Jornal GGN - O decreto de intervenção federal do presidente Michel Temer, destituindo a autonomia de poder do governo estadual sobre a Segurança Pública no Rio de Janeiro para a figura de um militar no comando, é constitucional. E entrar na Justiça seria perda de tempo. A briga terá que ser política e nas ruas.
Essa é a visão do professor doutor na Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Neves. Em entrevista ao GGN, o constitucionalista explicou por que os argumentos jurídicos não servem para barrar a medida polêmica do mandatário e considerando que, hoje e para casos como este, o campo do Judiciário é batalha perdida.
Frisou que a Constituição prevê a decisão de Michel Temer, independente de ser ela efetiva ou não. Por isso, a discussão estaria em outro patamar: até que ponto a militarização e a centralização de competências estaduais ao federal valem a pena, com o risco de a intervenção se repetir para outros Estados e situações e a ameaça de ultrapassar garantias do estado de direito.
Acompanhe trechos da entrevista:
GGN: Antes de mais nada, sob o aspecto de autonomia federativa e a militarização da Segurança, o decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro é constituicional?
MARCELO NEVES: A Constituição prevê, mesmo que parcial. É possível intervir para tirar um governador e colocar um interventor, como também pode ser uma intervenção parcial, que foi neste caso. Eu não vejo inconstitucionalidade. Alguns dizem que por ser um militar na execução seria inconstitucional, mas me parece que o problema não é esse.
A questão é saber se é adequado o interventor [Walter Braga Netto] ser um General do Exército que não é preparado para a Segurança Pública, este é o problema, que pode ser ineficiente. E politicamente, penso que a postura com a indicação de um General do Exército é negativa porque militariza a questão pública. Então, para mim é mais um efeito negativo de se escolher uma pessoa que não é formada, não é tarjada, não é orientada para o público, e sim para a guerra.
Quem vai mais sofrer neste contexto são as parcelas das camadas mais pobre do Rio de Janeiro, porque pode prevalecer a violência sem critérios de Estado de Direito. Ou na execução, com a possibilidade de ilegalidades, de fugir do controle jurídico e então realmente ser desastroso.
A experiência que se tem com uma presença militar, mesmo em 1992 [á época, o Comando Militar do Leste foi convocado para garantir a segurança de chefes de Estado estrangeiros e integrantes da Rio-92], quando não foi apenas uma intervenção, mas uma presença do Exército para proteger o encontro mundial que estava ocorrendo no Brasil, o que se sabe é que houve muita arbitrariedade, muitas práticas que iam além dos critérios do Estado de Direito e essas práticas arbitrárias atingiram a população mais pobre, grande parte dela não tem nada a ver com essa criminalidade.
GGN: A dúvida é se seria inconstitucional, considerando, por exemplo, o artigo 1º do decreto, que traz uma brecha ao afirmar que o cargo do interventor é de "natureza militar". Alguns juristas afirmam que nada impede que um militar assuma o cargo de interventor, mas estaria ocupando por natureza civil, e que seria inconstitucional trazer esse teor de natureza militar.
MARCELO NEVES: A hipótese destes detalhes levanta a questão de inconstitucionalidade e é provável que possa ser acudido com esse argumento. Mas levaria apenas a uma inconstitucionalidade parcial, o Supremo poderia dizer que não vale essa parte do decreto, mas não todo. Mas eu penso que se juridicializar muito essas questões, fica-se nas mãos de um poder Judiciário que é totalmente parcial, sem nenhuma consistência, então seria talvez mais grave.
Penso que o questionamento deve ser muito mais apontando para o problema político, a fragilidade desse governo, a tentativa de se legitimar perante a população, que é um tipo de estratégia que é muito estimulada. Li informações de que, no ano passado, a violência no carnaval foi maior do que esse ano. O fato de, por exemplo, Sergipe ter quase o dobro de homicídios do que o Rio de Janeiro, isso não é transmitido na mídia.
A construção midiática do caos também é um elemento usado pelo governo para buscar uma tentativa de retomar uma base com a população, porque está totalmente sem nenhum apoio popular, respeitabilidade e talvez seja um mecanismo político. Por isso, penso que é pouco provável que essa intervenção tenha um efeito prático relevante, e a militarização é muito negativa, independentemente desse aspecto jurídico que está sendo levantado.
GGN: Uma intervenção federal permite a expansão do prazo estabelecido pelo decreto, que seria até dezembro de 2018? Existe a possibilidade desse tempo ser aumentado?
MARCELO NEVES: Pode, com o apoio do Congresso. Em tese, se a situação não se modifica e se entende que não está havendo mudanças, ele [Temer] poderia [aumentar o prazo], como ele pode também suspender, cessar a intervenção por ele achar que a situação foi superada. A intervenção é uma situação que não há quebra das garantias constitucionais.
