sábado, 20 de maio de 2017

A luta de classes em França, século XXI

http://resistir.info/ // por Daniel Vaz de Carvalho
Em marcha sob comando.
1 – Contradições no seio do capital 

Quando Marx escreveu A luta de classes em França configurava uma forma diferente de análise dos acontecimentos históricos, o materialismo histórico, não determinada por "personalidades" e "heróis", mas pelas relações de produção e pela luta de classes, isto sem que o papel de dirigentes e protagonistas deixasse de ser significativo. 
É por isso que considerar Macron "um mal menor" ou Marine le Pen (M le P) a "extrema-direita" sem que do ponto de vista marxista isto seja explicitado, são expressões vazias de conteúdo e portanto alienantes. Parece-nos que em vez de se repetir de forma acrítica as formulações ideológicas que o capital veicula, se deveria começar por analisar como se desenrola luta de classes na UE. 
O que separa aqueles protagonistas resulta das contradições do capitalismo a nível nacional e internacional, mergulhado numa interminável crise, suportada pelo proletariado e pelas MPME (Micro, Pequenas e Médias Empresas), enquanto a oligarquia acumula riqueza como nunca, desbaratada em paraísos fiscais e na especulação.

Perante a crise capitalista agravada com o euro, a França encontra-se num processo de decadência. Desde 1999 em termos constantes o PIB cresceu a uma média anual de 1,4%, porém desde 2008, inferior a 0,5%. A dívida pública atinge 100% do PIB, o desemprego 10,5% em 2016. A deriva reacionária da UE tornou a França um país dependente, submetido aos interesses da Alemanha.

A grande burguesia financeira e monopolista tornou-se, tal como nos chamados países periféricos, subalterna dos países dominantes e do imperialismo como forma de defender os seus interesses. A UE e o "atlantismo" da NATO são as suas primeiras linhas de defesa. Esta situação faz-se em detrimento de todas as demais camadas não monopolistas, MPME, quadros (a pequena e média burguesia) e proletariado.

Contudo, analisando os resultados na primeira volta verificamos que o triunfalismo europeísta não passa de fogo-de-vista para disfarçar o seu nervosismo. Todos os candidatos se pronunciaram por "mudanças" e os que claramente se opunham à UE e seus tratados, apesar da manipulação mediática atingiram perto de 50%.

2 – Democracia, direita e extrema-direita na UE 

Extrema-direita e extrema-esquerda (os extremismos) fazem parte da linguística ("novilíngua") adotada para ilibar o neoliberalismo e o federalismo "europeísta", atacando tudo o que mexa contra estes desígnios.

No entanto, a democracia da UE esgota-se quando estão em causa os interesses do grande capital e da finança, basta ver como se processaram as negociações para o TTIP, em total desprezo pelos parlamentos nacionais e pelo europeu e até por regras que obrigavam a ter em conta a opinião expressa em abaixo-assinado pelos cidadãos. Bem dizia Engels que "os partidos da ordem, afundam-se com a legalidade que eles próprios criam".

A UE usa todos os meios antidemocráticos para suprimir a soberania e portanto a democracia. Basta ver como se transformou o governador do Banco de Portugal (e os outros) em mero funcionário do BCE, como foram sonegadas informações que implicaram milhares de milhões de euros no caso BANIF. Como foi e é tratada a Grécia. Como burocratas interferem nas políticas internas dos países sem consideração pelas opções democráticas. Como espreitam qualquer deslize das contas nacionais para submeter o país às suas imposições e mesmo sanções, que a direita (não será extrema-direita?) desejaria, e não perde oportunidade de aplaudir e fazer campanha por isso.

Após as eleições em França, Moscovici veio exigir mais "reformas" em França; Junquer diz ser "flexível", quanto ao mesmo tema. É o habitual papel do polícia (político) bom e do polícia mau na UE.

O projeto "europeísta" pretende conciliar/submeter as classes médias e o proletariado à ideologia e interesses oligárquicos, consolidando o domínio destes, mascarando-o com conceitos abstratos e contraditório de democracia. Burocratas, políticos e propagandistas exibem arrogância face aos interesses das camadas populares que desprezam ("sindicatos irreformáveis"). Limitam-se a seguir o que os centros de ingerência do imperialismo determinam como "politicamente correto", o que cai fora desta escolástica taxam de "extremismo". Não passam de acólitos do capitalismo internacional.

Para definir o que é extrema-direita é necessário partir da luta de classes. O fascismo é a ditadura terrorista do grande capital, a extrema-direita é a ditadura do grande capital com a máscara da democracia. A UE tem sido o garante da manutenção desta ordem á custa de todas as demais classes e camadas não monopolistas, políticas que são de facto extrema-direita.

