Sem repressão social, sem calar a oposição e, no limite, sem alguma forma de fascismo, tornou-se impossível implementar o programa neoliberal. Mas este será nosso destino inevitável?
Por Daniel Revah
Faltando menos de uma semana para a realização do primeiro turno das eleições e logo após as massivas manifestações de rua convocadas por coletivos de mulheres contra Bolsonaro, fomos surpreendidos pelo que parecia um contrassenso: Bolsonaro havia subido nas pesquisas e não era pouco. Diversas explicações logo apareceram, como o apoio dos evangélicos e a forte reação conservadora diante da magnitude das manifestações e da suposta ameaça a valores caros para esses setores. Mas o que mais parece ter incidido nesse crescimento e que igualmente foi aventado como uma explicação possível foi o intenso investimento dos partidários de Bolsonaro nas redes sociais, com a produção e difusão massiva de fake news que teriam sido ilegalmente financiadas por várias empresas, segundo foi denunciado recentemente, junto com o inestimável apoio internacional de grupos que têm amplo domínio da tecnologia com a qual já foram ganhas algumas eleições presidenciais, como a do Trump nos Estados Unidos e a do Macri na Argentina, onde a mão invisível da Cambridge Analytica conseguiu manipular uma infinidade de usuários das redes sociais. Com o whatsapp, sobretudo, a extrema direita conseguiu no Brasil a proeza de virar a eleição a seu favor, com um candidato que dispunha de apenas 8 segundos na TV e que parecia ter reduzidas possibilidades de continuar crescendo, dado o espanto que em muitos provocavam os rompantes fascistas do candidato, registrados em cenas e declarações que já fazia algum tempo vinham circulando nas redes sociais.
Sobre esse crescimento da extrema direita, vários artigos com entrevistas a eleitores de Bolsonaro têm deixado evidente que a estratégia do ódio direcionada ao PT foi bem sucedida. O antipetismo, fomentado a diário durante anos pela grande imprensa, tornou-se o limite intransponível de qualquer conversa de natureza política com boa parte dos eleitores de Bolsonaro e constitui um dos principais motivos do apoio à sua candidatura, ainda mais quando o tema em pauta é a corrupção. É claro que o PT fez a sua parte para granjear tamanha rejeição, mas a construção midiático-judicial da corrupção como o maior problema do Brasil, com o PT como cabeça visível desse monstro, não teve um papel menor, muito pelo contrário. É uma construção assentada sobre casos muito concretos e importantes, mas também sobre arbitrariedades jurídicas e institucionais (como o golpe parlamentar que destituiu a Dilma) e que exagera o papel de alguns atores e o lugar da corrupção no conjunto dos principais problemas do país.
Ainda sobre o maciço apoio a Bolsonaro, outra explicação importante é a de que teria se tornado uma espécie de candidato antissistema, um candidato que rejeita tudo o que os eleitores não querem nem ouvir falar, incluída aí uma parte das forças políticas de sustentação do governo Temer e de seus candidatos, como é o caso do PSDB e do Alckmin. De modo que no nome do capitão teriam confluído inúmeras demandas, vontades e desejos heterogêneos mas unidos por essa comum rejeição, nutrida pela frustração que sobreveio especialmente após o impeachment, nos anos do governo Temer.
Nesse ponto é preciso considerar o papel das redes sociais e em especial do whatsapp, que se tornou a ferramenta privilegiada para transformar o espaço comum do debate político no espaço virtual de troca de memes, vídeos e frases curtas a serem rapidamente consumidos e descartados. Sem perceber, todos nos transformamos em consumidores massivos de mensagens rápidas, o consumidor ideal que nesse mesmo movimento se consome, como sujeito, cidadão e ser pensante. Consumidores consumidos, com seus sintomas característicos: excesso e exaustão, sintomas ligados à produção e ao consumo desses fluxos de imagens e enunciados que nos atravessam e pulsionam. Mergulhados há anos nesses fluxos, tornamo-nos o cidadão neoliberal ideal, a subjetividade feita à medida do que o mercado e a nova forma de fazer “política” exigem. Em troca, podemos ter tudo o que nesse multifacetado e incessante fluxo é intencionalmente dirigido a nós, seres singulares reduzidos à estatística do mercado segmentado. Nesse fluxo encontramos tudo o que queremos ver e escutar, nada de ruídos. Somente gozo para nossos olhos e ouvidos. Gozo permanente! Gozo que implica corpos virtuais e intangíveis, menos o nosso, o único que conta, nosso corpo e nosso gozo, que na verdade é do Outro, desse discurso que fala em nós e através de nós, nutrindo o fluxo pulsante que nos (des)vincula.[1]
Sustentado por essa subjetividade neoliberal, ergue-se o candidato que hoje promete um futuro voltado para o passado: 1964. Ecos da ditadura começam a nos atordoar. Ditadura mal digerida, mal elaborada, história lembrada em fragmentos desconexos, sem memória coletiva que a sustente, sem uma continuidade que a alicerce. No vale-tudo do capitão e de boa parte de seus eleitores, é válido e possível adotar e acreditar em qualquer versão dessa história mal contada. Não há memória coletiva sobre o que significa viver sob uma ditadura, com a sua necessária cota de violência, arbitrariedades, censura, falta de liberdade e de direitos políticos, com todas as consequências disso na vida cotidiana. Nesse vale-tudo, é válido apoiar quem defende a ditadura e ao mesmo tempo ter apoiado quem a critica, inclusive apoiar hoje mesmo, na figura de um candidato da esquerda.[2] A defesa ou a crítica da ditadura não constitui um divisor de águas e qualquer versão sobre esse passado serve para o momento em que estou, para o consumo da hora. O que conta é o perpétuo presente. Nesse registro, a ditadura tornou-se presença contínua a nos assombrar e agora tende a reaparecer com sua face mais crua. É o retorno do que durante décadas foi recalcado pela imposição de uma política conciliadora e pela crescente despolitização do espaço público, atrelada à valorização do direito ao consumo como principal razão de ser das políticas governamentais progressistas.
