Foto: Gabriel Nascimento/Riotur
Gustavo Freire Barbosa / Advogado
No ano passado a escola de samba Imperatriz Leopoldinense se apresentou com um samba enredo que saudou a resistência indígena, denunciando a monstruosidade da máquina de moer índios que ainda se encontra a todo vapor no Brasil, onde:
“O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
Devora as matas e seca os rios
Tanta riqueza que a cobiça destruiu!”.
Como existiam demasiadas cabeças para poucas carapuças, houve quem não apenas as vestisse mas também fizesse questão de passar publicamente o recibo. Ruralistas e setores da mídia corporativa se insurgiram contra a escola de samba, acusada de macular a imagem do agronegócio, esta entidade de reminiscências aristocráticas e escravocratas para quem a insolência das críticas da plebe ignara e piolhenta deve ser devidamente sufocada, conforme sugestão do senador agroboy Ronaldo Caiado, entusiasta da exploração forçada da força de trabalho.
Como liberdade para gente como Caiado é aquela que se limita aos códigos mercantis e patrimoniais, a turma ficou descontente ao ponto de ensaiar uma censura à escola, conforme já tratamos aqui, nesta coluna.
No carnaval deste ano, a pequena Paraíso da Tuiuti desbancou medalhões e cacifou o segundo lugar com um enredo que questiona se a escravidão de fato acabou, passando transversalmente pelas reformas que vêm afligindo a maior parte do povo brasileiro. A apresentação não poupou críticas ao projeto totalitário de concretização dos desígnios do mercado financeiro que, embora derrotado nas eleições de 2014, vem sendo aplicado com o pé no acelerador por Michel Temer, representado sob a alegoria de “vampiro neoliberalista” enquanto era levado pelo carro Neo-Tumbeiro, em clara referência ao fato de que mesmo após 130 anos da abolição formal da escravidão os grilhões ainda permanecem, só que agora adornados por flores que conferem verossimilhança à ilusão de liberdade.
A mídia corporativa e seu papel de destaque no golpe de 2016 também foi alvo da apresentação da escola de São Cristóvão. Primorosa em relacionar a perda de direitos trabalhistas à sede escravocrata pelo acúmulo de excedentes, o desfile retratou o entusiástico apoio dos meios comerciais de comunicação ao impeachment, manipulando manifestantes – representados na ala “Manifestoches” –para que abraçassem não apenas o golpe, mas um projeto alinhado apenas à vontade daqueles a quem Jessé Souza chama de a elite do dinheiro, ou o 1% de endinheirados que não exerce o poder social e político de modo direto e que têm condições de comprar as outras elites – a exemplo da midiática, responsável pela inoculação do veneno diário em um classe média que se imagina protagonista quando, na verdade, não passa de tropa de choque de interesses que não compreende.
O furo na bolha editorial da Rede Globo ficou evidente na nítida economia de comentários enquanto desfilavam na Marquês de Sapucaí as várias representações da manipulação midiática e mesmo da graça vampiresca de Temer – em tempos de sepultamento da CLT e do franco desequilíbrio das relações entre trabalho e capital, a alegoria nos remete a uma clássica passagem de Marx d’O Capital, segundo o qual o capital é trabalho morto que apenas se anima, à maneira de um vampiro, pela sucção de trabalho vivo, e que vive tanto mais quanto mais dele sugar[1].
O Paraíso da Tuiuti, apesar do destaque, não foi a primeira agremiação a levar a contemporaneidade da tradição escravocrata para o sambódromo. Em 1988, por ocasião dos cem anos da abolição, a Mangueira entrou na Sapucaí com o enredo “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão”, questionando exatamente o traço típico das democracias liberais em garantir direitos apenas no papel:
“Será que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será, oh, será
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão.
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu”.
Os números da realidade mostrada tanto pela Mangueira quanto pela Tuiuti são incontestáveis: 64% de nossa população carcerária é composta por pessoas negras. O genocídio da população negra, atestado pelas estatísticas do Atlas da Violência de 2017 lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), reverbera do fato de que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Ainda: enquanto a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice subiu para assustadores 22%.
A subcidadania do povo negro pode ser constatada por uma quantidade de informações suficiente para fazer corar mesmo o mais vulgar apologista do embuste da democracia racial e da tese estapafúrdia que hoje vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Em A Questão Judaica, Marx ensina que é inquestionável que a emancipação política, ou o reconhecimento de direitos dentro da ordem das democracias liberais burguesas, representa de fato um progresso, ainda que não chegue a ser forma definitiva da emancipação humana em geral, tendo em vista que constitui a forma definitiva desta emancipação apenas dentro da ordem mundial vigente.
O próprio Adam Smith reconheceu a improbabilidade da escravidão ser abolida em uma democracia onde os agentes políticos são senhores de escravos, sem qualquer prejuízo ao regular funcionamento das instituições democráticas.
Da mesma maneira que em 1819 os liberais do parlamento inglês eram contrários à proibição do trabalho de crianças com menos de 9 anos de idade e à limitação a 12 horas de jornada dos que tivessem menos de 16, era com base no direito natural à liberdade e à propriedade que a escravidão era defendida pela nata política e intelectual do liberalismo.
Thomas Jefferson, herói da democracia norte-americana e proclamador da “igualdade entre os homens”, era, assim como boa parte dos Pais Fundadores, um inveterado proprietário de escravos. A mesma narrativa se repete no Brasil em eventos como a Revolução Constitucionalista de 1817, onde a manutenção do regime escravocrata foi condição para que as elites locais simpáticas ao liberalismo aderissem ao movimento.
Que fique claro, professa o filósofo alemão: estamos aqui tratando de emancipação real, prática e efetiva, não de emancipação formal, política e dentro dos limites da moldura institucional. Esta última, em geral, não costuma passar de perfumaria; um frasco vazio cuja ausência de conteúdo só é percebida após aberto. A liberdade certamente virá, mas não pelas veredas predeterminadas das democracias liberais e tampouco pelas mãos dos espadachins da atual ordem social.É esta a mensagem que a Paraíso da Tuiuti passou ao cantar:
“Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação”.
Gustavo Freire Barbosa é advogado.
[1] O Capital, Boitempo Editorial, 2014. P. 307.
Ótimo texto!!!
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