O que é polarização política ou como fazer a luta política pelos sentidos?
O século XXI começou e, rapidamente, um processo de polarização política se vê instaurado. Processo semelhante ao que ocorreu na Europa no período entre guerras, e que gerou o surgimento dos modelos políticos e sociais implementados do fascismo e do nazismo. Não é, pois, por detalhe ou mera coincidência que estamos vendo – em pleno século XXI – o ressurgimento da importância social de pensamentos e teorias que defendem a superioridade de pessoas e raças sobre outras. Estas ideias partem da noção dos direitos humanos como algo assessório (desimportante) e isto inclui o direito à vida, à livre expressão das ideias e à liberdade social, política e jurídica. O resultado é o crescimento do punitivismo, dos discursos de ódio o questionamento da democracia e de qualquer noção de igualdade entre os homens.
Mas efetivamente como isto se dá? E, indo mais longe, como fazer o combate destas ideias que, sabemos pela história, desembocarão em ditaduras bestiais e guerras (e os uniformes verdes vistos recentemente em todas as partes do RJ são um péssimo presságio)?
Toda a polarização política é um processo não natural de seleção e hierarquização de ideias. Quando se diz “não natural” é porque ela não obedece ao princípio da ação individual no campo político. O “grande mercado das ideias” (para usar uma noção de Stuart Mill) oferece todas elas ao livre consumo. Desde ideais humanistas, religiosas, altruístas até posições fascistas, nazistas e de autodestruição. Por qualquer meio que você venha a hierarquizar estas ideias a distribuição de pessoas dentro delas irá sempre obedecer a chamada “distribuição normal” na estatística, quando a posição relativa dos indivíduos é aleatória e independente. Isto quer dizer que um número maior de pessoas vai se postar nos centros políticos ao invés de buscarem os polos.
Ainda que se tenha o trabalho árduo de partidos ou militância (de qualquer posição política), dado que este trabalho ocorre sempre de pessoa para pessoa, o convencimento e a luta das ideias – por seu reduzido alcance no tempo e no espaço – não provoca uma polarização. Ao jogar o comportamento político individual dentro de modelos matemáticos, o processo de convencimento pessoal, ainda que a originar-se nos polos, não consegue, sozinho mudar a distribuição normal. Usando-se apenas os partidos para luta política, as mudanças políticas ocorrem de forma lenta e, como diria Edmund Burke, “através do controle da experiência e da história”. As revoluções são sempre fruto de determinadas condições que alteram este processo. Guerras, fomes, crises econômicas, regimes de extrema violência, pestes e doenças que passam a ameaçar a existência de grande número de pessoas e etc.
Ocorre que, desde o final do século XIX, o capital (ou os capitalistas) passou a utilizar das forças sociais para se defender. Originalmente lastrado na violência crua do Estado, o capital passou a defender seu direito de acumulação (e assim formar sociedades tremendamente desiguais e injustas) via convencimento da população da superioridade hierárquica das noções de “propriedade privada” e “imperativos legais” emanados pelo Estado. Jogou aqui, muito fortemente a noção religiosa de “destino” e, assim, naturalizou-se a pobreza e explicou-se a extrema riqueza: os capitalistas eram “mais capazes”. Ao longo do século XIX e XX, a grande batalha foi, portanto, legitimar ou deslegitimar a riqueza como fruto do trabalho e sua justiça social através da “meritocracia”.
Neste processo, duas poderosas forças se digladiam através da ciência e da propaganda. As tentativas de convencimento podem se dar por mérito do argumento (ciência) ou por pura propaganda. Ocorre que enquanto o convencimento científico acontece através de leitura e autoconvencimento cognitivo, a propaganda entrou com métodos que são sim capazes de distorcer as curvas normais. Especialmente com o crescimento dos caminhos digitais, as ideias – certas ou erradas, com lastro científico ou não – atingem um número imenso de pessoas (muito maior do que antes ocorria) que acabam por se convencer por razões distintas do que foram historicamente a política e a ciência nos séculos XIX e XX.
No afã de se defender das repercussões das crises econômicas e da superacumulação explícita de riqueza, os capitalistas – assim como fizeram no período entre guerras – lançaram mão de seus vastos recursos materiais para mudar a distribuição normal das pessoas dentro do “mercado das ideias”. Como as pessoas mais ao centro foram vendo seus vizinhos imediatos sumirem, cada uma delas foi dirigindo-se mais aos polos, e este movimento individual, impelido pela força das comunicações instantâneas e dos meios de comunicação do século XXI, está acontecendo em escala global e de forma muito rápida.
A forma pela qual a propaganda age no processo de polarização política é recalibrando as noções de importância e atribuindo ao que é marginal peso como se fosse central. Se olharmos para o RJ, apenas para darmos um exemplo, a violência não é questão central. Não nem por questões quantitativas (onde o RJ não é cidade mais violenta do Brasil ou do mundo), nem por questões qualitativas (dado que o RJ não se encontra em situação diferente do que a maioria das cidades no planeta) e nem mesmo por alteração drástica de situação (dado que não houve mudança nos números de 2016 ou 2017 para agora). Este tipo de ideia de “segurança” (prender e punir) impacta apenas no bem-estar de uma parcela pequena da população, eis que as populações pobres, pardas e de periferia sobrevivem acomodando-se a esta violência que – para eles – tem dois vetores de aplicação (ao invés de apenas um): um vindo do crime e outro do Estado.
