terça-feira, 24 de abril de 2018

Supremos culpados

por Mino Carta
https://www.cartacapital.com.br/

Quando a aventura de CartaCapital começou, não imaginávamos a edição 1000 no momento mais desesperado da história do Brasil. No país sem justiça tudo se faz contra o próprio povo

    Lula Marques/Agência PT
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                   Este pessoal de toga dispensa apresentações

Alcançar o número 1000 ao cabo de uma aventura de 24 anos, empolgante, vincada, porém, por gigantescas adversidades, perseguição de governos reacionários e de publicitários a serviço da casa-grande, além do ódio dos propagandistas da mídia nativa, é um feito notável. O patrimônio de CartaCapital são seus leitores, muitos deles sócios, a constituírem a semente de uma sociedade civil e de uma opinião pública que em outras dimensões do País não existem. 

Nos orgulhamos por termos chegado tão longe na prática do jornalismo, graças a quem nos acompanhou fielmente nesta longa e tempestuosa jornada, conduzida por um punhado de profissionais, tão competentes a ponto de produzirem uma revista semanal e um site diário de excelente qualidade.

Neste exato instante, oito jornalistas, este que escreve incluído, compõem a redação da revista com a contribuição de qualificados colunistas, enquanto o site conta com sete e três estagiários. Cito estes números, obviamente sem a mais pálida intenção de humilhar as fluviais equipes de jornalões e revistões, sem contar a tripulação global.

CartaCapital nasceu à sombra da Carta Editorial, fundada por meu irmão Luis em 1976 e em 1994 dirigida pelos filhos Andrea e Patricia. Daí o nome Carta, adjetivado Capital porque na
origem Andrea queria uma revista de Economia e teve de padecer a minha explicação de que esta eu não saberia dirigir, e sim, se ele aprovasse, outra a respeito do poder onde quer que se manifeste.
Andrea aprovou.

Certo é que os quatro jornalistas, havia tempo saídos da IstoÉ, Bob Fernandes, Mino Carta, Nelson Letaif e Wagner Carelli, mais minha secretária Mara Lúcia da Silva, que suponho eterna, se reuniram em junho de 1994 para traçar os planos da futura publicação, não imaginavam um número 1000 em meio ao mais desesperado momento da história brasileira.

Como a IstoÉ, Jornal da República (fracasso esculpido por Michelangelo em dia de grande inspiração), CartaCapital, ao se tornar semanal em agosto de 2001, foi um dos empregos que tive de inventar de sorte a garantir meu sustento após minha saída da Veja em fevereiro de 1976.

Mensal de início, de agosto de 1994 a março de 1996, depois quinzenal, CartaCapitalsemanal implicou a fundação de uma nova editora, Confiança, da qual somos sócios Luiz Gonzaga Belluzzo e eu, ambos inexoravelmente despidos de talento empresarial. E que o sócio palestrino me perdoe, embora excelente e veterano professor de Economia e agudo observador da cena nativa.

Na IstoÉ contei com a ousadia de Domingo Alzugaray. Em CartaCapital, a ajuda decisiva, a muleta indispensável veio com minha filha Manuela, dona de um tino insuspeito para um desempenho que vai muito além daquele de publisher, nos últimos tempos secundada por Mara Lúcia da Silva, infatigável factotum.

Nestes 24 anos, começamos a viver a chamada e impossível redemocratização e, ao cumprir honestamente o nosso papel, apoiamos a estabilização da moeda, mas não hesitamos em denunciar as intermináveis mazelas do governo de FHC, desde a bandalheira da privatização das Comunicações até a compra de votos para garantir a emenda constitucional da reeleição, desde a quebra do Brasil precipitada pela desvalorização do real em janeiro de 1998 até a desbragada subserviência à vontade de Washington.

Conforme um clássico do Estado patrimonialista, fomos se- veramente boicotados pela publicidade governista, como hoje se dá com o governo ilegítimo de Michel Temer.

Quinze dias depois de empossado para o primeiro mandato, Lula chamou-me a Brasília e perguntou: “Que posso fazer por vocês?” Pedi isonomia na distribuição da publicidade, ressalvada a diferença de preços. Conforme a isonomia petista, recebemos um número menor de anúncios do que a Exame, quinzenal de negócios da Editora Abril, e inúmeras vezes tive a certeza de que os senhores do governo preferiam aparecer no vídeo da Globo ou nas páginas amarelas de Veja.

Nem por isso CartaCapital deixou de ser apontada à execração pública como “revista chapa branca”.
Para facilitar a denúncia dos detratores, apoiamos a candidatura de Lula em 2002 e 2006, e de Dilma em 2010 e 2014, e definir a preferência na véspera eleitoral é hábito de muitas publicações estadunidenses e europeias.

Mas no Brasil a mídia de mão única opta por uma peculiar isenção pela qual apoia com integral exclusividade os interesses da casa-grande. Ao longo dos 13 anos e meio de governos petistas mantivemos o espírito crítico e nunca deixamos de acentuar que no poder o partido portava-se como todos os demais clubes recreativos tidos erroneamente como agremiações políticas.

O governo de Lula representou um avanço notável na modernização de um Brasil muito atrasado, embora nem sempre as escolhas tenham sido felizes, dos homens e dos rumos. Com Dilma o rit- mo caiu em progressão, e, logo após re- eleita, a presidenta cometeu estelionato eleitoral ao adotar em política econômica orientação oposta à prometida em campanha. Por outro lado, Lula errou ao acreditar nas chances de uma negociação para evitar o golpe já esboçado e ao adiar uma reação vigorosa, digna no único líder popular de dimensão nacional.

Desde o golpe que precipitou a República, o País viveu um enredo golpista que passa por tenentes e intentonas e deságua em 1964, desgraça que parecia ter alcançado o clímax. Sofremos uma ditadura de 21 anos, quando a casa-grande entregou o comando das operações ao seu exército de ocupação, com a bênção de Tio Sam.

E da ditadura saímos por obra e graça do plano traçado pelo estrategista detestado pe- los próprios colegas de farda, Golbery do Couto e Silva. Criou a ideologia do golpe e determinou o seu fim, com a eleição in- direta de 1985 ao opor os escolhidos por ele previamente, Tancredo Neves e Pau- lo Maluf, antes de sair do governo em consequência das bombas do Riocentro.

O golpe de 2016 é de longe o mais maligno, mais feroz, o mais insensato, e seu principal artífice é uma Alta Corte a serviço dos inextinguíveis donos do poder. Quem rasgou a Constituição e a atirou ao lixo é aquele STF que haveria de garantir a sua incolumidade, em condição, portanto, de orientar a Lava Jato para rotas respeitosas dos princípios do Estado de Direito.

E de impedir o impeachment de Dilma Rousseff e de todos os demais passos criminosamente ilegais dados à sombra do estado de exceção. Até a pantomima, entre ridícula e grotesca, encenada para negar o habeas corpus de Lula e entregar o ex-presidente ao inquisidor Moro.

Todo o esforço atual dos golpistas, com a inestimável colaboração da propaganda da mídia nativa, é desviar a atenção de quem ainda raciocina e tem consciência da cidadania daquele que é claramente o problema capital, ou seja, o monstruoso desequilíbrio social. Insiste-se na corrupção, na insegurança, na negação da política, a contar com a credulidade dos beócios de camiseta canarinho.

O resultado é cada vez mais o fortalecimento da casa-grande a bem de ricos e super-ricos, enquanto o povo é um rebanho em meio aos lobos.

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