domingo, 7 de maio de 2017

As redes sociais e o fascismo, por Ion de Andrade


As redes sociais e o fascismo

por Ion de Andrade

A provável derrota de Marine Le Pen na França, precedida de derrotas emblemáticas do fascismo na Europa, como as da Áustria, Holanda e do plebiscito regulando a naturalização facilitada na Suíça, faz crer que nessa rodada chegamos a um teto. Na França, no entanto, o rastro de ódio deixado por Marine Le Pen, cria ambiente político inédito desde a segunda guerra mundial.
Dito isso, e é o que precisa ser enfatizado, a extrema direita cresceu enormemente nesses últimos anos, alcançando na Europa cifra que poderia situar-se em diversos países na casa dos 30% do eleitorado ou mais. É verdade que não se trata de fenômeno universal, que nem todos os países estão igualmente tocados e que os fascismos europeus constituem movimento que estranhamente sequer tem identidade comum. E há os movimentos semifascistas de cunho nacionalista como o que produziu o Brexit na Inglaterra por exemplo que compartilha com os outros fascismos europeus o medo/xenofobia do estrangeiro, uma forte base rural ou de setores urbanos de baixa renda e o fato de ter surfado uma onda de ódio, rara naquele país.

Essa onda de matiz fascista se alimenta de problemas sociais de fundo, a crise de hegemonia que vivemos hoje, a penumbra donde emergem os monstros como viu Gramsci.

Sem perder de vista esse fator causal mais importante, podemos nos perguntar sobre que alcance teria tido o fascismo na contemporaneidade, não fossem as redes sociais.

Sabe-se que as tecnologias disponíveis mudam as relações de produção, as guerras e por similaridade mudam também a política. Essa dependência entre o mundo tecnológico (subjacente) e os fenômenos superestruturais (manifestos) pode perfeitamente fazer emergir fortalecido, como num caleidoscópio, novas expressões que não se deram ainda inteiramente a conhecer.

Dito isso é importante reconceituar o fascismo não somente como um movimento de ódios, mas como um alinhamento vetorial de vontades que pretende construir uma “democracia” onde uma maioria ideologicamente vetorizada deixará de reconhecer os direitos e prerrogativas da minoria (o que caracteriza Estado de direito) aniquilando-a. Lembremos que o fascismo é um movimento pretensamente arbitral entre as classes fundamentais e que, conforme Gramsci, cria uma nova “totalidade” (donde totalitarismo) através de uma ideologia “organicamente estruturada” o que o diferencia de outros regimes de força que atuam de forma mais espasmódica no plano da repressão.

Gramsci, entretanto, e nisso me parece que erra, enxerga no fascismo, um retorno à “Sociedade Política”, ou seja um retorno à força em lugar do consenso como mecanismo de ordenamento do Estado. Discordo desse entendimento por perceber que a sua ideia de “ideologia organicamente estruturada” aponta, na verdade para a permanência de uma “Sociedade Civil” zumbi no comando da sociedade fascista, um consenso macabro que subordina com uma ideologia totalitária os consensos anteriores e continua a comandar a Sociedade Política (ou o uso da força) a partir da Sociedade Civil e isto por uma adesão “voluntária” dos sujeitos fascistizados. Ora, a supremacia dessa ideologia organicamente estruturada, esse alinhamento monstruoso de vontades, capaz de anular as pessoas (que se convertem em autômatos) só pode se dar com a interseção de inúmeros e repetidos apelos emocionais de natureza visceral e grupal tais como o orgulho da pátria, o ódio aos adversários, a violência, a inferiorização dos adversários, etc. Uma espécie de batuque hipnótico precedendo a guerra.

É onde entram as redes sociais. É interessante perceber que toda essa onda neofascista evoluiu simultaneamente ao seu desenvolvimento e universalização e que elas deram velocidade e alcance à formação dessa uniformidade de opiniões fascista e foram um veículo extraordinário para a materialização de uma “ideologia organicamente estruturada” que ainda está em fase de maturação e que, por hora, não alcançou sua elaboração final, como as do fascismo ou do nazismo.

Costumamos ver as bondades das redes sociais, entendidas como capazes de politizar as massas e de organizar ações em larga escala. Entretanto elas são portadoras de inúmeros problemas, que são o esterco para o fascismo. As redes sociais (1) desumanizam os contatos, pois nunca estamos diante de pessoas, mas de imagens, (como no trânsito onde nos transfiguramos em seres irritadiços e brigões, até o momento em que nos encontramos de fato pessoalmente com o outro motorista...), (2) convertem pessoas pacatas em guerreiros violentos cuja motivação decorre de uma indignação pré-selecionada pelo círculo de amigos, (3) filtra assuntos por uma afinidade que na verdade põe cada um dentro de uma bolha roboticamente definida de onde é incapaz de sair e formar qualquer reflexão exterior a esses limites. Em suma, em lugar de libertar, com imensa frequência as redes enjaulam as pessoas.

É esse personagem enjaulado, alimentado de forma circular por sua própria doutrina quem sai às ruas.

É também verdade que a blogosfera é parte das redes sociais e têm permitido a produção de uma cultura inteligente, plural e aberta. Esse fenômeno minoritário é o contraponto do outro.

Porém num mundo povoado por personagens como Le Pen, Trump, Putin e outros líderes que talvez venham a funcionar historicamente como balões de ensaio para um salto fascista de maior envergadura mais à frente, devemos nos perguntar se as redes sociais, tal como estão configuradas, não são prioritariamente uma escola de fascismo para as massas.

Se ao fascismo interessa a submissão passiva à ideologia totalitária em construção, numa linguagem simplificada e sem nuances, onde só há sim e não; à democracia interessa a iniciativa política e a transformação da sociedade, ou seja a construção de uma abordagem complexa e cheia de nuances.

As redes sociais parecem ser sob essa ótica, preenchidas pelo simplismo telegráfico da sua comunicação, uma ferramenta mais adequada ao uso e aos propósitos da extrema direita do que aos do campo democrático. À extrema direita dá alcance, ao campo democrático rouba energias substituindo o mundo real pelo simbólico, saciando o desejo de militância pelo clicar do botão compartilhar, que embora mantenha a resistência alerta apenas retroalimenta um ciclo que roda em torno do seu próprio eixo, sem acumular poder real para construir o novo.

Para que as redes sociais fossem melhores para a esquerda e o campo democrático, teriam que estar subordinadas a uma ação política e social capaz de convertê-la em ferramenta meio para um fim que, desde sempre, não poderia ser outro que o do trabalho árduo e cotidiano com o nosso povo nos seus locais de moradia ou de trabalho.

Para nós as redes sociais são estratégicas desde já e compõem importante campo de resistência e elaboração, o serão ainda mais quando estiverem alinhadas a um projeto consensual de sociedade de que sejam parte ativa.

Para o fascismo é o solo a perder de vista, adubado com um fertilizante natural de alta eficácia e de entrega domiciliar a milhões. Ódio, desprezo, violência e simplismo em doses diárias.

No longo prazo dos processos sociais consumados, espero que não venhamos a constatar que se tratava de uma Caixa de Pandora. Possam os cronistas do futuro constatar que foram o surgidouro de uma sociedade aberta e democrática e que foram compatíveis com os direitos e garantias individuais e com a civilidade.

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