terça-feira, 8 de maio de 2018

Lentes do Hipócrita, por Jean Pierre Chauvin

JEAN PIERRE CHAUVIN
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Lentes do Hipócrita, por Jean Pierre Chauvin

Gostaria de convidar o(a) senhor(a) internauta a ler O Martelo da História, de Valério Arcary*. No capítulo dedicado ao Maio Francês, em 1968, lê-se o seguinte: 

"Os reacionários precisam denunciar os voluntarismos, mesmo quando admitem que são bem intencionados. Os mais esclarecidos podem reconhecer a legitimidade dos que lutam contra a exploração e a opressão, mas somente para desqualificá-los como sonhadores infantis. Consideram que todos os esforços de mudar a sociedade por métodos revolucionários estão condenados desde o princípio" (pp. 153-4).
Uma das características do livro está no elevado poder de síntese do historiador. No excerto acima, repare-se que o "reacionário" combate a ação voluntária possivelmente porque em sua cabeça -- que só funciona sob a lógica da recompensa pessoal e pecuniária --, não haveria possibilidade de um sujeito solidarizar-se com a dor do outro espontaneamente, graças à empatia.

Ora, compadecer com o destino injusto dos demais será uma capacidade restrita a poetas, sonhadores e lunáticos? Parece ser essa a hipótese do tipo descrito por Arcary. A isso se soma a segunda cota da recriminação conservadora: desejar um mundo menos desigual (ou efetivamente mais justo) é coisa de gente imatura. Daí os chavões que, volta e meia, escutamos (do vagão de metrô à rádio universitária): o mundo é pragmático, competitivo etc; por conseguinte, não haveria lugar para utopias, dipustas de ideias, implementação de atitudes que aproximassem os homens.

Curiosamente, quando se pergunta ao reacionário se ele se sente bem em meio à miséria, dificilmente ele nega a suposta primazia perante os demais. Pelo contrário, é capaz de se rejubilar, justamente por se "destacar" em meio à crescente multidão de miseráveis. Ora, o que um sujeito incapaz de captar ou de se comover com as dores alheias entende de "voluntarismo"? O que uma criatura tão cheia de si entende por "infantilidade"?

O tipo que depende dos familiares para tocar os "seus" empreendimentos; que despreza o passado, transfere o presente para o futuro e diz que é preciso mudar, inovar, amadurecer, é o mesmo que nega a evolução dos homens, afinal "Não seria possível mudar o mundo, porque, afinal, as pessoas são como elas são; as relações sociais são como são, em função da natueza humana" (p. 154).

Por aí se vê como a palavra "mudança" adquire sentidos variados ao sabor das conveniências. O que diz respeito ao próprio mega-indivíduo deve seguir inexoravelmente em frente (daí a força de chavões como "é pra frente que se anda"); o que se refere ao coletivo não lhe diz nada. Nesse caso recorre à falácia do "mérito pessoal", embora viva sob a beneplácito e o bolso dos pais, a condenar o estado paternalista.

O espírito revolucionário deseja a mudança geral. E ela começa por negar a imutabilidade dos verbos no tempo presente: o mundo não "é"; o mundo "está". Portanto, pode ser efetivamente transformado, apesar daqueles que veem perigo na inclusão dos outros. Ora, se o sujeito é tão seguro de suas qualidades e competências, porque treme ao ouvir falar em mudança do todo? Porque, no fundo, desconfia de que o mundo totalizante em que vive não é absoluto: sua premissa é o mérito; seu método é a exclusão dos outros; sua meta é a manutenção dos privilégios -- que, evidentemente, ele não reconhece como tais. 

*Valério Arcary. O Martelo da História. São Paulo: Sundermann, 2016.

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