terça-feira, 3 de abril de 2018

Prisão em Segunda Instância: uma análise constitucional, por Marcio Ortiz Meinberg


Prisão em Segunda Instância: uma análise constitucional

por Marcio Ortiz Meinberg

No tribunal das redes sociais os ânimos se afloram às vésperas do julgamento do habeas corpusdo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Infelizmente as paixões políticas têm obscurecido a racionalidade que se espera do sistema judicial e a falta de conhecimento jurídico fica cada vez mais evidente (a imprensa não ajuda muito, com comentaristas falando bobagens impunimente...).

Este tipo de discussão somente será produtiva se esquecermos do personagem e voltarmos aos conceitos jurídicos:

O que é Habeas Corpus?

Habeas Corpus (HC para os íntimos) é um remédio constitucional, ou seja, um tipo específico de ação judicial prevista diretamente na Constituição com a finalidade de impedir o abuso de poder do Estado. Sua finalidade específica é garantir a liberdade de ir e vir dos cidadãos.

Segundo o artigo 5º da Constituição Federal:

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

Quatro elementos podem ser identificados neste inciso:
[1] conceder-se-á habeas corpus sempre que
[2] alguém sofrer ou se achar ameaçado de
[3] violência ou coação em sua liberdade de locomoção
[4] por ilegalidade ou abuso de poder
O elemento 1 estabelece um mandamento dirigido ao Poder Judiciário conceder habeas corpus. Não se trata de um pedido, de um conselho ou de uma faculdade, mas sim de uma ordem. Conceder o habeas corpus é uma obrigação do juiz (ou tribunal) quando configurar-se a situação ali indicada. Se o Judiciário não o fizer, estará descumprindo a Constituição e cometendo um crime.
O elemento 3 estabelece a finalidade da medida: impedir ou sanar a violação de um direito fundamental: a liberdade de locomoção.
O elemento 4 é um complemento do elemento 3, pois delimita a utilização do HC aos casos em que houver ilegalidade ou abuso de poder, ou seja, o HC é sempre dirigido contra a ação do próprio Estado. O complemento também deixa claro que o Estado pode limitar a liberdade de locomoção, mas somente dentro da lei e sem abuso.
O elemento 2 estabelece duas espécies de HC: habeas corpus liberatório (quando o paciente já sofreu a violação ilegal ou abusiva) e o habeas corpus preventivo (quando o paciente está ameaçado de ser vítima da violação).
Voltemos ao caso concreto do ex-presidente Lula: em 24/01/2018 a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu que Lula deverá ser preso quanto esgotarem-se os recursos à segunda instância.
Em resumo, Lula está ameaçado (elemento 2) de ser preso (elemento 3) quando esgotarem-se os recursos à segunda instância (elemento 4). Havendo os elementos 2, 3 e 4, a obrigação constitucional do Poder Judiciário é conceder o habeas corpus pleiteado.
Ah, mas onde está a ilegalidade na prisão do Lula?
A ilegalidade está no descumprimento ao artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), que diz textualmente:
Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1o As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2o A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
Como se vê, o “caput” do artigo 283 do Código de Processo Penal prevê três alternativas:
  1. prisão em flagrante delito;
  2. prisão temporária ou prisão preventiva no curso da investigação ou do processo; ou
  3. prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado (após o julgamento de todos os recursos, inclusive para o STJ e STF).
Se não houve prisão em flagrante, temporária ou preventiva (cada uma delas com elementos muito próprios e que não se aplicam), a única alternativa que resta seria a “prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”. O ponto é que o TRF4 determinou que Lula seja preso ANTES da sentença condenatória transitada em julgado, o que configura infração ao artigo 283 do Código de Processo Penal, ou seja, uma ilegalidade cometida pelo Estado (elemento 4 do Habeas Corpus).
Se a ilegalidade é tão evidente, por que a discussão?
A raiz do problema é o próprio Supremo Tribunal Federal que, em 2016, negou-se a conceder o habeas corpus 126.292/SP apesar da presença de todos os elementos necessários à sua concessão (ou seja, o STF infringiu o elemento 1 dos HC, o que significa que descumpriu a Constituição e cometeu, ele mesmo, um crime).
Na ocasião, o STF concluiu que a prisão após a condenação em segunda instância e ANTES do trânsito em julgado não infringia o “princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. Voltemos novamente à Constituição:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Traduzindo, ao julgar o habeas corpus 126.292/SP, o STF entendeu que inocentes podem ser presos, mesmo sem qualquer fundamento cautelar, mas como mera antecipação de uma pena hipotética. Esta conclusão por si só já é esdrúxula, porém ainda é agravada pelo fato de que os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram simplesmente ignorar a ilegalidade decorrente de infração ao artigo 283 do Código de Processo Penal.
