domingo, 1 de abril de 2018

O supremo arquipélago

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O timing é perfeito. Tão logo o 7 a 4 de Lula no STF ecoou nas fileiras do golpe, a polícia federal prendeu os operadores de Temer, Coronel Lima e José Yunes. Qual a relação dos eventos? A mais íntima possível.

A vitória de Lula no STF assustou o golpe. A imprensa adesista, acostumada a vencer na mesa da roleta política com a ajuda da bola viciada do judiciário, foi surpreendida com um exímio jogador, profundo conhecedor dos cenários probabilísticos: José Roberto Batochio. Ela não estava preparada para essa derrota.

Dali, houve, portanto, um remanejamento massivo das fichas: prisão de Lula frustrada, torne-se a depositá-las todas no adiamento das eleições. E que não se subestime esse "mal necessário", tão infame quanto fatal: o golpe não tem chances numa eleição, com Lula na cédula ou sem Lula na cédula.

Resta explicar o que o cancelamento das eleições tem a ver com a prisão de Yunes e Lima. A resposta é: STF. E tal é a rapidez com que os fatos se impõem que, no tempo de redação desta coluna, Roberto Barroso já mandou soltar esses dois célebres operadores. A instabilidade jurídica brasileira é generalizada.

A fauna sensível que habita o STF

Barroso é o elemento-chave para se compreender "o que quer o golpe" neste momento. Por alguma razão que transcende o ordenamento técnico jurídico, o fleumático magistrado tornou-se o ministro mais suscetível a pressões midiáticas no STF. Ali, há uma espécie de feitiço: a suscetibilidade é rotativa. Ora, é Lúcia, ora é Toffoli, ora, é Fachin, ora é Weber. É a chamada "ala fraca" do tribunal.

Joaquim Barbosa foi um grande patrono da suscetibilidade, ainda que a disfarçasse como ninguém, com suas dores de coluna reais mas esplendorosamente retóricas. Quando um magistrado tosse, pigarreia, hesita ou se coça, tenha certeza: aquilo significa.

O STF encravado em toda essa conjuntura brasileira de golpismos, subserviência midiática, espírito escravocrata e tendência irresistível a superinterpretações e falsidades ideológicas de toda a sorte - fora o imenso complexo de inferioridade - torna-se um corpus único para a pesquisa comportamental da espécie.

Se este tribunal serve tão pouco à função que outrora lhe coube - a de zelar pela constituição -, seu conjunto de sutilezas psicológicas pode ser a Galápagos da psicanálise pós lacaniana. Ali, há tentilhões de bico pequeno e grande, tartarugas centenárias, insetos que não voam, lagartos que nadam, crustáceos que sobem em árvore e focas que batem palma. Não há fauna mais rica.

Um arquipélago desses em meio a um país conflagrado e em modo "salve-se quem puder" tem o poder de causar fortes emoções. Mas, há ali também um forte conjunto de emoções. Aliás, o signo que rege o STF brasileiro é a emoção, é a timia.

A psicologia pavloviana e a farinata edípica

Ministros são irmãos caçulas e mimados da república. Disputam o lanche, a atenção, o holofote e os prêmios pavlovianos da imprensa. Saibam: aqueles prêmios anuais da Rede Globo servem apenas e tão somente a essa função: são a farinata edípica que mantém sob civilizado cabresto as ilhotas fugidias da nossa Galápagos judicial.

Coteje-se os prêmios e os votos de cada ministro e achar-se-á padrões de rara estabilidade. Ponderai a meu lado, prezadíssimo leitor, neste glorioso domingo de Páscoa: aceitar um prêmio de uma emissora de televisão ou de uma revista semanal em um país como o Brasil, com sorrisos, fotos e coquetéis, beira o escárnio mais grotesco da cultura popular do ocidente - François Rabelais se assustaria. É a carnavalização do direito.

Cifra curiosa dessa psicologia involucionista é o próprio doutrinamento dos que se somam àquele arquipélago libidinal. Ministros recém-chegados, como o exuberante - sic - Alexandre de Moraes, tendem a praticar um direito menos subserviente. A rigor, a explicação é: são muito novos ainda para entenderem os recados transversais da rede patronal. São necessários de 2 a 3 anos para que se entenda corretamente o mecanismo do STF.

Isso explica, em parte, o fenômeno Roberto Barroso. Sua chegada foi celebrada por segmentos democráticos. Iniciou seus trabalhos com votos importantes e de relativa independência. Mas, curva-se agora à política explícita, numa cruzada pessoal e visceral rumo à autoafirmação.

A vaidade causa dependência química

A vaidade é mesmo um dispositivo com alto teor de dependência. Num certo sentido, o STF também é uma espécie de cracolândia: são zumbis, abandonados pela razão, que perambulam por saguões, plenários e gabinetes, sempre em busca de "mais um pouco". O pior de tudo: ninguém sabe o que fazer com aquilo.

