sexta-feira, 19 de maio de 2017

RT, PEÇA-CHAVE DA ESTRATÉGIA RUSSA - MOSCOU PERTURBA O CONSENSO GLOBAL



Acusado de ser um instrumento do Kremlin, o canal RT retoma os códigos, e os defeitos, dos canais de informação 24 horas. O forte crescimento de sua audiência nos Estados Unidos e na Europa deve-se a uma linha editorial abertamente crítica em relação às políticas ocidentais, modulada em função das regiões




por: Maxime Audinet

Em dezembro de 2015, um clipe produzido para celebrar os dez anos do canal RT (ex-Russia Today) exaltava a emissora pública russa. Vestida com um uniforme soviético, Margarita Simonyan, redatora-chefe do canal de notícias, apresenta os funcionários da emissora sediada na Rua Borovaya, em Moscou: Liuba, a senhora da limpeza, “recebe suas ordens diretamente do Kremlin”; em um estúdio de fundo verde, uma jornalista “em campo” lê um teleprompter em árabe enquanto figurantes vestidos de combatentes sírios atiram em um alvo; apresentadores estrangeiros aguardam em uma prisão úmida, enquanto o britânico Kevin Owen, jornalista do canal, está ao lado dos outros, porém algemado.

O RT escolheu a autoironia para responder a seus detratores, que o acusam de ser instrumento de propaganda do Kremlin. Na ocasião desse aniversário, Vladimir Putin lembrou os objetivos clássicos do canal transnacional, após uma década de esforço para recuperar o atraso russo no campo da “diplomacia política” (ver boxe). “É fundamental que a nossa voz e a sua sejam escutadas […], não somente pelos homens políticos, mas também e principalmente pelos cidadãos de todo o mundo”, declarou o presidente.
A Revolução Laranja de 2004 na Ucrânia, que o Kremlin percebeu como uma ingerência ocidental no vizinho por parte das ONGs envolvidas, marcou uma virada na política externa russa, que tomou consciência de suas fraquezas em matéria de influência internacional. No ano seguinte, Moscou fundou as primeiras bases do grupo Russia Today. “A ideia inicial era criar um canal [anglófono] unicamente centrado na Rússia. Porém, logo ficou evidente que essa ideia estaria destinada ao fracasso”, recorda Simonyan. “Se nossa audiência se limitasse aos favoráveis ao Kremlin e aos observadores da Rússia, certamente o público seria muito restrito”, completa.1
“A objetividade não existe”
Na época da Guerra Russo-Georgiana, em 2008, e para responder à cobertura do conflito realizada pelos grandes meios de comunicação ocidentais, considerada unilateral, a redação adotou uma linha editorial mais ofensiva. O RT viu então sua missão mudar para tornar-se a de um meio “global”, capaz de promover “outra visão” dos acontecimentos. A internacionalização da rede se acentuou. Após a inauguração da versão árabe, Rusiya Al-Yaum, em 2007 (hoje RT Arabic), o grupo RT lançou um serviço espanhol (2009), um canal nos Estados Unidos (2010), no Reino Unido (2014), e finalmente, em 2014, dois meios on-line, um em alemão e outro em francês. Este ano, anunciaram a chegada de um canal RT França.
Com 2,1 mil funcionários e correspondentes em dezenove países, o grupo se desenvolveu graças a recursos colocados à disposição pelo Estado russo. De acordo com uma pesquisa do instituto Ipsos realizada em novembro de 2015 em 38 países, seus canais são vistos por 70 milhões de pessoas por semana; audiência que está atrás do serviço internacional da BBC (British Broadcasting Corporation), mas à frente da Deutsche Welle e do France 24. O RT ocupa o quinto lugar entre os canais internacionais mais vistos nos Estados Unidos (8 milhões de telespectadores semanais) e Europa (36 milhões), seu público-alvo prioritário. Desde o lançamento, o orçamento do canal passou de 29 milhões a 290 milhões de euros – dos quais um quarto é oriundo de doações públicas realizadas aos meios de comunicação. A emissora rapidamente se adaptou à promoção de conteúdos na internet, usando principalmente tecnologias digitais virais (retransmissão de vídeos ao vivo, realidade aumentada etc.). O grupo abriu diversas contas em redes sociais, assim como no YouTube – onde se apresenta como a principal fonte de informação do mundo, com 4,5 milhões de inscritos em seus canais. O modelo da CNN – reatividade, “último minuto”, infodivertimento – ainda é um padrão em termos de produção. O programa de debate do RT International, CrossTalk, é diretamente inspirado no talk show da CNN Crossfire (fora do ar desde 2014). E a contratação em 2013 do ex-apresentador Larry King, estrela do canal norte-americano, está entre suas principais proezas.
