domingo, 18 de março de 2018

A impunidade das armas, o sangue de Marielle e a Suprema Corte

GIBRAN MENDES


Em todo o país, o tráfico de drogas tem se transformado em um esquema simbiótico em que policiais corruptos muitas vezes chantageiam, pressionam, matam e sequestram traficantes e membros de suas famílias em troca de dinheiro e entorpecentes. 

Há casos, como no Ceará, em que policiais civis sequestravam traficantes para pedir resgate. No Rio Grande do Norte, PMs roubavam de traficantes até mesmo aparelhos celulares. No Distrito Federal policiais militares se passavam por policiais civis e invadiam, com mandatos falsos, casas de traficantes, para depois dividir entre si as “mercadorias” apreendidas. Policiais corruptos de Minas Gerais e do Paraná atuavam em conjunto para a apreensão de “transportes” de carga e de contrabando.

E em São Paulo, o Denarc ficou famoso pela corrupção e o desaparecimento de drogas apreendidas guardadas em seus próprios cofres, a ponto de o traficante colombiano Juan Carlos Abadia ter dito, certa vez, que “para acabar com o tráfico, bastava fechar o Departamento Estadual de Prevenção ao Narcotráfico”.

Na mão de quem deveria estar do lado da lei, a extorsão virou um grande negócio, que atinge também as prisões. Todo mundo sabe que não há droga, arma ou celular e, em muitos casos, “amantes” que entrem em presídio sem a anuência direta ou indireta de um agente penitenciário corrupto, que também extorque de detentos em troca de privilégios, “proteção” e benefícios.

A situação chega a ser tão ridícula que se gastam milhões para bloquear sinais de telefonia móvel em presídios – em um caso típico de tirar o sofá da sala para tentar impedir o adultério –, quando bastaria colocar um pouco de vergonha na cara e controlar com rigor e responsabilidade a entrada de funcionários dos presídios.

Mas só no Rio de Janeiro, além de extorsão sobre traficantes, policiais e ex-policiais corruptos extorquem também, massivamente, dinheiro da população mais pobre. Nesse estado, a violência policial não está presente apenas na opressão a comunidades de periferia, espaço preferencial para o exercício do achaque de varejo a grupos de traficantes com a cobrança de mensalões ou semanões fixos – como já ocorreu de forma fartamente documentada com membros de diversos batalhões da PM –, mas também no controle direto de vastíssimos territórios urbanos, principalmente em Niterói e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Cidadelas dentro da cidade, que são exploradas, na modalidade atacado, por organizações e milícias formadas por bombeiros e ex-policiais, onde corre solta a cobrança de taxas de “segurança”. A venda ilegal e compulsória de “gatonets” – redes piratas de TV a cabo. A exploração de serviços de vans e de mototáxis. O monopólio da venda de gás de cozinha. Com a imposição, por meio da violência e da força das armas, de um regime contínuo de terror sobre centenas de milhares de pessoas.

Dependência do medo

Não há também lugar, em que fique mais clara a estreita dependência entre o discurso do medo como pretexto para a necessidade de fortalecimento constante da polícia, os interesses da indústria de segurança privada, aqueles da indústria de armas – nacionais e importadas –, os programas sensacionalistas de televisão e o proibicionismo de que todos eles dependem direta ou indiretamente.

Com o discurso do combate ao tráfico, o Rio é hoje não apenas o palco para espetáculos como a “intervenção” federal montada pelo governo Temer, que não levará a nada, já que não atinge a raiz do problema, mas também o território em que se dão os maiores avanços – com o pretexto do combate à “bandidagem” – da direita e da extrema-direita no país.

Ainda mais que em São Paulo, a capital fluminense e as áreas que a cercam representam, eleitoralmente, a face mais radical de um acelerado processo de radicalização da polícia e de quem a defende, mesmo quando pratica crimes como a corrupção e o genocídio.

Transformou-se no espaço privilegiado e preferencial, por meio de centenas de milhares de votos alcançados por candidatos como Jair Bolsonaro, para o avanço do discurso de combate ao crime por intermédio, apenas, de ainda mais e mais repressão e violência.

E para a consolidação do discurso fascista e anticomunista no Brasil.

Crime político

Por todas essas razões, é muito difícil classificar o recente assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, como um crime comum. Por mais que se trate, ainda, de uma “execução provável” nas palavras da polícia – o que equivale a um verdadeiro escárnio – e que o atentado que a vitimou tenha sido relacionado às denúncias que estava fazendo sobre o assassinato de jovens negros de periferia e o clima de terror imposto pela polícia sobre certas comunidades cariocas como a do Acari, por exemplo.

Em um país em que foram celebradas por milhares de comentários nas redes sociais, as mortes brutais de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes foram profunda e intensamente políticas, como se pode ver pelas insultuosas observações que reproduzimos abaixo, colhidas rapidamente de apenas duas matérias publicadas em dois portais da internet brasileira:

“Vi um vídeo de um discurso dela na Câmara mencionando chacina em favela e defendendo traficantes armados. Não mencionou os quase 120 policiais mortos só nesse ano. Direitos Humanos que só defendem criminosos. Policiais e vítimas civis não tem apoio dessa corja de hipócritas dos ‘direitos humanos’ do qual ela fazia parte.”

“Era racista, comunista e pregava a discórdia e ódio entre classes e raças. Foi morta pelos bandidos que sempre defendeu. Tchau.”