Ainda é menos grave do que o Estado de Sítio ou Estado de Defesa sendo aplicados para uma determinada região, porque existe a suspensão de garantias, como a liberdade de ir e vir, a censura das correspondências, que se precisa de autorização judicial, etc. O que tem que ser levantado, no meu entender, é a questão política da intervenção e a eficiência dela, a partir de uma pessoa que não é formada para essa área, dirigindo todo esse processo.
Mas há outros detalhes - como ele [interventor] entrando como militar fica protegido pela Justiça Militar - que podem até ter um significado prático [na tentativa de impedir o decreto judicialmente], mas me parece que é muito aberta essa questão da intervenção, onde o espaço do poder do presidente é muito forte, a Constituição dá muitos poderes a ele nesta área. Por isso, seria muito pouco provável conseguir uma inconstitucionalidade total do decreto, apenas uma declaração de inconstitucionalidade parcial.
GGN: Esse movimento da implementação das Forças Armadas e polícias militares para realizar a Segurança Pública no Rio de Janeiro é uma continuidade do que já vinha sendo feito pelo presidente, que anteriormente implementou a Garantia da Lei e da Ordem, que estabeleceu também o emprego de militares nas ruas do Rio, além de outros casos que denominou de exceção, por determinado evento.
MARCELO NEVES: O decreto é mais drástico, porque na forma da GLO faz em parceria com o Estado. O secretário de Segurança Pública é que tem o poder de decisão local, com parceria de trabalho. No caso da intervenção, realmente, o governo do Estado do Rio é deixado de lado, perde qualquer possibilidade de decidir. Nesse sentido é diferente, há uma explosão realmente nessa área de Segurança. Mas de qualquer forma é uma fortificação que é preocupante em termos da forma de apresentação de um militar que tem uma postura alta dentro das Forças Armadas, porém não é versado para aquele tipo de atividade, o que é um ponto muito frágil.
GGN: Falando de consequências. Apesar de a priori a medida não ter sido considerada inconstitucional, como consequência a intervenção poderia gerar exemplo de política de governo para ser empregada em outras situações e em outros estados do Brasil, por somente considerar níveis de violência? E pode, ainda, fugir do controle jurídico, e aos poucos avançar contra garantias do estado de direito?
MARCELO NEVES: Pode ter consequências tanto na execução da intervenção no Rio de Janeiro para o desrespeito ao estado de direito, já sendo no plano da execução, e pode evidentemente em face dessa intervenção haver apoio para outras, considerando a situação desastrosa dos estados na matéria de segurança pública. Esse modelo pode se repetir outros Estados.
E aí passa a ficar problemática, porque tudo indica que essas intervenções, na tradição brasileira, no Período da Primeira República, por exemplo, isso era permanente, regular. Rui Barbosa criticava muito isso, dizendo que não há condições de uma Federação, a qualquer momento, estar fazendo intervenções. Se chegar a esse cenário, intervenção atrás de intervenção, vamos ter tendência a fortificação do poder central ao desrespeito do princípio federativo e também, por se tratar de base militar, um risco para a garantia do estado de direito.
E isso normalmente cai por cima das parcelas mais carentes da população, de acordo com o nosso histórico de uma sociedade altamente desigualitária, no topo da pesquisa do [Thomas] Piketty [economista que comanda estudo reconhecido por taxação de mais ricos e desigualdades]. Relatório aponta que o Brasil com o 1% mais rico é a sociedade mais desigualitária do mundo. Implica que a estrutura social tão desigualitária, em uma intervenção desse tipo, atinge os setores sociais mais carentes, que andam de ônibus, a pé a noite do trabalho. Essas pessoas é que terão as consequências negativas. Lembrando que essa criminalidade passa a afetar a classe média e classe alta e a repressão vem contra os mais fracos na estrutura social.
GGN: Ou seja, um cenário diferente depende de mobilização pública, movimentos sociais e pouco o Judiciário poderia fazer neste momento, atentos somente a possíveis consequências desse decreto, caso se ultrapasse limites estabelecidos pela nossa Constituição.
MARCELO NEVES: É importante a mobilização dos movimentos populares para ficar alerta, se preparar para a defesa, que já está havendo com grupos de movimentos sociais no Rio de Janeiro, partidos políticos críticos também estarem atentos para o esclarecimento da população, entendendo que a luta é muito mais política, já que a questão jurídica tem efeito menor.
Embora eu seja da área de Direito, percebo que ultimamente há um excesso de judicialização que sempre está sendo negativa para aquelas fatias sociais mais fracas, em beneficio dos mais pobres. Neste contexto, eu não aposto na judicialização, acredito no preparo da população, com denúncias e também a presença de mídias alternativas que possam estar denunciando constantemente esses abusos, que isso pode também contribuir para desmascarar a seriedade dessa intervenção.
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