O RT se considera uma alternativa aos “meios de comunicação mainstream” ocidentais – cerca de cinquenta, segundo inventário feito por sua redação.2 “Queríamos quebrar o monopólio dos meios de massa anglo-saxões no fluxo mundial de informação”, explicou Putin durante uma visita nos estúdios, em junho de 2013. Para Andrey Kortunov, diretor do Conselho Russo de Relações Internacionais, “o desafio [do RT] não é tanto promover as posições da Rússia, e sim questionar a hegemonia das vozes ocidentais, relativizar a interpretação ocidental dos acontecimentos”, como atesta o slogan da emissora: “Question more” (“Questione além”).
Abertamente engajado, o RT ignora a contradição dos canais públicos estrangeiros ocidentais: de um lado, a exigência política de difundir uma informação compatível com o interesse nacional encarnado pelo Estado acionista; de outro, o princípio deontológico que impõe um grau de independência tangível para não parecer propagandístico.3 Quando se ampliou o serviço “Mundo” da BBC, em novembro de 2016, seu diretor, Tony Hall, professava sua visão de “uma BBC confiante, aberta ao mundo, que aporta o melhor do nosso jornalismo, independente e imparcial”. Na mesma linha, Marie-Christine Saragosse, diretora presidente da emissora France Médias Monde, assegurava ao jornal Point (5 dez. 2016) que o France 24, financiado por isenções audiovisuais e pelo Estado, “não é um canal governamental”.
A equipe do RT decidiu dar as costas a esse dilema e preferiu assumir seus laços com o Estado russo. Questionada em 2014 por Christiane Amanpour, da CNN, sobre a utilização do RT como instrumento de resposta governamental ao “problema da imagem negativa” da Rússia, Anissa Naouai, apresentadora norte-americana do programa In the Now, afirmou que “não tinha nada a esconder”. E acrescentou: “As pessoas sabem de onde vêm nossos recursos. […] Mostramos os acontecimentos do ponto de vista russo? Certamente, porque esse ponto de vista está sempre colocado de lado. Mas é uma pergunta absurda vinda de um meio de comunicação que propaga o ponto de vista do departamento de Estado há mais de quinze anos”. Uma alfinetada lançada a Amanpour, que, no fim dos anos 1990, foi enviada pela CNN para cobrir Kosovo como grande repórter, enquanto seu marido, James Rubin, ocupava ao mesmo tempo a função de porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Os dirigentes do RT percebem, dessa forma, o ambiente midiático internacional como um espaço onde coexistem diferentes regimes narrativos: “Você já viu vários exemplos de cobertura objetiva? […] A objetividade não existe: há formas de aproximar-se da verdade, proporcionais às vozes possíveis sobre um acontecimento”, lançou Simonyan ao Spiegel Online (13 ago. 2013), preferindo celebrar o pluralismo a proclamar a objetividade.
Preferência pela segurança
O RT confere espaço privilegiado a acontecimentos pouco mencionados pelos meios ocidentais. O canal russo continua, por exemplo, cobrindo a Guerra do Afeganistão, onde os bombardeios da coalizão liderada pelos Estados Unidos continuam e despertam relativa indiferença (11 fev.). Regularmente também consagra pautas à Guerra do Iêmen, conflito eclipsado pela atual situação da Síria. Em 10 de fevereiro, por exemplo, o noticiário do RT International transmitiu as revelações da imprensa britânica4 sobre a continuidade da venda de armas à Arábia Saudita pelo Reino Unido, apesar do bombardeio acidental de funerais em outubro de 2016, que teria causado 140 mortes e deixado centenas de feridos. A política editorial das filiais internacionais do RT se organiza em torno de diversas linhas de força: a promoção do mundo multipolar e de valores nacionalistas, a crítica ao atlantismo e às veleidades hegemônicas norte-americanas, e ainda a denúncia da “russofobia”. Para abordar essas ideias, o canal recorre a especialistas heteróclitos, que vão de ex-integrantes do Club de l’Horloge (Clube do Relógio, círculo de reflexão de direita e extrema direita francês) a pacifistas norte-americanos. As personalidades políticas convidadas para o programa SophieCo refletem o mesmo balaio transpartidário: sucederam-se a copresidente do partido Die Linke no Bundestag, Sahra Wagenknecht; o efêmero conselheiro de segurança nacional de Donald Trump, Michael Flynn; o candidato de extrema direita às eleições presidenciais austríacas, Norbert Hofer; o ex-ministro francês de Relações Exteriores socialista Hubert Védrine; e ainda a presidenta da Frente Nacional, Marine Le Pen. Esse mesmo programa ouve também o ponto de vista de líderes de potências regionais, como o ex-ministro de Relações Exteriores do Paquistão Hina Rabbani Khar; o ex-presidente turco Abdullah Gül (Partido da Justiça e Desenvolvimento, AKP); e ainda um negociador iraniano para o programa nuclear de Teerã. Finalmente, a cobertura da vida política russa evita a censura grosseira, já que até o aniversário do assassinato do opositor russo Boris Nemtsov foi mencionado no jornal de 26 de fevereiro.