Os traficantes de "sentido" (a imprensa adesista) codifica maravilhosamente bem esse mercado supremo de votos e (des)acelerações políticas via discurso jurídico. No imaginário mundo civilizado que as TVs abertas dramatizam em seus telejornais, a marca "STF" ainda é forte. A toga é cênica, o ethos prepotente transmite segurança e o rito sacraliza o resto. O STF é também um quadro de programa de auditório.

Diante de tal universo tão miseravelmente complexo, o país se ajoelha, inclusive os segmentos democráticos que insistem - dentro das duas razões e convicções - no mantra: "é preciso confiar nas instituições".

É confortável para a imprensa depositar suas fichas na teatralidade daquele tribunal. O STF é uma zona de segurança para o golpe. Quando a democracia ameaça voltar, ele é acionado sem dó pela rede patronal que o mantém sob custódia. Na verdade, quem precisa de um habeas corpus é o próprio STF, trancafiado na lógica subserviente e mesquinha de uma minoria tão elitista quanto violenta.

O tumulto deliberado como estratégia

Foi exatamente isso que ocorreu nessas últimas semanas. O habeas corpus a Lula - que ainda será votado e apenas foi agendado com salvaguardas à parte interessada - estremeceu a doce relação entre STF e imprensa, a porta voz dos interesses patronais e do ódio de classe.

Qual foi a imediata reação desta imprensa, com seus tentáculos no executivo e, obviamente, na polícia federal? Tumultuar o clima do STF mais uma vez, com a prisão dos operadores de Temer e sua respectiva - e previsível - soltura pelo ministro suscetível da vez.

Que não se engane: esses operadores do usurpador da república já deveriam estar presos há muito tempo, incluindo o próprio usurpador. O timing é o dispositivo de segurança: a democracia quer voltar, via inteligência da defesa de Lula? Tumulto neles.

A ação é deliberadamente difusa. Um STF tumultuado alastra o nível de suscetibilidade. O jornalismo de guerra faz o resto.

A saturação técnica que esmaga o humano

A chave do momento, portanto, é a fustigação de Temer como ponte para acesso ao arquipélago da cracolândia judicial. De lambuja – mas só de lambuja – tem-se a virtual queda de um cadáver político e a ascensão de outro cadáver, em estado menos avançado de decomposição: Rodrigo Maia.

Com toda a profusão de memes e ridicularizações diuturnas ao STF, nós ainda superestimamos demais aquela corte. Eles são humanos. Têm, ainda, que lidar com uma dificuldade adicional, complexa e difusa: padecem de limitações severas provocadas pelo excesso de leitura jurídica. Tome-se um Sergio Moro, um Deltan Dallagnol ou uma Janaina Paschoal e a tese da saturação técnica que esmaga o humano se torna um tanto mais compreensível - ela esmaga até a língua portuguesa, eventualmente.

É por isso que são 11 ministros e não 7 ou 3 - é preciso ter a garantia de que a descompensação psicológica provocada pelo desvario técnico não assombre decisões tão importantes. Aliás, uma das primeiras ideias desse governo usurpador foi mudar a "composição" do STF, como aliás foi feito no pós golpe de 1964 que hoje completa 54 anos.

O STF só funciona com relativa independência constitucional se houver democracia. Na falta desta, aquela corte é apenas um braço dos desígnios do golpe de turno - não há novidade nisso.

Estamos, portanto, na iminência de mais preposto paralisante e disruptivo do golpe: diante do sucesso de Lula nas ruas e na justiça, recorre-se novamente ao eterno salvador do golpe: o STF.

Temer versus Globo: o embate final

A situação é tão complexa e labiríntica que criticar o STF como ora faço com tanta energia, é também uma das faces da fustigação generalizada que a imprensa quer oferecer ao seu aliado ora indócil. Traduzindo: criticar o STF vai ajudar o golpe em seu intento de tumultuar novamente aquela corte, no tradicional movimento de morder e assoprar, o motor mais eficiente das técnicas da manipulação.

Não vou me furtar, no entanto, desta leitura conjuntural, até porque postulo sua relativização em face de tantos cenários. O momento estratégico talvez fosse respeitar o STF e insistir na sua "recuperação" conceitual obtida há duas semanas, com a rejeição parcial do lawfare praticado contra um ex-presidente da república.

O momento volta a ser muito delicado. Atentados contra políticos, prisões de agentes do governo, ausência de candidato do golpe em ano eleitoral, recrudescimento de violência pelo país, economia devastada, emprego devastado, soberania devastada e geopolítica em inflexão perigosa (a saída dos EUA da Síria - o que vai resultar em um passivo imenso de forças militares que terão de ser realocadas em algum outro lugar do mundo).

Gustavo Conde

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