No embalo desse retorno impõe-se a figura do capitão e a estratégia de intimidação e infusão de medo a qualquer um que apoie seus adversários políticos, todos transformados em inimigos, com o previsível saldo de violência e morte, como a do mestre de capoeira Moa do Katendé e da travesti Priscila no centro de São Paulo, sem contar os crescentes casos de violência no espaço público (agredir fisicamente, ameaçar, insultar), na sua enorme maioria provocados pelos apoiadores de Bolsonaro, que diz não poder fazer nada a esse respeito.
Olhar e valorar o passado das ditaduras é uma exigência atual do neoliberalismo na América Latina. Sem repressão social, sem calar a oposição e, no limite, sem alguma forma de fascismo, dificilmente poderia ser implementado o programa neoliberal que hoje, na América Latina, mas também em outras latitudes, busca impor as corporações internacionais, o mercado financeiro e organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial. Um passo essencial nessa direção é a extinção da ordem política, a extinção do mundo comum que coletivamente construímos por meio da ação política. Uma ação que sempre supõe lidar coletivamente com o núcleo duro da política: as fraturas que atravessam toda sociedade e que não é possível suturar completamente. Lidar com essa impossibilidade é próprio da ação política.
O mundo comum que a política exige para existir é o que hoje se vê crescentemente corroído com a oferta de soluções à medida de cada um, para problemas que são comuns e por uma esfera que não é a da política, mas a do mercado ou que funciona segundo a lógica do mercado. Objetos de gozo efêmero e que sempre exigem voltar à fonte, que novamente renova a nossa esperança de gozo perpétuo. Assim parecem funcionar hoje os inúmeros memes, vídeos, imagens e frases que de forma fugaz alimentam e configuram nossos sonhos de uma amanhã distinto, de uma vida diferente, de um Brasil com outra cara. Ao sermos tomados por esse fluxo onde as dúvidas desaparecem, a extrema direita faz a sua festa, festa que prepara o mundo perverso onde logo logo, se não acordarmos a tempo, mergulharemos. Um mundo onde todas as fichas são postas na via da violência salvadora de um Messias e de uma suposta mudança radical que deveria cortar os males do Brasil pela raiz.
Mas esse é o nosso destino inevitável?
As pessoas que pretendem votar no Bolsonaro nem sempre mostram-se totalmente fechadas a respeito da sua opção e há inclusive quem diga que vai repensar seu voto, após uma conversa na qual a dúvida de alguma modo se instala. Algo que já vi acontecer mesmo pelo whatsapp, numa troca de mensagens onde a fala dos interlocutores não foi tomada pela raiva, em vez disso dando lugar aos temores de pessoas que falavam em nome próprio, a partir de situações pessoais que as afligiam, em alguns casos pelas possíveis investidas violentas, homofóbicas, misóginas e racistas que as declarações e gestos de Bolsonaro promovem desde já, sem contar o que estaria por vir. Houve, nesse caso, pela via da mesma tecnologia que nos torna consumidores ávidos de mensagens, algum espaço para que surgisse algo diferente, graças a uma brecha aberta por uma escuta que não deu lugar ao discurso polarizado que nos afasta e separa, assim impedindo a circulação da palavra.