A linha editorial do RT International não se confunde com a dos canais ou sites locais. O RT se adapta à oferta midiática existente em países nos quais a Rússia deseja estender sua influência. O RT America, por exemplo, veicula críticas ao neoliberalismo, e também posições diplomáticas neoconservadoras, longe das linhas editoriais das grandes emissoras nacionais de TV a cabo, como CNN e Fox News. Em 18 de fevereiro, o programa Keiser Report denunciava a designação de ex-executivos do banco de negócios Goldman Sachs por Donald Trump como conselheiros e membros de seu gabinete. Esse tom anti-Wall Street não chamou a atenção dos serviços de informação norte-americanos, que por outro lado acusam o canal de ter apoiado o candidato republicano durante a campanha presidencial. Alegação que precisa ser fortemente matizada: o objetivo principal do RT era criticar Hillary Clinton – cujas tendências unilateralistas inquietavam o Kremlin –, insistindo nas relações da ex-secretária de Estado com meios neoconservadores ou, em parceria com o WikiLeaks, no caso dos e-mails que comprometiam a candidata e seu conselheiro, John Podesta.
Além disso, diversas personalidades identificadas à esquerda e cujos talk shows são acolhidos pelo RT America afirmaram posições anti-Trump. O jornalista Ed Schultz não escondeu sua simpatia por Bernie Sanders, que lhe concedeu diversas entrevistas durante as primárias democratas. Seu colega Chris Hedges, laureado com o Pulitzer em 2002 e próximo a Noam Chomsky, se autodefine como “socialista” no jornal alternativo Truthdig, do qual ele é um dos editorialistas. Em episódio de seu programa On Contact realizado alguns dias depois da vitória de Trump, Hedges – que viu na eleição do republicano um sinal de “rejeição maciça das políticas neoliberais empreendidas pela elite política e financeira dirigente” – prevenia que “as liberdades civis, já gravemente solapadas, poderiam ceder lugar a um Estado policial violento e impiedoso”. Enfim, fiel à sua abordagem “antissistema”, o RT America deu espaço a candidatos de “outros partidos” (Partido Verde, Partido Libertário), raramente convidados pelos meios de comunicação concorrentes.
No Oriente Médio, desde os anos 2000 um campo de batalha midiático entre grandes emissoras internacionais, o RT Arabic lamenta a desestabilização gerada pelas “primaveras árabes” – acompanhado pela Al Jazeera5 – e vilipendia o intervencionismo militar de potências ocidentais na região, que o canal Alhurra, financiado pelo Congresso norte-americano, mantém na surdina.
A crítica à ingerência dos Estados Unidos nas relações exteriores de países soberanos é igualmente um dos cavalos de batalha do RT em espanhol, particularmente ativo no México, Argentina e Venezuela. O canal hispanófono difunde um discurso anti-imperialista e antiliberal alinhado à esquerda latino-americana, que ele apoia sem ambiguidades. Para o pesquisador John Ackerman, que possui uma coluna regular na emissora, o resultado mais que honrável de Lenín Moreno, candidato governista do chefe de Estado equatoriano, Rafael Correa, no primeiro turno presidencial, em fevereiro de 2017, prova que o “ciclo dos governos progressistas na América Latina não acabou”. O canal fala de uma “guerra econômica contra [o presidente Nicolás] Maduro” (21 fev. 2017) para evocar as dificuldades econômicas atravessadas pela Venezuela, insinuando que a oposição tem responsabilidade total sobre a crise. A questão do papel do governo na “má gestão financeira” do país, contudo, foi abordada em uma edição de El Zoom, em 14 de dezembro de 2016.
O site do RT em francês, assim como as outras filiais europeias da emissora, oferece um panorama notadamente mais conservador. Pouco presente em questões econômicas e sociais, a plataforma multimídia russa tem uma predileção por temas securitários. Em 2016, para cada artigo que evocava o desemprego, havia outros dezessete sobre terrorismo (contra dois no Le Monde, e 1,7 no Le Figaro).6 O RT confere relativamente mais espaço que outros meios aos “pequenos” candidatos à eleição presidencial, mas esse reequilíbrio favorece mais o nacionalista gaullista Nicolas Dupont-Aignan (Debout La France/França de Pé) que o candidato de esquerda Jean-Luc Mélenchon.7 A mesma lógica se deu no Reino Unido, onde o líder do Partido pela Independência do Reino Unido (Ukip), Nigel Farage, teve dezessete aparições no RT UK entre 2010 e 2014,8 bem antes da campanha pelo Brexit.