O neoliberalismo associado á globalização e seus tratados de "comércio livre" é um neofascismo, que impõe a ditadura das transnacionais, o totalitarismo de instituições burocráticas, sanções, ingerência, agressões. A austeridade neoliberal é um processo de extrema-direita. Que fariam PSD e CDS se permanecessem no governo? No seu projeto, tentar mudar a Constituição, usando para isso as "regras europeias", anular o Tribunal Constitucional, agravar a austeridade, liquidar mais direitos laborais.

Políticas consideradas normais e democráticas nos anos 60 e 70 do século passado passaram a ser de extrema-direita (ou extrema-esquerda!). Mas por exemplo o controlo de fronteiras era uma função básica da soberania, que os países socialistas justificadamente praticavam, tal como o controlo sobre a imigração. Mas tal já não choca os "bons espíritos" quando nos EUA - e não foi nada inventado pelo Trump – mesmo um turista tem de declarar não ter afinidades com o comunismo.

O apoio ao neonazismo em Kiev, o fechar os olhos ao fascismo na Hungria, Polónia, países Bálticos, o apoio à agressão à Síria, à Líbia, ao Afeganistão nos anos 70 aquando na sua via para o socialismo, a diabolização de dirigentes que defendem a soberania ou vias de desenvolvimento diferentes na Venezuela, na Rússia, na Coreia do Norte, etc. configuram expressões de extrema-direita, de desprezo pela vontade dos povos. Hollande – e Macron – estiveram e estão entre os mais acérrimos defensores de uma intervenção militar direta na Síria.

Votações contrárias aos desígnios das oligarquias são, sempre que possível, rejeitadas e atribuídas à ignorância do "proletariado suburbano" que se deixa seduzir pelos valores materialistas de "ter dinheiro na carteira". O desprezo pelas massas populares é característico dos sistemas dominados por burocracias. São, como no Brexit, ou em França, os ignorantes, os sem cultura que votam contra a "Europa" e o seu "projeto". Claro que os interesses das oligarquias são sempre nobres, tal como "nobre" o ataque aos direitos laborais e "nobre" o facto das "empresas francesas terem pago 50 mil milhões de euros de dividendos aos seus acionistas, um recorde". (Renault Lambert, em Le Monde Diplomatique, maio.2017).

3 – O Projeto Macron 

È importante saber quem apoia e quem financia qualquer projeto político. Neste aspeto Macron é apoiado em peso pela finança pelos media controlados, mas não só. Juntaram-se responsáveis do PCF, o secretário-geral da CGT, inclusive o Sr. Tsipras quis dar uma prova do seu "europeísmo", talvez grato pelo que a UE tem feito contra o povo grego. Macron foi considerado um democrata e M le P uma protofascista.

Na sua intervenção inicial exibiu o requentado catálogo das promessas e habituais boas intenções sem conteúdos concretos exceto os que são desde logo negados pela manutenção da ordem oligárquica existente e a participação ativa nos objetivos imperialistas.

Vagas declarações quanto a reformas, a habitual melodia encantatória com que se procura seduzir e desmobilizar as massas trabalhadoras, são acompanhada de ameaças. Veja-se por exemplo, a propósito do Brexit, Hollande, dizendo que o Reino Unido "não pode ficar numa situação mais favorável fora da UE do que dentro". Espantoso em termos democráticos? Claro que não quando nos referimos à UE.

Diz Macron que entre as suas prioridades está "liberalizar o trabalho", ou seja, a agenda neoliberal de supressão de direitos laborais. Passado o período eleitoral, fortalecido pela votação obtida, à custa de certa esquerda, apoiantes e comentadores mobilizam-se contra os sindicatos franceses, "irreformáveis".

O que Macron pretende é mais liberalismo, mais precarização da força de trabalho, mais globalização neoliberal e federalismo europeu gerido na concertação entre Berlim e Paris. Os "europeístas" vendem este objetivo ao nível das crenças religiosas, à margem de qualquer análise.

Macron representa as classes que defendem a manutenção das estruturas capitalistas implantadas na UE, mesmo que admitam a necessidade de "reformas", a habitual cosmética para imporem a sua agenda: concentração de poder, decisões tomadas por burocracias que se assumem como elites. Decisões que resultam da concertação entre as várias forças do grande capital. Governos que se limitam a controlar o aparelho estatal, sob a vigilância de autoridades burocráticas, recebendo da oligarquia orientações diretas (por ex. Bidelberg) ou indiretas ("entidades independentes", analistas e comentadores dos media).

