Nonato Menezes
Se há um tema que objetivamente carece ser debatido no Brasil é a relação entre os poderes da República. Função, limites e possibilidades, “por mais triviais” que possam parecer, estão longe de serem bem entendidas, sobretudo, por nós pessoas comuns.
Não basta que a Constituição seja precisa quanto a isso, nem que as “leis orgânicas” dos estados e municípios, assim como as leis regulamentadoras sejam ampliadas e ajudem na compreensão dessa relação. É mais que necessário um debate amplo, profundo e provocativo nacional, que tenha a indispensável participação popular e que seja de iniciativa das casas legislativas, visto ser ele, o debate, função primordial.
A dificuldade de se compreender tais prerrogativas dos poderes ficou evidente na trama e no, ainda em andamento, golpe parlamentar/jurídico/midiático que vivenciamos. A confusão que ainda continua é de tal ordem que a instituição criada e mantida para se fazer cumprir a Constituição é a primeira a violá-la.
Neste contexto merece destaque o que ocorre com as emendas parlamentes especificamente no Distrito Federal.
Tomou corpo, na presente legislatura, o empenho dos deputados distritais, uns mais que outros, na destinação de emendas para custeio do ensino público do Distrito Federal. Tudo alegremente normal, dentro da lei e sem dever nada ao ritual estafante do exercício parlamentar, embora, especificamente neste caso, chamem atenção algumas questões.
De acordo com a lei orçamentária atual, 2% da receita corrente líquida do orçamento são destinados aos 24 deputados como fonte para a apresentação das emendas a esse. Para este ano de 2018 o valor máximo que cabe a cada membro da casa chegou a R$ 18.887.856,00.
Valor esse que vem com destinações especificadas no próprio orçamento, que dependerão apenas dos procedimentos de execução, cuja tarefa cabe ao Poder Executivo, quando a destinação é para organismo público.
Dentre os argumentos usados pelos parlamentares brasileiros para justificar as emendas orçamentárias, inclusive os daqui do Distrito Federal, três são os que mais se destacam: o de que a estratégia de emendas possibilita investimentos que causam importantes impactos na vida do cidadão; que a participação parlamentar é de extrema importância para a defesa de segmentos sociais que poderiam ficar à margem da ação governamental; e, de que as emendas parlamentares são um instrumento que ajuda a “democratizar” a aplicação dos recursos públicos.
Pensemos em cada um desses argumentos utilizados por nossos representantes na “Casa do Povo”. Vejamos sua consistência e sua lógica.
Quanto ao uso do argumento: “Na defesa de segmentos sociais que poderiam ficar à margem da ação governamental” esse não pode ser aplicado no caso, por exemplo, do custeio do ensino público, visto que esse é um serviço administrado diretamente pelo Poder Executivo ao qual recai toda responsabilidade de cuidar e prover todas as necessidades das escolas públicas, onde quer que estejam situadas. Mesmo no presente momento, em que temos aqui um governo inepto, não há como justificar o esmero e a vontade política dos deputados para cuidar do ensino público. Nunca se poderá saber que interesses movem tal vontade. Contudo é sempre bom que não nos esqueçamos das lições da história. A cultura política deste país, e aqui não é diferente, ensina que “quando a esmola é demais o santo deve desconfiar”. O empenho e as preocupações da grande maioria dos deputados com os interesses do povo muitas vezes camuflam intenções pouco decentes e vícios recorrentes, como o tráfico de influências, a troca de favores etc., a mais atrasada estratégia política do toma lá dá cá.
Contribuir para “democratizar” a aplicação dos recursos públicos é só retórica. Justamente porque a escolha das instituições ou segmentos sociais para receberem os recursos das emendas é definida por critérios pessoais estabelecidos exclusivamente pelo próprio deputado. Não há discussão pública, sequer existe consulta pública.
Ainda que transpareça preocupação dos deputados pelo que ocorre em nosso ensino público, as emendas destinadas a correções da estrutura física das escolas ou para outros atendimentos passam longe dos problemas mais graves que nelas ocorrem. Citamos por exemplo, a reprovação escolar no Ensino Fundamental, que chegou a 12%, gerando um custo aproximado de 140 milhões de Reais, em 2016.
É certo que nenhuma ou nenhum “emendeiro” tenha ido às escolas, mesmo àquelas agraciadas com o produto de seu gesto de bondade e espírito público, tratar de tema tão caro e recorrente ao ensino público em particular, que tem causado, e não é de agora, enormes danos à sociedade em geral.
Por fim, a emenda parlamentar como instrumento político gera enorme prejuízo à atuação do parlamento. Em maior ou menor grau, é uma estratégia que causa certa dependência de um poder ao outro; ou cumplicidade, o que é mais correto dizer.
Assim, numa relação de cumplicidade como essa, fica visível a quem quer perceber, a nulidade que são nossos parlamentos. Na falta do exercício profícuo de suas funções, a maioria de seus integrantes corre sempre para onde está o dinheiro, para quem tem poder de liberar, de comprar ou, como aconteceu no golpe, de corromper.
Como cabe somente ao Poder Executivo arrecadar e administrar todos os recursos públicos, ainda que suas destinações sejam tipificadas em lei, de maneira geral criada pelo Poder Legislativo, não fica difícil serem observadas as relações que se criam e se nutrem entre esses dois poderes. Significativas são elas, de tal maneira, que conseguir maioria no parlamento torna-se “prioritário” para qualquer governo. O que não é questionado, mas ao contrário, fica envolto nas brumas do aparelhamento do Estado, que são os custos e as maneiras como ela, a maioria, é, geralmente, conseguida.
Sabe-se, porém, que a maioria dos parlamentares que se alia ao governo, não o faz em torno de projetos ou de programas, muito menos por afinidade ideológica, mas só, e somente só, pela obtenção de cargos e funções na máquina pública, ou motivados pelo dinheiro, inclusive, em forma de emendas.
Daí, infelizmente, parte considerável de nossos legisladores, atuem eles na esfera federal, estadual ou municipal, deixa fácil de serem identificadas, suas verdadeiras e profundas motivações para o exercício parlamentar.
Assim, para quem quiser e para quem tem interesse em descobrir com precisão o que fazem muitos dos nossos representantes, basta “seguir o dinheiro”. Seguindo as emendas se pode descobrir as negociatas, os desvios de recursos e as propinas, ou ainda se pode desvendar a verdadeira situação da distribuição de cargos e funções, que também tem a ver com dinheiro, além de ser poder.
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