No âmbito das eleições presidenciais na França, o site não omite as derrotas judiciárias de François Fillon (em geral apresentado na França como “pró-Rússia”) nem os panelaços de seus opositores, que ressoam por onde ele transita. Igualmente, o RT aborda as suspeitas de funcionários parlamentares fantasmas que pesam sobre Le Pen, porém também consagra um lugar importante às declarações de seus advogados e aos comunicados de imprensa da FN (17 e 20 fev.). Indício de uma adesão particular do canal russo à orientação política da candidata da Frente, é possível encontrar a coletiva de imprensa na íntegra que ela proferiu sobre sua visão da política estrangeira da França, durante a qual relembrou seu desejo de “apoiar a Rússia no continente europeu” (23 fev.).
Em função da linha antiliberal do RT, o candidato do En Marche! [Em Marcha!], Emmanuel Macron, certamente é quem se beneficia do tratamento menos favorável. O site debocha de sua postura “antissistema” e qualifica-o de “embuste absoluto”, na voz do “economista chocado” Dany Lang (3 fev.). Contudo, mesmo admitindo a obscenidade das difamações publicadas contra Macron e dois membros do partido Les Républicains [Os Republicanos] na plataforma multimídia Sputnik, colega pública do RT, a emissora está longe da “obstinação” da qual se queixa o candidato, que denuncia a bandeira vermelha da ameaça russa.9
O RT manifesta seu gosto pronunciado pela contestação, inclusive social, em particular quando exibe imagens espetaculares de enfrentamentos com a polícia, vidros quebrados ou incêndios que podem gerar alguns “best of” de “vídeos chocantes” (30 dez. 2016). Nos Estados Unidos, o canal cobre movimentos sociais da amplitude do Occupy Wall Street e do Black Lives Matter, ou, mais recentemente, das marchas anti-Trump. Essas imagens ressaltam as fraturas das sociedades ocidentais. O site também ecoa o combate do agricultor Cédric Herrou, defensor dos imigrantes no vale franco-italiano de Roya (10 fev.), bem como os cartazes “Oui, on est chez nous” [“Sim, estamos em casa”] dos militantes de Hénin-Beaumont, endereçados ao filme Chez nous, de Lucas Belvaux, que coloca em cena a campanha municipal de um avatar da FN (22 fev.). As democracias liberais são representadas na emissora como à beira do caos ou, ainda, da “guerra civil” (12 jan.). É frequente a mídia russa cobrir os acidentes industriais com um filtro sensacionalista: incêndio na sala de máquinas da central nuclear Flamanville (jornal televisivo de 9 de fevereiro); cinquenta casos de intoxicação respiratória provocados por um gás irritante no aeroporto de Hamburgo (12 fev.) – uma forma de relativizar o abismo tecnológico que separa a Rússia da Europa ocidental e dos Estados Unidos, o que ainda é um tema central para as elites russas.
Da mesma forma que a CNN nos Estados Unidos durante a Guerra do Iraque, o RT se transforma em instrumento de comunicação de guerra quando se trata de cobrir conflitos que representam interesses estratégicos importantes para a Rússia. O canal então se faz de zeloso, no âmbito internacional, da visão oficial dos acontecimentos. Na Síria, onde o RT serviu muitas vezes de tribuna ao presidente Bashar al-Assad, o tema da Batalha de Alepo cristalizou um profundo antagonismo na guerra de informação russo-ocidental: após a retomada da cidade pelo Exército sírio, o RT transmitiu em seus canais a euforia dos habitantes da Alepo ocidental, enquanto a quase totalidade dos meios de comunicação ocidentais focaram a situação humanitária dos bairros orientais. Inversamente, o canal convidou um ex-diplomata britânico para comentar as “inevitáveis perdas civis” na libertação de Mossul, em via de ser reocupada pelas tropas iraquianas com o apoio da coalizão liderada pelos Estados Unidos.
Ironia da história, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) inaugurou em janeiro de 2014, em Riga, o Centro de Excelência para a Comunicação Estratégica (Stratcom). A instituição, que não se destaca por sua preocupação com a verdade, notadamente durante a guerra na ex-Iugoslávia,10 atualmente almeja desconstruir as “campanhas informacionais” de seu melhor inimigo russo, recorrendo à técnica em voga do fact-checking (“verificação dos fatos”).
O RT pode se orgulhar de suas iniciativas – que reforçam a identidade de mídia “antissistema” – e de canalizar audiências pró-contestação desempenhando o papel de “um contra todos”. Sua equipe tornou-se mestre na arte de subverter as críticas a seu favor. No fim do clipe promocional que celebra os dez anos da emissora, Simonyan se dirige ao espectador, com um sorriso nos lábios: “Então, é assim que você imagina o RT? Você tem razão, é exatamente a maneira como trabalhamos!”.

