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Quando observamos a cena política, de maneira geral, há um processo de ‘naturalização’ do discurso. É assim, aliás, com todos os fenômenos na esfera do sensível e do cognoscível: quando falamos/escrevemos, ignoramos os processos de produção de sentido desta fala/escrita: apenas a incorporamos e seguimos seu fluxo, sob o empuxo de um desejo – e não da racionalidade.
Nós achamos que é perfeitamente tranquilo dizer o que ‘pensamos’, mas mal sabemos que aquilo que ‘pensamos’ também é algo sutilmente mediado por outras forças que não exclusivamente as do nosso ‘eu’.
Antes que eu me torne um filósofo da linguagem intragável, permitam-me dizer: a compreensão desse fenômeno é simples e pode ser dita em língua de gente: quando falamos não nos damos conta do sofisticado processo que nos permite falar – e isso vale para a escuta e para a interpretação de texto.
Esse processo de ‘apagamento’ dos processos de construção da fala e do discurso já está devidamente catalogado pela literatura da linguística – e da análise do discurso francesa: chama-se ‘esquecimento n.1’ [ele foi postulado pelo linguista francês Michel Pêcheux].
Pode-se fazer um paralelo delicadamente livre com a máxima atribuída a Sócrates: ‘só sei que nada sei’. O filósofo grego atirou no que viu e acertou no que não viu, como sói acontecer com os desdobramentos dos sentidos ao longo da história. Em suma quando se fala não se sabe que se fala – e isso é constitutivo do ato de falar. Um belo labirinto, mas quem disse que a vida seria fácil?
Outro exemplo – para que se tente dissipar as indagações que posso ver daqui do ato desta escrita: falar/interpretar é como usar o Windows. Você não tem a menor ideia de como aquilo funciona – e, na verdade, nem importa como funciona – mas, por incrível que pareça, funciona.
Este ‘apagamento’ da construção do discurso está presente, óbvio, na análise e na produção do discurso político. Os agentes políticos de uma determinada sociedade desandam a produzir propostas, concepções, compreensões de mundo, de Estado e de sociedade e mal sabem como chegaram até ali.
O efeito ‘naturalização’ na vida do ser social é muito poderoso. Naturaliza-se o racismo, naturaliza-se a homofobia, naturaliza-se o machismo, naturaliza-se a corrupção, naturaliza-se o combate hipócrita à corrupção. A origem de todas essas distorções do mundo simbólico se perde e adentramos perigosamente o terreno dos dogmas e das intolerâncias. E daí que surge o famoso ‘diálogo de surdos’.
O preâmbulo é longo e eu sei disso, mas sem essa introdução, eu não conseguiria dizer aquilo que quero dizer, dentro do não apagamento consciente e artificial do meu próprio discurso.
A cena política brasileira deste momento está fortemente atravessada por uma imensa família de apagamentos de origem do discurso. Se eu analisá-la ignorando esses apagamentos, eu apenas replicarei suas limitações e mergulharei na espiral infinita e interminável de simulacros a disposição no varejo do debate público.
Eu preciso romper essa bolha para poder enunciar e para poder observar com alguma qualidade quais são os desdobramentos políticos do presente e seus respectivos prognósticos para o futuro.
E o que se vê, deste ponto de vista estrutural do discurso na sociedade brasileira conflagrada pelo maior volume de blefes e crises institucionais da história? Uma disputa muito clara entre civilização e barbárie, entre golpe e democracia, entre desejo do povo e interesse das elites, entre o princípio do diálogo e o princípio da força.
De um lado, temos a massa discursiva produzida pelo golpe, pela violência que se apoderou do Estado brasileiro: a imprensa tradicional e sua dicção dissimulada, o poder judiciário e sua pretensão política e o fascismo extemporâneo brasileiro, bolsão de ódio ainda resiliente em uma sociedade cujo regime de informações institucionais é comandado por gângsteres.
Essa disputa de forças discursivas está desigual em dois níveis: a barbárie se apoderou do Estado e da mídia arcaica e, nesse terreno – o institucional – ela se sobrepõe à civilização.
Mas há outro campo de batalha: a realidade empírica e subscrita no povo – ou: a realidade da maioria. Nesse campo, o espírito democrático prevalece e vence com larga vantagem, seja na disputa das narrativas, seja na materialização dessa disputa (as eleições).
Se naturalizarmos esse quadro discursivo e o apagarmos, no processo mesmo habitual das leituras de conjuntura, não iremos compreender nunca porque a candidatura do PT se tornou algo tão poderoso na esfera popular.
Não há explicações pontuais para fenômeno desta monta: a candidatura de Lula-Haddad e do PT é uma materialização deste discurso que se consolidou após o golpe. Ela tem consistência histórica, tem memória, tem laços reais com o povo, tem apelo, tem afeto, tem conteúdo, tem a comprovação de sua efetividade enquanto discurso conectado com a realidade e com sua interface prática (as ações concretas dos governos passados, experimentados e aprovados – e eleitos).
O outro lado, o lado do golpe e do arbítrio, trava sua luta contra a realidade de maneira violenta. Eles resistem a admitir seus erros e suas agressões ao Estado, à sociedade e à verdade (os dados tenebrosos de um governo Temer-PSDB).
Isso posto, fica relativamente claro que a candidatura de Fernando Haddad em substituição à de Lula não é um desejo pessoal de alguém, muito menos uma decisão eminentemente partidária.
A candidatura do PT – como eu gosto de chamá-la – é decorrente de um conjunto de forças discursivas que se organizaram e se aglutinaram em torno de uma ideia e em torno de uma resistência comum.
Ela é o exato contrário do que comumente se chama de ‘tubo de ensaio’. É uma candidatura que já tem legitimidade antes mesmo de lograr êxito – e é por isso mesmo que seu destino é lograr êxito.
A imposição desta candidatura pela história é tão evidente e poderosa que o lado da barbárie tenta miná-la justamente naquilo que ela tem de mais impressionante: a legitimidade popular.
Todas as forças obscuras do país se unem para destruir essa candidatura e isso é só mais uma prova da imensa força que ela apresenta, com o apoio de artistas, de comunidades, de movimentos sociais, de trabalhadores, de minorias e de segmentos comprometidos com a coletividade.
É por isso que quanto mais o segmento golpista a pressiona – judiciário e mídia – mais ela se torna forte, mais ela se torna favorita, mais ela se reveste de legitimidade.
A candidatura de Fernando Haddad, portanto, e diante das ferramentas de desnaturalização do discurso político, é o produto mais bem acabado da materialização concreta da vontade do povo.
Ela se coloca, daqui por diante, como a própria democracia em seu estágio máximo de inscrição simbólica no mundo real. A partir de agora, Fernando Haddad e democracia são sinônimos.
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