Para não ser injusto (antes fosse...), o Ministro Roberto Barroso foi o único que abordou o artigo 283 do Código de Processo Penal, mas de maneira bastante rasteira (um mísero parágrafo em seu voto de 28 páginas). Transcrevemos a seguir a manifestação de Barroso:
22. Essa ponderação de bens jurídicos não é obstaculizada pelo art. 283 do Código de Processo Penal, que prevê que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Note-se que este dispositivo admite a prisão temporária e a prisão preventiva, que podem ser decretadas por fundamentos puramente infraconstitucionais (e.g., “quando imprescindível para as investigações do inquérito policial” – Lei nº 9.760/89 – ou “por conveniência da instrução criminal” – CPP, art. 312). Naturalmente, não serve o art. 283 do CPP para impedir a prisão após a condenação em segundo grau – quando já há certeza acerca da materialidade e autoria – por fundamento diretamente constitucional. Acentue-se, porque relevante: interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário.
Oras, em primeiro lugar, como o próprio Ministro Barroso bem sabe (tanto que já escreveu muito sobre o tema, inclusive nos parágrafos anteriores deste mesmo voto), a “técnica da ponderação” aplica-se a princípios e não a regras. No caso específico, o artigo 283 do Código de Processo Penal prevê uma regra, que deve ser aplicadas com base no “tudo ou nada” (para usar as palavras do próprio Barroso). O “tudo” desta regra é “ninguém será preso”, e o “nada” são três hipóteses: prisão em flagrante; prisão cautelar (preventiva ou provisória); ou condenação com trânsito em julgado. Não cabe qualquer ponderação com relação ao conteúdo desta norma.
Em segundo lugar, de fato o Ministro Barroso está correto ao entender que “interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário” (interpretar a Constituição por uma lei inferior seria um contrassenso lógico à estrutura hierárquica de todo o sistema jurídico). Só faltou ao Ministro indicar qual norma da Constituição ele está utilizando para alterar o sentido do artigo 283 do Código de Processo Penal, uma vez que a proclamada “certeza acerca da materialidade e autoria” decorrente da condenação em segunda instância não está prevista em qualquer parte do texto constitucional.
Em suma, o STF errou no julgamento do habeas corpus 126.292/SP e descumpriu a Constituição Federal. Agora terá a oportunidade de reparar o erro.
Mas é correto o STF mudar o entendimento só por causa do Lula?
O correto seria o Supremo Tribunal Federal julgar duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC 43 e ADC 44), ambas sob relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, cujo objetivo é discutir diretamente a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. A decisão destas ações teria eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, §2º, CF).
Infelizmente a Presidente do STF, Ministra Carmen Lúcia, preferiu apequenar a corte e recusou-se a colocar em votação as ADC 43 e ADC 44. A decisão do habeas corpus do Lula só terá efeito neste caso específico. Ou seja, ainda que a postura do STF possa ser utilizada como referência pelos demais membros e órgãos do judiciário, não há vinculação e obrigatoriedade de seguirem o mesmo entendimento. Moral da história, a manobra da Ministra Carmen Lúcia gera insegurança jurídica e injustiça.
Por outro lado, o STF não pode deixar de tratar o caso concreto do Lula (já que existem todos os elementos necessários para a concessão de habeas corpus) só porque a Presidente do Supremo decidiu fazer política com a pauta da corte. Não se combate uma injustiça cometendo outras.
A aplicação de pena de prisão apenas após o trânsito em julgado não é causa da impunidade?
Aguardar o trânsito em julgado não significa que o culpado não será preso, significa apenas que ele somente será preso após o julgamento de todos os recursos. Isso impede que inocentes sejam presos. O Brasil não é o único país que respeita esta garantia fundamentalHolanda, Portugal e Alemanha também exigem o trânsito em julgado antes da condenação (ainda que a quantidade de instâncias e recursos seja diferente).
O problema da impunidade não é a prisão em segunda instância, mas sim a letargia do Poder Judiciário, que demora muitos anos (em alguns casos décadas) para julgar os casos e, em decorrência disso, algumas penas acabam prescrevendo.
Fraudar a Constituição sob justificativa de impedir a impunidade é o mesmo que o rabo abanar o cachorro, pois nada impede que os processos de crimes do colarinho branco continuem dormindo nas gavetas dos juízes e desembargadores e sequer sejam julgados em segunda instância (em seis meses o caso do mensalão tucano, de Eduardo Azeredo, irá prescrever, sendo que aconteceu antes do mensalão petista e ainda não foi julgado em segunda instância).
A impunidade somente será solucionada com respeito à lei e à Constituição e não o contrário. Resta ao Supremo Tribunal Federal decidir se dará o bom ou o mau exemplo.

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