Da Guerra Fria à invasão do Iraque
Intrinsecamente ligado à batalha ideológica da Guerra Fria, o conceito de diplomacia pública (public diplomacy) popularizou-se no início dos anos de 1960 por Edward R. Murrow, diretor da United States Information Agency, que coordenava a diplomacia cultural dos Estados Unidos e a rádio A Voz da América, com um viés fortemente anticomunista. A diplomacia norte-americana pretendia assim se afastar da noção de propaganda, associada ao totalitarismo, para designar essa faceta de sua política externa. Na mesma época, os dirigentes soviéticos recorreram ao conceito similar de diplomacia popular (narodnaya diplomatia) para qualificar a ação cultural exterior das alianças soviéticas, combinadas a ondas plurilíngues na Rádio Moscou. Em ambos os casos, o Estado se comunicava diretamente com as populações estrangeiras por meio de instrumentos culturais, educacionais ou midiáticos com a finalidade de promover seus interesses, seus valores fundamentais e sua cultura nacional. Tratava-se, por extensão, de um meio de controlar a ação dos governos estrangeiros influenciando a opinião pública.
A noção de diplomacia pública reapareceu no século XXI, logo após a invasão do Iraque, em 2003, com o desejo da administração Bush de reconquistar “o coração e os espíritos” em um Oriente Médio cada vez mais hostil aos Estados Unidos. Na gama de ferramentas diplomáticas, o Departamento de Estado escolheu revalorizar os meios de comunicação internacionais e redobrar o apoio a ONGs – pelo menos aquelas cujas atividades fossem compatíveis com sua política. Em seguida, numerosos países retomaram políticas de reforço de seu soft power, definido em 2004 por seu teórico, Joseph Nye, como “a capacidade de influenciar outrem pela atração em detrimento da noção de obrigação e retribuição”.1
O Ministério das Relações Exteriores russo oficializou os conceitos de diplomacia pública (publichnaya diplomatia) e soft power (myagkaya sila) em 2008 e 2013. O audiovisual exterior público foi reconstituído em dois tempos: o RT em 2005 e depois a Sputnik – que substituiu a agência Ria Novosti e A Voz da Rússia – em 2014. O audiovisual tornou-se então o instrumento privilegiado na disputa por influência em audiências estrangeiras. Essa estratégia se impõe em um contexto de concorrência generalizada no mercado internacional da informação. Desde o fim dos anos 1990, o canal do Catar Al Jazeera buscou “quebrar o monopólio dos meios de comunicação ocidentais em matéria de cobertura internacional de informação”,2mirando notadamente a CNN, principal fonte de imagens da Guerra do Golfo em 1991. Além da Rússia, a China – com a China Central Television (CCTV), que no fim de 2016 se tornou a China Global Television Network (CGTN) –, os países da América Latina (Telesur) e o Irã (Press TV) fizeram o mesmo nos anos 2000. Todos buscaram conquistar fatias de seus rivais no mercado da informação: as anglo-saxãs CNN, BBC, Sky News, a francesa France 24 e a alemã Deutsche Welle.
Originalidade do dispositivo russo: não visa apenas exercer um “poder suave” (soft power), mas responde, na lógica do Kremlin, a objetivos securitários. Os órgãos de segurança da Federação colocam ênfase no potencial defensivo desses meios de comunicação, que, ao lado de instrumentos cibernéticos, devem limitar as ameaças (interceptação de informação, ciberataques etc.) que pesam sobre “a soberania do espaço informacional” russo, como prevê a Doutrina de Segurança da Informação adotada em dezembro de 2016 por decreto presidencial. Do lado da defesa, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas anunciou o desejo de integrar os instrumentos de soft power e desenvolver “métodos híbridos” para responder aos conflitos assimétricos contemporâneos (Kommersant, 1º mar. 2016), tanto no território como no espaço midiático e na internet. Para o Kremlin, a informação também é um campo de batalha, como outros. (M.A.).
1          Joseph S. Nye Jr., Soft Power: The Means to Success in World Politics [Soft power: os meios para o sucesso na política mundial], PublicAffairs, Nova York, 2004.
2          Mohameden Baba Ould Etfagha, “Voyage à l’intérieur d’Al-Jazira” [Viagem ao interior da Al Jazeera], Outre-Terre, v.1, n.14, Paris, 2006.

