José Augusto Ribeiro: Lula, Cancellier e o que Moro quer esconder
"A condução coercitiva é, na verdade, uma prisão. Ele não pode recusar o convite dos condutores" (Reprodução)
No domingo 11/III, o jornalista e escritor José Augusto Ribeiro completou 80 anos.
Ele é autor, entre outros, da trilogia "A Era Vargas" - que será a base de um documentário prestes a chegar às telas -, "Tancredo Neves: A Noite do Destino” e “Jânio Quadros – O Romance da Renúncia”.
Tem grande experiência em redações das mais variadas: O Cruzeiro, Folha de S. Paulo, Manchete, Jornal do Brasil, Última Hora, TV Globo, Band... e mais.
Dos anos 1990 para cá, dedica-se a escrever livros.
E vem mais um por aí.
A Operação Lava Jato, que motivou o sociólogo Jessé Souza a publicar o magnífico "A Elite do Atraso", também obrigou José Augusto Ribeiro a escrever - e a se indignar.
E é com imenso prazer que o Conversa Afiada publicará, com exclusividade, os primeiros capítulos de "O outro lado da Lava Jato - Reportagem, memória e associações de ideias, nem sempre comportadas".
Para começar, ele trata de um dos acontecimentos mais emblemáticos da operação de Judge Murrow, Dallagnol e companhia: a assim chamada "condução coercitiva" do Presidente Lula, no histórico 4 de março de 2016:
A condução coercitiva na era da Lava Jato
Foi no dia da condução coercitiva de Lula, em março de 2016, que comecei, com os condicionamentos de velho jornalista, a implicar com a Operação Lava Jato, ou melhor, com os excessos e abusos de autoridade praticados em seu nome.
Não sei se foi mesmo implicância – o que senti com certeza foi indignação diante de certos procedimentos que me pareciam desnecessários, ilegais, violentos e cruéis. Procedimentos em alguns casos degradantes, como a tal vistoria ou busca nas “partes íntimas” do Reitor Luís Carlos Cancellier, que se suicidou pouco depois. E perfeitamente prescindíveis do ponto de vista das investigações, salvo se o objetivo destas não fosse descobrir fatos criminosos, mas alcançar premeditadamente esta ou aquela pessoa.
Dois anos depois de ela ter acontecido, creio que devemos perguntar, com a perspectiva do tempo, se a condução coercitiva de Lula, em março de 2016, resultou em alguma informação que não pudesse ser conseguida pelos procedimentos que a lei autoriza – a intimação para o investigado comparecer à Polícia Federal e prestar depoimento.
Sei perfeitamente, e logo vou contá-las, das razões de minha primeira reação ao ser surpreendido pelo boletim de notícias que interrompeu a programação da TV Globo com imagens e informações sobre a condução coercitiva de Lula.
Procurando não me deixar dominar por essa reação, escrevi nessa tarde ou nos dias seguintes, um artigo que encaminhei para O Globo, suficientemente cauteloso para que pudesse ser publicado. Relendo-o agora, vejo que tive de cortar, para não exceder o número de linhas permitido, um parágrafo no qual lembraria que a maior ajuda da Inglaterra à independência da Índia, na primeira metade do século 20, fora sua polícia e sua magistratura coloniais prenderem Gandhi tantas vezes. Cada vez que Gandhi era preso, cada greve de fome com que protestava mobilizavam multidões contra o domínio colonial britânico. Era uma alusão clara ao que acontecia no Brasil. Mas o que sobreviveu do artigo passava sofrivelmente a ideia.
- Para o conduzido – dizia o artigo - a condução coercitiva é na verdade uma prisão por algumas horas. Ele não pode recusar o convite dos condutores, não pode pedir que o carro destes o deixe na próxima esquina; não pode, na polícia, desculpar-se com o delegado e dizer que volta mais tarde porque agora tem hora marcada com o dentista...
- Dependendo da idade e dos antecedentes do conduzido, ele pode achar a condução coercitiva parecida com o que acontecia nos anos mais duros do regime militar, quando a tigrada do Doi-Codi (como a chamava um dos ministros não-beligerantes de três dos cinco presidentes militares, o professor Delfim Netto) praticava uma espécie de condução coercitiva sem mandado judicial e sem a menor garantia de liberação. Nem sempre usavam algemas, proibidas no recente e rumoroso caso [o caso de Lula], mas quase sempre enfiavam um capuz de pano preto na cabeça do conduzido e o orientavam, com a pedagogia da época, a viajar deitado no banco de trás do Fusca habitual (Puma foi só mais tarde, no atentado do Rio Centro), para não ser visto por algum transeunte abelhudo. É para sua segurança, diziam.
- Para segurança dele próprio, Lula, que já provara as prisões da ditadura, provou agora a condução coercitiva da democracia e da legalidade constitucional. Se fosse intimado e caminhasse com as próprias pernas até a delegacia, correria o risco de ser envolvido em tumultos e pancadaria. Não se cogitou de qualquer alternativa, como ouvi-lo em casa. E a ordem para que fosse conduzido, em vez de intimado, teve de adotar a cautela de proibir o uso de algemas, quando a suposição do comum dos mortais seria que, em casos assim, as algemas só fossem usadas quando expressamente autorizadas.
- O resultado, para quem esperava do depoimento o desmascaramento de Lula, foi o oposto. Ele saiu do interrogatório mais ou menos como Nelson Mandela deixou a prisão na África do Sul. E, além de recuperar a popularidade que possa ter perdido, deve ter ganho alguns pontos a mais. A condução coercitiva reconduziu Lula ao papel de candidato forte à Presidência.
- Mesmo nas pequenas decisões (caso desta, aparentemente), o juiz deve decidir de acordo com a lei e a própria consciência. Para não discutir os mistérios da consciência e o que Freud descobriu sobre os poderes do inconsciente, a lei comporta em geral mais de uma leitura, conforme a época, as circunstâncias e outras variáveis. O mesmo texto da bicentenária Constituição dos Estados Unidos – que diz serem todos iguais perante a lei – levou a Corte Suprema, no século 19, a legalizar a segregação racial, adotando a doutrina do “iguais, mas separados”; e no século 20, em 1954, a revogar a decisão anterior, ao declarar inconstitucional a segregação.
- No mesmo dia – concluía meu artigo - o Ministro Marco Aurélio Melo considerou um erro a condução coercitiva de Lula: em sua leitura da lei, essa prerrogativa da Justiça só deve ser usada se e quando a pessoa intimada não comparecer ou recusar-se a comparecer, o que não era o caso. Lula, salvo engano, não foi intimado, foi surpreendido. E o país está supreendido e apreensivo pelo que aconteceu horas depois, continua a acontecer e pode continuar acontecendo.
Não resisti à tentação incluir neste livro pela transcrição integral do tal artigo. Naquele momento, ele não pareceu um ato de obstrução da Justiça, tanto que O Globo o publicou e nem ele nem eu fomos objeto de qualquer acusação ou interpelação. Uma vez que já me permiti essa overdose de autorreferência, vou contar qual foi a razão preponderante de minha reação – ou minha associação de ideias – ao saber da condução coercitiva de Lula.
(Continua).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12