso etc. Antes de pedir qualquer prestação, quer-se garantir o mínimo que são as condições adequadas de privação da liberdade. Mesmos tais pedidos não desnaturam: requer-se que o poder punitivo respeite os limites constitucionais impostos.
Apesar de os problemas do sistema prisional brasileiro gritarem por liberdade, clamarem para impedir o amontoamento de corpos vivos – antes que virem só pilhas de corpos, como tem ocorrido – só o que ouvimos é o reforço ao discurso medíocre da ilegalidade temporária, das faltas de condições estruturais para permitir que o sistema prisional funcione de forma adequada. Ou seja, aplicamos aquele discurso que já nos acostumamos a ouvir sobre os direitos prestacionais – de que devem ser garantidos de forma programática, a medida em que existirem reais condições de efetivação – a um problema eminentemente relativo a direitos de liberdade.
Se não se pode por como evidente a intenção, é mais que evidente o efeito de tal jogo jurídico. Jogar os problemas do sistema prisional na mesma cova que jogamos os direitos sociais permite a manutenção escancarada de um sistema prisional ilegal com uma promessa de solução em um futuro que nunca existirá. Autoriza a manutenção de um vivo princípio do less eligibility. E conquista a sociedade para o discurso medíocre com base em argumentos sobre a prioridade na garantia de tais direitos.
O princípio da less elibility impõe que as condições de (sobre)vida de alguém que esteja encarcerado devam ser extremamente piores do que as piores condições de vida enfrentadas por alguém que não esteja na condição de encarceramento. Primeiro, opera-se uma diferenciação da pessoa em duas classes: pessoas presas são diferentes de pessoas que não estão presas. Essa diferenciação é cada vez mais reforçada pela seletividade do nosso sistema penal e com grande apoio da mídia em sua função punitiva.
Segundo: se estamos diante de uma mesma cova em que apenas um punhado por vez pode ser salvo – dado as limitações fáticas da garantia do direito (o grande truque) – teremos que escolher muito bem quais são nossas prioridades. Portanto, solucionar os problemas do sistema prisional – que são transmudados em questões prestacionais da mesma natureza – nunca terão prioridade sobre a garantia dos demais direitos que disputam o mesmo punhado de verbas: educação de nossas crianças, oportunidades de emprego para nossos jovens, saúde debilitada para nossa população em geral que sofre com um SUS sucateado etc.
Posso, portanto, me sentir muito mais confortável em acreditar que a hora e a vez do sistema prisional vai chegar, mas não antes desses outros direitos, já que estão todos na mesma cova. Inclusive, podia ser muito pior, já que sequer eu estou concordando com a alternativa do bandido bom é bandido morto”. Aí está o grande truque que faz com que o discurso medíocre – que está no meio – seja tão atrativo, ao ser sustentado por uma suposta racionalidade.
Por sua vez, tudo isso autorizará que o sistema prisional continue em um estado de esperança de legalidade. Ninguém é capaz de encobrir a ilegalidade, inconstitucionalidade, imoralidade e tantos outros adjetivos do sistema prisional. Mas tudo isso fica pequeno quando construímos toda essa lógica distorcida. E aí, é possível aceitar com muito menos clamor esse absurdo que temos em nosso sistema prisional. A ilegalidade é temporária. Essas mortes, um dia acabarão.
Mudar essa narrativa é extremamente difícil. Aparentemente teremos que continuar repetindo, como um mantra. Quando denunciamos os problemas do sistema prisional, estamos falando de liberdade, integridade, vida e mais liberdade.
Rochester Oliveira Araújo é mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Defensor Público do Estado do Espírito Santo; Membro do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo.

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