domingo, 4 de fevereiro de 2018

QUANDO VAMOS ABRIR A CAIXA-PRETA DO JUDICIÁRIO?



LOGO NO INÍCIO do seu primeiro mandato, Lula questionou o excesso de autonomia do Poder Judiciário e defendeu a existência de um controle externo. “Não é meter a mão na decisão do juiz. É pelo menos saber como funciona a caixa-preta de um Judiciário que muitas vezes se sente intocável”. A declaração causou grande mal-estar entre os magistrados. Imediatamente, presidentes de tribunais superiores e de entidades de classe dos juízes a repudiaram. Essa grande reação corporativista é um padrão, acontece toda vez que a categoria é criticada publicamente.

Em 2004, sob muitas críticas, foi criado o importante Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão de controle, mas a caixa-preta do judiciário ainda segue intocável. O Brasil tem o poder judiciário e o Ministério Público mais caros do mundo e boa parte dos seus integrantes não quer que isso mude.

O juiz Marcelo Bretas, um dos heróis anti-corrupção forjados nos tribunais, virou notícia esta semana ao recorrer à Justiça para garantir o direito de sua esposa receber auxílio-moradia, contrariando uma proibição do CNJ – criada justamente após o ministro Fux autorizar o pagamento do benefício para toda a magistratura, e não apenas a quem não tem residência na cidade em que trabalha.

Além de Bretas, diversos outros colegas recorreram aos tribunais para conseguir o benefício duplo. O primeiro juiz sorteado para julgar o pedido de Bretas, por exemplo, teve que se declarar impedido por também ter requerido o benefício em dose dupla. A farra do auxílio-moradia também passa pelas cortes superiores: 26 ministros recebem o penduricalho mesmo tendo imóvel próprio em Brasília (alguns tem mais de um imóvel).

Outro herói anti-corrupção que não abre mão de receber o auxílio-moradia mesmo tendo casa própria a 3 km do trabalho é Sergio Moro. O juiz se defendeu afirmando que o benefício “compensa a falta de reajuste dos vencimentos desde 1 de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser anualmente reajustados”. Ele reivindica algo que nenhuma categoria de funcionário público tem: reajuste anual. E ainda por cima admite que o auxílio – de caráter indenizatório e que ele mesmo considera discutível –serve como um disfarce para compensar a falta de reajuste salarial. 

É curioso como juízes da Lava Jato, afamados pela defesa da ética pública, se sentem à vontade para receber penduricalhos que colocam suas remunerações acima do teto.

Em um tweet cheio de ironia e emoticons, Bretas respondeu aos que criticaram o acúmulo de benefícios.


Bretas fala nas redes como se fosse um cidadão latino-americano, sem dinheiro no banco, que estava apenas lutando pelos seus direitos. Acredita ser justo que ele e sua esposa recebam dos cofres públicos um auxílio-moradia em dose dupla mesmo morando debaixo do mesmo teto. O magistrado, que afirma ser a bíblia o livro principal da sua Vara, considera moralmente aceitável que o Estado ajude o casal a custear uma espaçosa residência com vista para o Pão de Açúcar em um dos endereços mais valorizados do Rio de Janeiro.

Casa do juiz Marcelo Bretas. 

ReproduçãoBretas não suportou as críticas e saiu bloqueando todo mundo no Twitter. Logo em seguida, anunciou que daria um tempo da rede social – um espaço que ele usava com frequência, inclusive para bater boca com políticos. Foi uma saída triunfal, comemorando 30 mil seguidores, e ostentando um bizarro apoio da Associação dos Juízes Federais (AJUFE).


A esperada reação corporativista veio no dia seguinte. A Associação de Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo correu para proteger o colega dos críticos e lançou nota pública em sua defesa. Em entrevista ao The Intercept Brasil, o presidente da entidade afirmou que não só Bretas, mas toda a categoria está sofrendo uma perseguição pela sua atuação nos casos de corrupção. O magistrado, assim como Bretas, é casado com uma juíza, e também recebe o auxílio em dobro.

As respostas da nobreza judiciária às críticas quase sempre resvalam nesse humor involuntário. Não custa lembrar a famosa declaração de José Renato Nalini, ex-presidente do TJ-SP e atual secretário de Educação de São Paulo, que defendeu o pagamento do auxílio-moradia para que juízes pudessem “comprar terno em Miami”:

Mas nem sempre a reação é motivo para risadas. Quando a Gazeta do Povo iniciou uma série de reportagens sobre os vencimentos dos membros do Judiciário e do MP do Paraná, revelando que a remuneração total dos magistrados e promotores ultrapassa o teto do funcionalismo público, entidades representativas dos magistrados e dos promotores se indignaram em nota pública.

Mas a coisa não ficaria nisso. Pelo grave crime de cometer jornalismo, o jornal e os repórteres que assinaram as matérias foram alvos de uma série de ações judiciais coordenadas por magistrados paranaenses. Foram mais de 40 ações individuais movidas em juizados especiais com pedidos de indenização que, somados, chegam a R$1,3 milhão. Um áudio publicado pelo BuzzFeed News mostrou um juiz orientando os colegas a iniciar a onda de processos contra os jornalistas.

A casta jurídica está sempre alerta em defesa dos seus privilégios.

A retaliação veio com requintes de crueldade: além dos conteúdos das ações serem praticamente os mesmos, todas foram movidas em juizados especiais – que só podem julgar causas que não ultrapassam 40 salários mínimos. Assim, não houve possibilidade de recursos a Cortes superiores, garantindo que os casos fossem julgados apenas pelos tribunais paranaenses. Parte da estratégia intimidatória é o fato das ações terem sido ajuizadas em 16 cidades do Paraná, fazendo com que os jornalistas tivessem que viajar pelo estado para participar das audiências. O recado para quem questionou os privilégios dos meritíssimos foi claro: a casta jurídica está sempre alerta em defesa dos seus privilégios.


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João Filhojoao.filho@​theintercept.com

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