sábado, 7 de julho de 2018

Copa – o Brasil segundo GH. O paradoxo de um sentimento, por Armando Coelho Neto


Copa – o Brasil segundo GH. O paradoxo de um sentimento

por Armando Rodrigues Coelho Neto

A rigor fiquei distante desse Mundial de Futebol, num conflito entre razão e sentimento. É sempre difícil perder, sobretudo por conta do meu escorpião, a velha história de que isso ou aquilo está no sangue, como a magia do futebol. Não torci nem distorci, mas foi como na música “Gol Anulado”, de João Bosco: “Quando você gritou Mengo, no segundo gol do Zico, tirei sem pensar o cinto e bati até cansar”. O escorpião falou mais alto e a vascaina submissa da canção acabou se contradizendo. Para o agressor a traição: “Três anos vivendo juntos e eu sempre disse contente, minha preta é uma rainha... e ainda é Vasco doente”.

Foi assim quando eu gritei gol no segundo tento da Bélgica. Fui traído ao contrário, pois meu escorpião é brasileiro. Justo eu que havia me declarado indiferente. Mas, no fundo, trazia comigo algo intimo que alguém depois me alertou: o que é perder uma Copa, para quem perdeu a democracia e junto com ela soberania, levando a reboque saúde, educação, cidadania, direitos sociais, respeito? O que é perder uma Copa num pais no qual 1/4 das cidades brasileiras não atingiram, em 2017, a cobertura ideal para nenhuma das vacinas indicadas a crianças? O que é perder uma Copa para quem perdeu Embraer, Pré-Sal, Alcântara... Diria mais, o que é perder uma Copa, para quem não conta sequer com um Poder Judiciário para recorrer contra a rapinagem social? Um Judiciário que legitima a tirania de um juizeco, responsável por um caos político num país que bem ou mal definia sua vida no voto. O que é perder uma Copa num país em que as instituições basilares perderam a vergonha?

Foi um grito ambíguo de gol, de quem no fundo e certamente, ficaria feliz ao ver a alegria do povo, ainda que as camisetas da CBF me provoquem náuseas, coisa assim, digamos de trauma. É. Como está no título, falo do paradoxo de um sentimento. A perda satisfaz a razão, mas agride o coração, ainda que por vias transversas – o povo sofrido. Nesse ponto, me ocorreu outra canção, desta feita, Geraldo Vandré, “Frevo de João pra Maria”. Nela o poeta lembra que João fez a canção para Maria. Mas, “o povo na rua pensou que era sua, de tanto que andava atrás de qualquer alegria... E na cantiga de João que era só ilusão jogou a esperança que havia”. Coisas do tempo em que, parece, Vandré se ocupava com a alma do povo. O brasileiro do voto cassado pelo golpe (com o supremo e tudo!) embarcou na alegria.

Nessa ambiguidade de sentir, um amigo quase me censurou. Ele disse que um amigo dele anarquista tentou filosofar. Sob a mira do escorpião do anarquista, se o Brasil ganhasse a Copa, a vitória não seria associada ao salafrário para quem nossos generais batem continência - leia-se, o tal Fora Temer. Mas, no caso de derrota, o moral baixo do brasileiro se tornaria mais rasteiro ainda e que isso tornaria o povo mais imobilizado. Nesse caso, seria melhor o Brasil triunfar com o hexa...

Não estou convencido daquela assertiva, sobretudo por ter em mente uma fala do mestre Fábio Konder Comparato. Para ele, a rigor não existiria mobilização espontânea numa sociedade politicamente divida. As mobilizações espontâneas da história, disse o mestre, só ocorreram nas causas comuns. E citou como exemplo a mobilização dos americanos contra a Guerra do Vietnã. Nela, filhos de democratas e republicanos morreram e o sentimento de perda em comum foi fator de união. Eis um tema para pesquisadores brasileiros refletirem e encontrar a causa comum para o levante popular, já que a mera euforia esportiva, ainda que fator de união de sentimentos entre a Casa Grande e a Senzala, está distante de romper a imobilidade.

Em “Paixão Segundo GH”, a escritora Clarice Lispector criou uma ficção sobre uma terceira perna que supostamente perdera. Estaria triste por ter perdido o que não precisava, mas a terceira perna formava um tripé estável... “ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma”. Estaria triste por voltar a ser alguém normal e ter que andar com duas pernas. Eu não sei bem se o Brasil precisava dessa alegria ou perna de euforia esportiva. Ainda que por algum tempo o povo sinta a ausência inútil do que perdeu, urge que volte à condição de seres normais e possa mais que se ocupar do cotidiano, lutar por ele. Afinal, o que é ganhar uma Copa com Lula preso?

Armando Rodrigues Coelho Neto - jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo

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