Foto Ricardo Stuckert
Prisão de Lula, infração internacional do Brasil
por Marcelo Uchôa
A aplicação do Direito não é um fazer dogmático. Dialogar permanentemente com filosofia e prática é um desafio complexo, inescapável a todos que se dedicam ao exercício jurídico como ofício. De uns tempos para cá, virou chavão sustentar que, no Brasil, o Direito aplicado à politica vem sendo interpretado como partida de futebol, segundo uma dualidade jurídica que se digladia, entre aqueles que denunciam as inúmeras ilegalidades da Lava Jato e seu caráter seletivo (resumida, fundamentalmente, na perseguição desumana ao presidente Lula), e aqueles que sustentam a linha à la Torquemada do juiz Moro.
Não há problema nenhum nisso. O Direito não é palco necessário de unanimidades, muito pelo contrário. Tampouco algum jurista formará sua estatura intelectual despojado das experiências ideológicas construídas ao longo de toda vida. O que efetivamente um bom jurista deve resguardar é uma margem coerente de racionalidade diante dos pontos extremos, com base em critérios não apenas jurídico-legais de natureza positiva, mas, também, em pressupostos filosóficos e propedêuticos históricos, sociológicos, sociais e sistemáticos, segundo o ordenamento doméstico e os entrelaces internacionais.
Uma análise desapaixonada redundará na conclusão invariável de que a operação Lava Jato é um grande fracasso, tanto em termos de benefícios econômicos práticos, como em termos de contribuição para a consolidação de uma cultura jurídica sensata, eficiente e eficaz de enfrentamento à corrupção e à impunidade. Uma estratégia que se limita a compreender-se pelo número de prisões, relativizando, porém, os meios intimidatórios empregados, a qualidade da prova obtida e a justiça efetivamente materializada, é um engodo. De resto, contribuiu com a catástrofe econômica sucedida no país, facilitou a entrega do governo ao desgoverno, e, para não dizer que não alegra ninguém, tem servido para iludir, com uma falsa sensação de moralidade, um público ignorante, animado à base de muita teatralização e espetacularização midiática.
É um erro interpretar como atentatória à justiça a postura do presidente Lula, manifestada diante da decisão açodada do juiz Moro, que lhe determinou privação de liberdade antes de esgotados todos os recursos judiciais garantidos legalmente. Um rábula talvez não percebesse, mas um jurista facilmente deduzirá que não foi contra a justiça que o presidente Lula atentou, mas contra a injustiça. Não se trata de desobediência isolada, trata-se de desobediência oposta contra uma desobediência muito maior empreendida pelo Estado.
A democracia necessariamente traz em si a nota da legitimação do povo em sua matriz. Toda vez que o Estado-lei se transforma em Estado-transgressor o cidadão, numa democracia, tem o direito humano de resistir. Quem assistiu à sessão do STF de quinta-feira (05/04), viu uma ministra afirmando ter consolidado entendimento contrário à prisão automática em segundo grau, entendimento que não aplicaria naquela hora, porque a ação que estava em pauta, o habeas corpus do presidente Lula, não era a que reputava ideal para apor sua compreensão, uma ação declaratória de constitucionalidade, que terá condão para definir permanentemente a matéria, que só não foi julgada ainda, porque a presidente da Corte resiste em levar-lhe ao Pleno. Surreal, uma magistrada que chegou a um juízo sobre liberdade, mas não o aplicou num habeas corpus, a ação mais básica de garantia da liberdade, sem o qual o paciente dali teria que sair para a prisão. Para completar, a magistrada diz que consignará seu entendimento contra a prisão, tão logo a outra ação venha a julgamento no Pleno, o que não acontece porque a presidente do STF não quer. Afinal de contas, aquele tribunal é ou não é uma Corte de justiça? Finalmente, com sua verve carrasco-inquisitória o titular da Vara curitibana determina a prisão do presidente Lula antes de esgotado o prazo de seu recurso no Tribunal.
A atitude do presidente não poderia teria sido outra, senão reagir. Não foi, contudo, uma desobediência desmedida. Foi a reação última de um ser humano contra uma desobediência infinitamente maior emanada do Estado, aquele que não poderia, em hipótese alguma, exceder-se. Mas o mais grave da operação Lava Jato em relação ao presidente Lula, é que qualquer situação de prisão que lhe seja eventualmente levantada no espectro da operação será inevitavelmente realizada com violação do Estado de Direito, pois as estratégias de acusação, provas e condenação estão imersas em mar de nulidades, decorrentes de inúmeras violações a garantias individuais. Naturalmente que a caçada seletiva, desleal e ostensiva empreendida pelo juiz Moro só poderia terminar em injustiça, jamais o contrário.
Infelizmente, num Judiciário problemático como o brasileiro, transgressões como as citadas certamente passariam despercebidas se o processo em lupa fosse um processo comum. Porém, o caso é do presidente Lula e o presidente Lula é diferente da grandíssima maioria dos seres humanos do planeta. Quem ainda não aceitou este fato perde tempo em não aceitá-lo. É evidente que o presidente não está imune ao crivo da Justiça, mas a Justiça para lhe confrontar precisa fazer-se acontecer de maneira justa. Um erro contra o Lula irradia aqui no país e reflete, também, lá fora. Se algum dia, porventura, descortinar-se a prisão do presidente Lula dentro de qualquer parâmetro já preconcebido pela Lava Jato, imediatamente restará configurada uma prisão ilegal de dimensão internacional, suscetível de sujeitar o Brasil à responsabilização das instâncias jurisdicionais, regionais e globais, de proteção dos direitos humanos. O juiz Moro que reconheça tal fato e mantenha-se em seu lugar de servidor da Constituição e do Estado, não de senhor todo-poderoso da aplicação da lei penal ao bel prazer de sua total discricionariedade.
Agradeça, isso sim, não estar respondendo pela grave ilegalidade de haver violado o sigilo telefônico de uma presidenta da república, disponibilizando, desonestamente, o material ilícito para as mídias reacionárias do país, unicamente interessadas em distorcer fatos e informações para turbinar um impeachment presidencial absolutamente imoral. Resigne-se à sua condição de intérprete ordinário do Direito e inicie, pela honra da toga que veste, uma reavaliação sobre os métodos de aferição de justiça que norteiam seu juízo.
Marcelo Uchôa - Advogado e Professor Doutor de Direito da UNIFOR
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