sábado, 17 de junho de 2017

Há salvação para a democracia no Brasil?

       Foto: Andressa Anholete / AFP
Protesto do grupo Avaaz em frente ao TSE no julgamento da cassação da chapa Dilma/Temer. 

Luis Felipe Miguel 

A sobrevida de Michel Temer na presidência, mesmo não restando ninguém que ainda mantenha dúvidas que lhe faltam condições éticas para o exercício do cargo, mostra que as instituições políticas brasileiras estão chegando a um ponto de não retorno: elas estão praticamente fora de qualquer esperança de regeneração. O golpe de 2016, produção conjunta entre setores do Poder Executivo, a maioria do Legislativo e quase todo o Judiciário, com o patrocínio das grandes empresas e o apoio entusiasta da mídia, já mostrou que a ordem instituída pela Constituição de 1988 estava abalada de forma severa. O governo do usurpador, implantando mudanças drásticas em direitos acordados há décadas, sem diálogo com a sociedade e sem legitimidade popular, foi um sintoma mais acentuado da crise. A conivência da maioria da elite política com a permanência de um governo escancaradamente corrupto é o passo final.

A democracia representativa baseada na transferência de poder por meio das eleições é uma forma notoriamente ineficaz de promover o governo do povo. O processo eleitoral beneficia os grupos poderosos, que se impõem pela força do dinheiro, pela capacidade de produzir as visões de mundo e mesmo pelo destaque que sua posição privilegiada lhes concede. Depois das eleições, eles continuam com um poder de influência desigual, que se manifesta no lobby, na pressão sobre as políticas governamentais, no impacto sobre a economia, na corrupção. Mesmo os integrantes dos grupos subalternos, quando obtêm êxito nas disputas políticas, têm fortes incentivos para se integrar à elite do poder. Em países que sofrem com grande atraso social, como é o caso do Brasil, tais disfuncionalidades – que, no entanto, são perfeitamente funcionais para a perpetuação das hierarquias tal como existem na sociedade – são ainda mais acentuadas.

Mesmo assim, a democracia eleitoral exige algum grau de compromisso com a opinião pública. Ao distribuir a capacidade de pressão política por meio do voto, permite que a vontade popular influencie nas tomadas de decisão. Se isso não ocorre, obriga os governantes a pelo menos simular algum respeito a essa vontade. E se não há nem isso, eles pelo menos devem procurar manter a fachada de adesão a certos padrões de comportamento socialmente exigidos. Caso contrário, temos um governo que se julga capaz de escarnecer da opinião pública, dispensar qualquer base social significativa e se sustentar exclusivamente na força. A força do poder econômico, a força do Estado e, em última análise, o monopólio do uso da força.

O Executivo de Temer, o Legislativo de Maia e Eunício e o Judiciário de Gilmar e Cármen Lúcia sintetizam esse cenário no Brasil – se preferirmos outro emblema, a recente decisão da direção nacional do PSDB também serve. A questão é sabe se e como teremos condições de reverter tamanho retrocesso e reiniciar o processo de construção de uma ordem democrática.

O momento central da democracia eleitoral é, evidentemente, a eleição. Ela serve, inclusive, para reconectar o poder aos cidadãos comuns, em momentos de crise aguda. No caso brasileiro, não é tão simples assim. A origem imediata da situação que vivemos – o golpe de maio e agosto de 2016 – é a recusa à aceitação de um resultado eleitoral. Uma das explicações para a permanência de Michel Temer na presidência é o pânico das elites, de que, com a vacância do cargo, não seja mais possível segurar a exigência popular de diretas. Em suma, os donos do poder, no Brasil, não confiam nem um pouco no processo eleitoral.

Namoram a ideia de produzir um processo eleitoral controlado, extirpando o candidato favorito por meio de uma condenação na farsa judicial em curso, talvez até prendendo-o. Ainda assim, o resultado pode lhes ser desfavorável, pois mesmo a ausência deste favorito não promove à condição de novo favorito nenhum dos nomes preferidos da direita: gera um vácuo que não se sabe como será preenchido. Ademais, uma intervenção deste tipo na disputa leva ao risco de provocar um acirramento das tensões e reduz, de maneira drástica, a capacidade de legitimação que a eleição produz. Se o chamamento às urnas tem como principal mérito conceder legitimidade ao regime, mas essa legitimidade é corroída pelo fato de que as opções à disposição dos votantes foram mutiladas arbitrariamente, qual o sentido de convocar eleições?

Mesmo que as eleições sejam realizadas e ganhe o atual favorito ou outro nome com compromisso com o campo democrático, a equação estará longe de ser solucionada. O que pode a presidência diante de um Congresso a serviço dos grandes grupos econômicos, partidos corrompidos até a medula, polícia e ministério público partidarizados, mídia sórdida, um Judiciário que é a encarnação contemporânea do velho coronelismo? Os “freios e contrapesos” do nosso sistema político estão funcionando para impedir qualquer mudança e perpetuar o atual estado de coisas. A sabedoria política convencional empurra qualquer eleito para uma redução drásticas das expectativas e a acomodação a essa correlação de forças.

Qualquer mudança só pode vir do lado de fora das instituições. Da pressão das ruas, forçando os limites do sistema. Não será pelo milagre de uma vitória eleitoral, muito menos pela quimérica mudança de atitude de uma Justiça redentora. Apenas a mobilização popular, ampliando os custos da dominação, pode levar as elites a moderar seu apetite e repactuar o compromisso democrático.

Luis Felipe Miguel é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)

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