4 – O Projeto Marine le Pen 

M le P levou a FN para o centro do espectro político, aproximando-se das teses gaulistas. Afastou-se da origem pró-fascista da FN conduzida pelo pai e procura captar não só o chamado centro político, como o proletariado, e a pequena burguesia das MPME. Sob o ponto de vista económico defende um "estado estratega" na base do keynesianismo.

M le P pretende que o seu projeto não é de esquerda nem de direita, é dos "patriotas". Esta tese é assim um projeto de conciliação e classes, que radica na visão que De Gaulle sempre teve da sociedade, com o seu "capitalismo popular" ;.

Defende uma democracia direta em que as grandes opções nacionais sejam apoiadas por referendo. É mais um ponto de contacto com o gaullismo. Apesar de terem já sido expulsos das suas fileiras elementos que expressaram afirmações racistas, a FN reúne tal como o gaullismo gente que vai da extrema-direita, até próximos do centro-esquerda, Marine diz que isso é normal, "não somos uma seita", é a união dos "patriotas". Claro que acima das classes.

A sua proposta no essencial tenta resolver as contradições do capitalismo financeiro e transnacional, através do nacionalismo defendendo a burguesia nacional. Soberania de fronteiras, legislativa – nenhum poder estrangeiro, leia-se UE, será superior ao poder constitucional francês, soberania monetária (fim do euro, pelo menos na circulação interna).

Estado estratega, de acordo, mas no interesse de que classes? A sua "união nacional" de "patriotas" pretende derrotar a ingerência da UE e recuperar a plena soberania da França. Esta "união" é defendida no sindicalismo, numa espécie de corporativismo entre patronato e trabalhadores, unidos com interesses idênticos, contra o inimigo comum a: UE, o seu totalitarismo burocrático, a libertação da tutela de Berlim sobre a França.

A qualificação de M le P como "a extrema-direita" serve contudo de álibi para condicionar as massas e viabilizar pela manipulação os projetos europeístas associados ao neoliberalismo.

Grande parte das suas propostas são comuns às de Mélenchon (neste caso até de forma menos clara) e podem ser consideradas de "esquerda", isto é, social-democratas… Claro que não agrada ao imperialismo vigente a atitude anti NATO, a defesa de relações normais com Rússia, as críticas à intervenção na Síria contra Bashar-al-Asssd, contra Kadhafi na Líbia (logo na sua ocorrência). Assim é muito mais simples acusa-la de "extrema-direita" que concretizar uma análise e um combate politicamente consistente.

M le P tem uma política de direita. Pode dizer-se que não iria ou não vai fazer muito do que diz. Claro que não. As suas críticas à finança e a intenção de a combater, são dificilmente concretizáveis dentro dos seus critérios, se é que credíveis. Porém, os "valores" que Macron exibiu contra o proletariado e a favor da oligarquia estão, parece-nos, muito mais próximas da "extrema-direita".

5 - Posicionamentos de esquerda 

Certa esquerda e o seu "eurocomunismo" (o que quer que isto fosse), perdeu ou desistiu de dar voz à superação do capitalismo e a uma ação revolucionária, reduzindo-se à tese do "mal menor".

A aliança entre o capital monopolista e financeiro a nível internacional coloca-se em conflito direto com as aspirações das massas populares e as diversas camadas e sectores da burguesia e das classes médias. Na ausência de um partido revolucionário, a luta de classes acaba por centrar-se nas contradições dentro da própria burguesia.

Mélenchon, conseguiu reunir em pouco tempo apesar de sabotado pelos media, grande apoio das massas populares. Refira-se que grande parte das suas propostas tinham pontos comuns com as das de M le P. Por pouco não passou á segunda volta.

Macron quer agora "unir a França" – por alguma razão todos querem! – a questão é à volta de que projeto. Macron, à volta das teses que falharam rotundamente, procurando ir mais longe no neoliberalismo de Hollande. Macron foi também o álibi para os que abandonaram a mobilização das massas populares para verdadeiras transformações sociais. Macron ao contrário de M le P não lhes vai exigir que se posicionem.

Para Engels, a luta pela democracia era parte inseparável da luta pelo comunismo, condição do combate por uma sociedade socialista, esta a real solução para concretizar as aspirações dos trabalhadores e do povo em geral.

Numa perspetiva marxista qualquer forma de governo reflete os interesses de uma ou várias classes sociais. Não existe democracia "pura" ; à margem das classes como pretendem o reformismo e o revisionismo.

Transformar a diferenciação entre Macron e M le P num debate sobre democracia ou falta dela é passar ao lado da agudização das contradições entre as diversas classes e camadas sociais no capitalismo atual. É enfim, ter perdido a capacidade de ter uma voz autónoma à esquerda neste conflito de direitas.


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