Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página
Vamos partir de uma situação que grande parte de nós já vivenciou. Estamos saindo do cinema, depois de termos visto uma adaptação de um livro do qual gostamos muito. Na verdade, até que gostamos do filme também: o sentido foi mantido, a escolha do elenco foi adequada, e a trilha sonora reforçou a camada afetiva da narrativa. Por que então sentimos que algo está fora do lugar? Eu penso logo em Fim de Caso, do inglês Graham Greene, levado às telas por Neil Jordan. Mas você pode pensar em Harry Potter, em Alice no País das Maravilhas, em qualquer um dos filmes baseados em romances do Cormac McCarthy. No meu caso, eu tinha a Julianne Moore no papel feminino principal, e com ela nada pode dar muito errado, né? Então, por que me senti um pouco traída e com uma sensação de que havia faltado alguma coisa?
O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.
Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. É sempre bom ver Julianne Moore na tela... O problema é que ela, ali, toma o espaço que, de alguma forma, eu havia preenchido na narrativa quando a li.
Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.
Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música, encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. Mas o que é, afinal, a imaginação, essa noção tão corriqueira e sobre a qual refletimos tão pouco?
Proponho pensar a imaginação como um espaço de liberdade ilimitada, no qual, a partir de estímulos do mundo exterior, somos confrontados (mas também despertados) a responder com memórias, sentimentos, crenças e conhecimentos para forjar, em última instância, aquilo de faz de cada um de nós diferente dos demais. A leitura de textos literários é uma forma privilegiada de disparar esse mecanismo imenso, porque demanda de nós todas essas reações de modo ininterrupto, exige que nosso corpo esteja ele próprio presente no espaço ficcional com que nos deparamos, sob pena de não existir espaço ficcional algum.
A imaginação entra em cena para ampliar as contradições, sem, contudo, tornar a experiência incoerente
Mais ainda, a experiência literária nos dá a chance de vivenciarmos possibilidades que, no cotidiano, estão fechadas a nós: de explorarmos essas possibilidades como se estivéssemos, de fato, presentes. E a imaginação é o palco em que a vivência dessas possibilidades é encenada, por meio do jogo entre identificações e rejeições.
Resta pensar por que é tão importante encenar possibilidades. Em primeiro lugar, como o escritor Bernardo Carvalho destacou recentemente, estamos vivendo uma confusão generalizada entre realidade e representação artística, em que esta última vem sofrendo sanções violentas, por se haver perdido a medida da diferença entre o real e a retomada desse real em obras artísticas. Carvalho inicia seu texto afirmando, muito acertadamente, que rejeitar ou proibir a representação ficcional do horror que há no mundo é sintoma de um desespero – o desespero causado pela impossibilidade de eliminarmos o horror real. Além disso, diz ele mais adiante, recusar a legitimidade ou a existência de determinadas obras de arte denota o temor à ambivalência dos nossos próprios desejos, sentimentos e certezas.
Aprendemos desde cedo que, para que haja vida em sociedade, não podemos pôr em prática, na vida cotidiana, toda essa ambivalência. Um dos poderes da obra de arte é, precisamente, o de oferecer uma experiência cuja própria premissa é a existência de paradoxos – afinal, a ficção cria um mundo que, fora dela, não existe, mas no qual precisamos acreditar. A imaginação entra em cena para ampliar as contradições, sem, contudo, tornar a experiência incoerente: estamos, agora, no domínio da associação livre e espontânea entre o que lemos, o que lembramos, o que sabemos e sentimos. Idealmente, ao lermos uma obra literária, não caímos na confusão entre a realidade e a representação dela, e sim nos conectamos a uma realidade cotidianamente inacessível, por meio da interação entre o que o texto propõe e a nossa imaginação. Nesta, acessamos aqueles que somos, mas também aqueles que poderíamos ser – maravilhosos ou terríveis.
Há, ainda, outra defesa para a primazia da literatura como “disparadora” da imaginação. Para ela, recorro a uma história real, que se desenrola neste momento, na Universidade Stanford, uma das melhores do mundo e, além disso, localizada em meio ao Vale do Silício. Lá, hoje se desenvolve boa parte das pesquisas científicas mais importantes sobre inteligência artificial – assunto, aliás, que até pouco tempo atrás só era central em obras de ficção científica (e nem me deixem começar a falar da imaginação de gente como Ursula Le Guin ou Philip K. Dick!)
Se aos cientistas cabem os esforços e a ambição virtualmente irrestritos de inventar o futuro, cabe a nós, das ditas humanidades, oferecer um terreno aberto de discussão sobre esse futuro
Em Stanford, encontramos uma dessas figuras que só um ambiente absurdamente privilegiado é capaz de produzir (e de que meritocracia nenhuma, sozinha, pode dar conta): o americano Sam Ginn está no terceiro ano de sua graduação, e irá se formar em ciência da computação e... em literatura comparada (desde 2014, a universidade oferece e incentiva a prática de dupla graduação em computação e em uma área das humanidades). O principal interesse de Sam é na replicação artificial da consciência humana. E um dos principais autores que guiam a pesquisa dele não é um neurocientista ou um programador como ele próprio, mas o filósofo Martin Heidegger (ele fala sobre isso nesta entrevista incrível). Vale contar, também, que, quando não está em sala de aula, Sam atua no laboratório de inteligência artificial da universidade, um trabalho pelo qual recebe, aos 20 anos, um salário que deixaria bastante felizes muitos pesquisadores brasileiros experientes.
No começo deste mês, em um evento em homenagem à obra de Gumbrecht, Sam lembrou a uma plateia formada por professores e pesquisadores de história, filosofia e literatura, que muitas elucubrações que sempre haviam sido do domínio da ficção hoje se tornaram objeto de pesquisas reais. Disse ainda que, se aos cientistas cabem os esforços e a ambição virtualmente irrestritos de inventar o futuro, cabe a nós, das ditas humanidades, oferecer um terreno aberto de discussão sobre esse futuro. Esse terreno constituiria uma base não propriamente ética (o que seria um encargo que excede as nossas capacidades, por mais que alguns de nós se achem aptos a ele...), mas simplesmente humanista, no melhor sentido do termo: um espaço de debate não calcado em posições preconcebidas ou objetivos concretamente delimitados. Entre os futuros imaginados por jovens como ele, Sam mencionou – provocando taquicardia em muitos, e em mim – a possibilidade concreta de uma existência em que a morte terá sido derrotada pela ciência. Se isso será bom ou ruim, não me cabe dizer. Sei apenas que a imaginação humana tem muito trabalho pela frente, e que nenhum esforço da literatura para despertá-la terá sido em vão.
Ligia G. Diniz é doutora em literatura pela UnB e recebeu, em 2017, o prêmio CAPES de melhor tese em Letras pelo seu trabalho, intitulado Por uma Impossível Fenomenologia dos Afetos: Imaginação e Presença na Experiência Literária.
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