sexta-feira, 8 de junho de 2018

Dos ideais democráticos à vanguarda iluminista: a marcha à ré brasileira

Fúvio Maurício/OAB-PA
Créditos da foto: Fúvio Maurício/OAB-PA

A despeito do slogan 'Uma ponte para o futuro', como foi batizado o programa do partido do presidente Michel Temer, o PMDB, o país caminha nitidamente para trás na sua lida democrática. Expandem-se no campo progressista os núcleos da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

Por Erika Morhy 

A mensagem recitada em forma de rap pelo jovem Pelé do Manifesto é simbólica do que representa a instalação de mais um núcleo da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD): o enfrentamento incondicional a um sistema que não mede esforços para excluir grupos sociais do acesso a direitos constitucionais e que foi determinante para o golpe de 2016. A intervenção artística marcou o lançamento público da organização no Pará, nesta terça-feira (05), em Belém, e contou com a presença de lideranças populares, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a comunidade quilombola do Abacatal, e de uma rede de profissionais de diversas carreiras jurídicas, entre advogados, defensores públicos, além de professores e estudantes de Direito. Somaram-se ao ato a Doutora em Ciência Política, Gisele Cittadino, e do coordenador nacional da ABJD, Cézar Ayres.

A mesma Seção Pará da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) que sediou a cerimônia foi a única das 27 bancadas de conselheiros federais que votou contra o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, protocolado pela entidade nacional na Câmara dos Deputados em março de 2016. Postura de matriz ideológica semelhante à dos primeiros anos de 1960, influenciando de forma crucial para o início da ditadura militar no gigante Latino Americano. Não à toa, dos mais de 15 núcleos já constituídos, o do Pará é o primeiro a ter sua apresentação numa seccional da ordem, justificou Cézar Ayres. Ele faz uma retrospectiva do recente cenário político e argumenta que foi imediata a reação de juristas do campo progressista em diferentes estados contrários aos rumos de ataques à Constituição que o país começou a trilhar.

As redes virtuais que se formaram adotaram nomes sugestivos, como “Ministério Público pela Democracia”, “Magistratura pela Democracia”, “AGU pela Democracia” e “Defensoria Pública pela Democracia”, constituídas por membros de fortes identificações políticas e engajamento junto a movimentos populares e em defesa dos direitos humanos, ainda que demarcassem divergências partidárias. Cézar Ayres relata ainda a importância da academia neste processo, com debates científicos e publicações com a perspectiva da denúncia. 

A edição real dos encontros se consolidou com a Frente Brasil de Juristas pela Democracia, em 2017, em Brasília, conduzindo à fundação da ABJD no último mês maio, no Rio de Janeiro. “Estamos numa associação que escolheu um lado, que não acredita na imparcialidade do Direito, que sempre esteve do lado interpretativo mais conveniente à dominação. É preciso uma associação que reflita o outro lado”, defende.

Retrato dramático da força elitista em vigor na seara jurídica é o número de pessoas presas desde que caiu por terra o princípio da presunção da inocência: já são mais de 13.800, só em São Paulo, informa Cézar Ayres. Presos provisórios, são cerca de 325 mil.

Articuladora decisiva na criação de um observatório, no Rio de Janeiro, para o acompanhamento de processos instaurados contra o ex-presidente Lula e na elaboração da petição pelo lançamento da pré-candidatura do petista à Presidência da República, Gisele Cittadino faz uma ressalva, de antemão, à sua tese em defesa da Carta Magna de 1988, traçando um panorama histórico da sua construção. “Nossa Constituição é fruto de uma transição política que não foi por colapso, como na Argentina, e que quase aconteceu na semana passada com a greve dos caminhoneiros. Nossa transição foi por transação, como diz o pensador argentino Guillermo O’Donnell, foi um acordo de todos com quase todos, que incluiu os militares”, argumenta Gisele, que é professora associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Mas é o reconhecimento do conjunto de direitos garantidos pela Constituição que une a todos que estão nas organizações em curso, conforme analisa.

Gisele Cittadino expande os louros à Carta Magna com a lembrança de que foi arquitetada uma série de instrumentos processuais para assegurar a concretude desses direitos. Neste bojo estão a Ação de Constitucionalidade por Omissão, o Mandado de Segurança Coletivo e a Ação Popular, por exemplo.

A terceira ponta deste novelo, identifica a professora, está no sistema de Justiça, responsável por receber e afiançar as demandas da sociedade, o que de certo modo também se deu. “O Brasil tem 100 milhões de ações no sistema de Justiça, que partem de sindicatos, movimentos ou associações. É efetiva a participação do povo brasileiro nesse sistema, que antes de 1988 era reduto das camadas altas da sociedade”, evidencia. Esse seria o sinal de um ideal de Ministério Público e de uma Magistratura construído na redemocratização, com intuito de fortalecerem a política. “O problema é quando a judicialização da política se transforma em ativismo judicial, em protagonismo do Poder Judicial, redesenhando seus objetivos”, condena.

A professora se detém ao contexto do Brasil recente e opina que “a melhor metáfora do ativismo judicial é a do ministro [do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto] Barroso. A vanguarda iluminista. ´Nós somos aqueles que admitimos a constitucionalidade do sistema de cotas, que lutamos contra o nepotismo, que viabilizamos a união homoafetiva, que permitimos o aborto de fetos anencéfalos´. O STF constrói uma narrativa em que se coloca como progressista, mas em matéria política e penal, em alguma medida retroage ao medievo”. Ela esviscera: “O STF só pode ser vanguarda iluminista e os juízes de 1ª instância só podem posar de proprietários monopolistas da ética e da virtude se, de outra parte, eles criminalizarem a política, e assim o fazem...´são todos corruptos´”. 

Gisele Cittadino relata que “todas as vezes que os brasileiros elegeram representantes alinhados, em alguma instância, com as camadas populares, a política foi criminalizada, de Getúlio Vargas, a Juscelino Kubitschek, João Goulart e os governos do PT”. Para ela, a batalha pela reversão desse quadro sinistro precisa passar pela defesa de uma democracia representativa e determina um desafio imediato: “O golpe de 2016 suspendeu por 20 anos nossos direitos e só vamos recuperá-los derrubando a Emenda Constitucional 95”, sentencia, aludindo à instituição do Novo Regime Fiscal decretado pelo presidente Michel Temer, em dezembro de 2016

A formação inicial do núcleo da ABJD no Pará é integrada por Antonio Maués, Breno Baía, Bruno Brasil, Eduardo Sizo, Gilberto Guimarães Filho, Johny Giffoni, José Maria Vieira Jr., Juliana Oliveira, Lorena Dahas, Mary Cohen, Paulo André Nassar, Paulo Weyl, Ricardo Evandro, Silvia Mourão, Verena Arruda e Vladimir Koenig. Eles farão a instalação oficial da organização ainda este mês e seguem com as filiações abertas.

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