A questão central no RJ é a distribuição de renda e a falta de perspectivas econômicas, dada a crise que o Brasil foi jogado desde o golpe. Mas, por recalibrar as noções de importância, e atribuir à “segurança” um peso de centralidade que ela não tem, a propaganda cria um “falso consenso”, que justifica moralmente a ação da intervenção. Os processos são claros em “martelar” números e pesquisas, fotos de mortes e casos dolorosamente reais, ao mesmo tempo que se mascaram os números do desemprego, da concentração de renda e da violência de Estado. Com isto, empurra-se os consensos éticos para questões laterais e deixa-se intocado o centro explicativo da violência social: a acumulação de riqueza.
Na questão do impeachment ocorreu exatamente a mesma coisa. As “pedaladas fiscais” eram questão lateral e de menor importância. O cerne era o processo de recuperação econômica que o Brasil precisava, mantendo os programas sociais e trabalhando pela reativação da economia. Através de maciços investimentos em propaganda, se deslocou o centro de discussão política para questões no campo das ideias e do imaterial como a “corrupção”. Veja que a corrupção nunca foi apresentada como valor real. Nunca foram dados os valores que ela gerava na Petrobrás (pouco mais de 1% do faturamento), mas sempre tomada de forma “ideal”, como sendo inaceitável eticamente. A formação de consenso passa pelo deslocamento dos sentidos do que é real para o que é imaterial. E isto é necessário, pois de outra forma não haveria como explicar, racionalmente, como o combate a um malfeito que dava um prejuízo de 1% do faturamento da Petrobrás, levou à queda de quase 3% do PIB brasileiro. Este é o material efeito das ações da República de Curitiba e da Lava a Jato.
Não se trata de desculpar ou minimizar qualquer crime, trata-se de mostra que SOB O PONTO DE VISTA material era melhor deixar a corrupção e não jogar o país numa espiral de empobrecimento, desemprego, deslegitimação política e violência. Ainda mais quando se sabe que não havia somente estas duas opções (deixar a corrupção agir impune ou quebrar o país). Existiam muitos outros métodos de se combater o mal na Petrobrás. Alguns deles já estavam em prática, ou a crítica do PMDB e PP à indicação de Graça Foster para presidência da Petrobrás foi esquecida? A ordem de Dilma era “limpar” a Petrobrás sem destruir-lhe o valor, prejudicar a soberania brasileira ou acabar com a importância da companhia. Até por isto Dilma sofreu a oposição dos corruptos do congresso, que, eleitos por nós, vieram a se mostrar maioria de 2/3 para poder acabar com o mandato legítimo da presidenta.
Cada individuo sendo obrigado, por força da propaganda moralista, a decidir-se sob questões marginais e a definir o seu apoio e sua lealdade eleitoral, acaba se deslocando para os polos. “Você acha justo que pessoas continuem sendo assaltadas na linha vermelha? Olhe o vídeo!” e diante da evidência e do sentido moralista há que se tomar posição. Ocorre que a mesma violência que acontece na linha vermelha contra os carros e as pessoas brancas de classe média, acontece também – quase sempre sem visibilidade da propaganda e da mídia – com pessoas na periferia. E por se discutir a violência em si e não o que causa esta violência, o cidadão mediano é levado a apoiar medidas de força e endurecimento sem saber que elas não são minimamente eficazes para resolver o problema que ele pensa ser central.
A forma de combater isto é negar-se a discutir questões marginais. Não há que se discutir segurança porque ela é DECORRÊNCIA das questões econômicas. E quando se resolve o problema centra, os laterais ficam mais simples e fáceis de serem solucionados. É preciso dar emprego, diminuir a diferenciação social e econômica, garantir direitos e assim evitar a exclusão. Quando isto for feito, a violência urbana se reduzirá a um pequeno número de criminosos que não conseguirão se esconder numa imensa massa de excluídos e empobrecidos, trabalhadores que lutam para sobreviver e criar seus filhos. Pedaladas fiscais são questão desimportante. A crise econômica deveria ter sido atacada, mas não só Cunha travou TODAS as tentativas de resolução do problema, como o vice-governo de Temer institucionalizou as pedaladas, a corrupção e ministros e ministérios incapazes, inoperantes e reacionários. O que era marginal no governo Dilma – fruto da tentativa desesperada de busca de apoio político – virou essência do governo Temer.
É preciso parar de discutir Ficha-Limpa e passar a discutir representação e democracia. É preciso parar com as discussões sobre bíblia, direitos e moral cristã e discutirmos o direito humano laico. É preciso parar de discutir corrupção e discutirmos crescimento econômico e redução das desigualdades. É preciso parar de discutir violência urbana e começarmos a discutir projetos de inclusão social no espaço e no tempo da maioria das pessoas. E esta maioria não está no Leblon ou na Villa Madalena, mas nas periferias. É preciso parar de discutir as cores do Brasil, para discutirmos o Brasil de todas as cores. E elas não são verde amarelo, mas um imenso conjunto que vai desde o branco europeu até o negro “da Guiné”, passando rigorosamente por todos os tons.
A esquerda tem que parar de ser pautada pela mídia e pela propaganda.
Sem isto, o golpe continua. Golpe que foi dado essencialmente sobre sentidos políticos. Golpe que mudou as noções daquilo que é central e o que é lateral, que capturou nosso olhar para vermos o que eles querem que seja visto. E mais nada.
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