*Maxime Audinet é doutorando na Universidade Paris Nanterre.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}

1          “Lunch with the FT: Kremlin media star Margarita Simonyan” [Almoço com o FT: a estrela da emissora do Kremlin, Margarita Simonyan], Financial Times, Londres, 29 jul. 2016.
2          Entre os quais Le MondeLe FigaroLibération, TF1, France Télévisions e Canal Plus na França. Lista completa disponível em: <www.msm.rt.com>.
3          Cyril Blet, “Les médias, un instrument de diplomatie publique” [Os meios de comunicação, um instrumento de diplomacia política], Revue Internationale et Stratégique, v.2, n.78, Paris, 2010.
4          Alice Ross, “Boris Johnson urged UK to continue Saudi arms sales after funeral bombing”[Boris Johnson encorajou o Reino Unido a continuar a venda de armas para a Arábia Saudita após bombardeio em funerais], The Guardian, Londres, 10 fev. 2017.
5          Ler Yves Gonzalez-Quijano, “Et l’étoile d’Al-Jazira pâlit” [E a estrela da Al Jazeera esmaece], Le Monde Diplomatique, maio 2012.
6          Segundo contagem realizada pelo Le Monde Diplomatique na base digital de Le MondeLe Figaro e do site do RT.
7          Segundo contagem do Le Monde Diplomatique entre 1º de setembro de 2016 e 13 de fevereiro de 2017, o nome do candidato do Debout La France aparece seis vezes menos em artigos do que o nome do candidato mais mencionado (François Fillon), contra vinte vezes menos no Le Figaro, 28 vezes menos no Le Monde e… 43 vezes menos no Libération. Mélenchon foi citado 2,3 vezes menos que Fillon no RT em francês, não muito distante da prática de seus concorrentes (3,3 vezes menos no Le Monde e no Le Figaro).
8          Patrick Wintour e Rowena Mason, “Nigel Farage’s relationship with Russian media comes under scrutiny” [A relação de Nigel Farage com a mídia russa é questionada], The Guardian, 31 mar. 2014.
9          Cf. Richard Ferrand, “Ne laissons pas la Russie déstabiliser la présidentielle en France!” [Não deixemos a Rússia desestabilizar as eleições presidenciais na França], Le Monde, 14 fev. 2017.

10           Ler Serge Halimi e Dominique Vidal, “Médias et désinformation” [Meios de comunicação e desinformação], Le Monde Diplomatique, mar. 2000.

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