segunda-feira, 3 de julho de 2017

Enquadrar o Catar

Egypt, Saudi Arabia, Bahrain and the United Arab Emirates cut off diplomatic ties with Qatar

Entre países onde muito da função governamental está ligada à ereção de arranha-céus e outros símbolos de poder usando a riqueza que brota do chão, o apêndice resolveu aparecer mais que o grande vizinho que se pensa seu patrão. Está sendo punido, e chamado à ordem, por isso, essencialmente.


Ouvi um dia de alguém – lembro da fala, mas não do interlocutor – que no séquito do então primeiro ministro libanês, Rafiq Hariri, era absolutamente proibido que alguém entre subordinados ou seguidores tivesse ou ostentasse qualquer objeto ou símbolo de riqueza e poder superiores aos do chefe.

Não posso provar, mas acredito, que fosse verdade. 

Hariri morara por muito tempo e fizera fortuna na Arábia Saudita. Não digo que a política e a sociedade libanesas não conheçam marcas de uma hierarquia autoritária, mas é certo que Hariri absorvera outras da sua proximidade com a família real saudita.
No mapa – e por vezes uma imagem é de fato mais poderosa do que muitas palavras – o Catar aparece como um pequeno apêndice colado às costas da Arábia Saudita.

Entre países onde muito da função governamental está ligada à ereção de arranha-céus e outros símbolos de poder usando a riqueza que brota do chão, o apêndice resolveu aparecer mais que o grande vizinho que se pensa seu patrão. Está sendo punido, e chamado à ordem, por isso, essencialmente.

Não se trata apenas de símbolos e de aparências, é claro. Não são apenas os museus, os grandes prêmios, a copa do mundo, as filiais das universidades americanas, ou o prestígio da Aljazeera que constituem o pecado do Catar. Para além dessas lantejoulas brilhantes, o Catar investiu em uma política externa voltada a fazer dele um jogador importante e, em grande medida, liberto das diretrizes ditadas pela Arábia Saudita e por outros.

Esse investimento se fez ver intensamente no período que se seguiu à explosão das revoltas árabes e é especialmente evidente na guerra da Síria.

Ainda que na Síria, e na região de modo geral, haja interesses que Catar e Arábia Saudita enxerguem como comuns, tendo ambos, por exemplo, apostado e investido, pesadamente na queda do regime de Bashar El Assad, eles têm agendas e táticas divergentes.

Ambos, para não falar de outros tantos atores, financiaram, armaram e contribuíram para o treinamento dos grupos armados que lutam contra o governo da Síria. Ao que parece, no entanto, o Catar foi mais longe no investimento para a construção de instituições alternativas e governos paralelos. Cada um dos dois apoiou mais intensamente alguns grupos que muitas vezes se viam em batalha contra os apoiados pelo outro.

Essencialmente, para fins didáticos, pode-se dizer que havia uma divergência fundamental relacionada à aposta que cada um fazia para o futuro da região: a aposta do Catar era a Irmandade Muçulmana e a aposta do Arábia Saudita era sobretudo não a Irmandade Muçulmana.

A opção do Catar parece ter fracassado e o protagonismo do país já foi castigado antes. Em maio de 2013 um jornal libanês noticiou que um funcionário americano teria comunicado ao então Emir do Catar – pai do atual – que deveria renunciar ao trono em benefício de seu filho e levar consigo o então primeiro ministro e ministro das relações exteriores, responsável em grande medida pelas políticas do país em relação às revoltas árabes. A coisa foi lida por muitos como a prova de que aos olhos dos Estados Unidos o Catar tinha se excedido, tinha ido além do que lhe era autorizado.

E efetivamente, nos dois meses seguintes anunciou-se a troca no poder, quase ao mesmo tempo em que a cartada da Irmandade Muçulmana no Egito era derrotada e o seu presidente era deposto e preso.

A troca de Emir, no entanto, não parece ter arrefecido a vontade do Catar de ocupar um lugar de destaque, e o país continuou a atuar intensamente.

Chegou então Trump. Durante a campanha presidencial, Trump havia dito que ele agora faria os sauditas, e outros, pagarem como devido pela proteção que recebiam dos Estados Unidos.

Ele foi recebido pelo Reino, que reuniu em sua homenagem representantes do mundo árabe e muçulmano e pagou regiamente o que lhe era cobrado: algo em torno de 400 bilhões de dólares em contratos, ao menos 100 desses em compra de armas.

Após a visita, os sauditas trocam de herdeiro ao trono, num movimento já antecipado por muitos, consolidando a posição do futuro rei mais simpático aos americanos e israelenses, intensificam a campanha militar contra o Iêmen, acentuam os ataques ao Irã e enquadram, ou tentam enquadrar, o Catar.

Algumas das acusações são risíveis, na medida em que, em alguns crimes, como o financiamento do terrorismo, acusado e acusador são igualmente culpados. Algumas das demandas são o equivalente à submissão total às vontades do senhor.



O contrato que Estados Unidos e Catar celebraram nos dias que se seguiram, de venda de alguns aviões do penúltimo modelo, por 24 bilhões de dólares, não parece suficiente para comprar de Trump a independência em relação ao vizinho muito cioso de sua própria primazia.

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