“Pelo menos na ditadura não tinha o Psol... partido defensor de traficantes…”

“Virou Santa após sua morte? Quem a apoiava quando estava viva e agindo de acordo com suas convicções?”

“Ela defendia tanto os bandidos, que acabou sendo morta por seus aliados bandidos. Que o direito dos Manos que achem os culpados e não a polícia que ela tanto criticava, pois o Psol não precisa de polícia.”

“Que descanse em paz. Mas não vamos endeusá-la, se é de um partido de esquerda, certamente tem coisas erradas, o passado nos mostrou isso, todos os partidos de esquerda não medem limites para se chegar ao poder, e depois que chegam ao poder, roubam para se perpetuarem no poder.”

“Estes partidos de esquerda estiveram no poder por 14 anos, destruíram o país, nos deixando neste ponto que estamos hoje – uma terra sem lei, onde o bandido tem todos os direitos e vantagens, enquanto a população de bem só tem o direito de perder seus bens e suas vidas, sem ter a quem recorrer.”

“Temos até ministros que insistem em não prender após condenação em segunda instância, pois possuem interesses próprio$, em que os recurso$ sejam muito$ , para que possam haver muitos advogado$ amigo$ envolvido$ em todo o proce$$o ( muito $$$ em toda essa história ).”

“Agora, sinceramente, não consigo ter a menor compaixão quando algum dos integrantes desta escória de esquerda sofre algum revés, na verdade, fico até contente que sintam na pele o que nós sentimos.”

Um atentado claramente político, quase certamente perpetrado com motivação também ideológica, ainda que subjacente, como certos internautas da corja acima insistam em negar essa evidência, como podemos ver pela última opinião que copiamos:

“Parem de falar ‘violência na política’. Está na cara o porquê desses assassinatos. Não têm a ver com política; tem a ver com criminalidade.”

Marielle Franco foi assassinada, antes de ser mulher e negra, por ser uma jovem e promissora liderança de esquerda. E por viver em um país em que energúmenos defendem todos os dias, às centenas, aos milhares, na internet, em grupos que se autodenominam “opressores”, o assassinato, a eliminação e a tortura de gente que pensa como ela.

Sem ser, por isso, incomodados – mesmo praticando crime de ódio, grave ameaça e incitação à violência – por parte do Ministério Público ou do Judiciário, entre eles membros da Suprema Corte, que por medo ou conveniência são igualmente insultados, quando não ameaçados, sem nenhuma reação digna de nota.

Ministros que, ontem, vieram se lamentar, trágicos e compungidos, na frente das câmeras de televisão, como se seus últimos atos e decisões, tomados nos últimos tempos, não fossem tão políticos quanto o assassinato de Marielle.

Ou não estivessem fadados a interferir no processo eleitoral para fazer com que a mesma impunidade das armas, que a matou, ascenda ao poder no próximo ano.

Espetada na faixa presidencial, ou no bolso do colete do terno de um candidato que já afirmou publicamente, para qualquer um que queira ouvir, que pretende implementar o “excludente de ilicitude” para agentes policiais que matem “em serviço”. Com o objetivo de impedir o “massacre de agentes de segurança” e proteger a “população de bem”, no país em que a polícia é a que mais mata no mundo.

Quem dirá, quando ele chegar ao poder, quem é bandido e quem é “gente de bem”? Pessoas como Marielle Franco, cuja voz foi calada agora e para sempre, pelas balas que a atingiram? Ou “comentaristas” como os que festejaram hoje a sua morte, que estarão fortalecidos com a eventual e cada vez mais provável vitória de seu candidato para a Presidência da República?

Aviso ao STF

A morte de Marielle representa um marco e um alerta – premonitório – principalmente para o Judiciário Brasileiro e a Suprema Corte – do que pode vir a ocorrer com o país se a extrema direita chegar ao poder graças à decisiva interferência da Justiça, que já se encontra em curso no processo político-eleitoral deste ano.

Não se trata, ao abrigo da Constituição Federal e do princípio de ampla defesa, de evitar que certo candidato dispute o pleito. Mas de não impedir que outros também o façam, concorrendo livre e democraticamente com ele. 

O que a Suprema Corte e o país precisam decidir é se o brutal sacrifício, o emblemático assassinato dessa jovem vereadora carioca se transformará em um marco ou em um símbolo.

Em uma razão para que as eleições ocorram normalmente, sem interferências sustentadas por uma condenação furada, politicamente conduzida, baseada em motivos fúteis e até hoje ainda não provados, que está sendo contestada em todo mundo.

Ou em um símbolo do que nos espera se mortes como a dela – ou como a da Juíza Patrícia Acioli – se transformarem, cada vez mais, em um hábito, de forma contumaz, neste país tomado pela violência e a hipocrisia.

Quando assassinos covardes que agem hoje na sombra da noite se sentirem autorizados – sem nenhuma necessidade de orientação formal ou oficial de quem quer que seja – a matar a torto e a direito não apenas os que consideram “bandidos bons” depois de mortos.

Mas também aqueles que considerarem, com ódio e preconceito, como adversários políticos, depois que certo candidato com quem compartilham da mesma visão ideológica adentrar, devido ao impedimento de seu principal concorrente disputar as eleições, e mesmo estando agora em segundo lugar nas pesquisas, o principal gabinete do Palácio do Planalto.

(Publicado originalmente na RBA)

Mauro Santayanna

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