Vários elementos dos discursos que sustentam a candidatura de Bolsonaro e o crescimento da extrema direita estavam presentes na fala de um dos que participava da troca de mensagens, como o antipetismo, a figura do candidato antissistema, a ideia de que as declarações polêmicas que ele faz não devem ser levadas a sério, a crença de que Bolsonaro vai deixar em ordem o país, a opinião de que ele representa o novo e que é necessário experimentar, sem medo. Nessa argumentação, um dos elementos em pauta era um vídeo que a pessoa havia visto e que tinha sido decisivo para convencê-la. Esse vídeo não trazia nenhuma notícia falsa, mas a fala de uma pessoa comum feita na “medida certa” para favorecer o voto em Bolsonaro de pessoas com certo perfil. Essa e outras falas feitas na “medida certa” são repetidas e produzidas aos montes, sejam elas verdadeiras ou falsas, para sustentar e realimentar o particular circuito de demandas, vontades e desejos que confluem no nome Bolsonaro. Um nome que dessa forma foi transformado no ponto onde inúmeros discursos confluem e se articulam, recriando em torno da sua figura o estofo ideológico da extrema direita, atualmente hegemônica em razão dessa heterogênea articulação e de traços que foram criados durante anos, mas que somente agora, por um efeito discursivo e retroativo que reuniu essa dispersão, permitiu criar um nó difícil de desatar em torno da figura e do nome Bolsonaro.[3]
A “medida certa”, que é uma ficção recriada permanentemente pelas estratégias do marketing, sabemos que não existe, como podemos constatar mesmo quando nos iludimos por um tempo. Menos ainda na ordem política, onde sempre será necessário retomar as questões fundamentais da vida coletiva e encontrar respostas que em alguma medida sempre serão insatisfatórias. A não ser que o campo da política desapareça, como tende a acontecer de forma crescente nos dias de hoje, quando o esforço para persuadir o outro cede lugar à adesão pulsionada por mecanismos próprios do marketing que direcionam a circulação da palavra para nos atender de maneira individualizada, dando-nos a resposta feita sob medida que tanto buscamos e que pode acalmar, ao menos por um tempo, nosso anseio consumidor, em prol de um amanhã diferente. Essa peculiar investida individualizante que busca e parece atender a todos na medida certa de seu desejo, que anula o espaço comum necessário à política, que precisa polarizar o debate político transformando adversários em inimigos, que corrói a democracia como forma mais radical da existência política, somente pode ser enfrentada com o que ela mesma tende a anular: a própria política. E se entendemos que “o inconsciente é a política”, como sugere Lacan, o primeiro a fazer é escutar o outro, no plano do que nele fala como discurso pronto que de alguma maneira concerne a você, além de implicar um querer singular enredado nesse discurso.[4]
Um exemplo de uma situação vivida pessoalmente talvez esclareça melhor de que se trata. Faz alguns dias parei num posto para pôr gasolina e perguntei ao rapaz que me atendeu em quem iria votar. Em Bolsonaro, disse rapidamente e com muita confiança. Perguntei por que: porque posso comprar uma arma. E a conversa assim continuou:
– Mas você vai comprar uma arma?
– Não.
– E você quer que os outros tenham armas.
– Não – disse sorrindo, como se tivesse sido pego dizendo algo em que não acreditava. E em seguida acrescentou:
– Ah, mas o PT não!
– Por quê? – perguntei. E assim se explicou:
– Os governos do Lula foram bons, mas a Dilma…
– Mas Haddad é o Lula ou a Dilma?
– Não.
– E então? O que você sabe de Haddad?
– Ele foi um bom ministro, mas como prefeito…
– Por que você diz isso?
– Ele perdeu a eleição, então ele não foi bom.
E em seguida acrescentou, referindo-se a Bolsonaro:
– E com Bolsonaro, qualquer coisa é povo pra rua!
Nessa rápida conversa, o discurso que fala nas e através das pessoas que votam em Bolsonaro aparece em vários trechos. É uma fala que se repete, como fazem os bots (robôs informáticos) que pelo whatsapp enviam uma e outra vez as mesmas mensagens ou mensagens diferentes com as mesmas frases ou ideias, prontas para serem consumidas segundo a ocasião e feitas ao gosto do consumidor. Tudo feito à medida, incluso o que fazer se tudo der errado com Bolsonaro: povo pra rua! Uma ideia que sequer parece conter qualquer registro das possibilidades e implicações de sair para a rua sob um governo autoritário. Deste, quase não resta registro na memória coletiva, algo que também tende a afetar parte da intelectualidade, que fica em cima do muro numa situação tão grave e perigosa como a atual.
Na conversa com o frentista, algo da ordem de uma dúvida parece ter surgido nele em certo momento, a partir da escuta do que ele tinha a dizer e de perguntas que parecem tê-lo levado a indagar sobre o sentido de suas escolhas. Abrir o campo dessa escuta e possibilitar essa indagação são essenciais para abrir uma fenda no registro do discurso fechado e das fantasias que o marketing político pulsiona, produz e controla. E dessa forma, portanto, constituem uma via possível para recuperar e ampliar o núcleo duro da política, que hoje em dia tende a ser apagado. Essa recuperação e ampliação pode acontecer, é claro, de várias formas e em outros registros, além desse registro micropolítico, como é o caso das manifestações de rua, que constituem um tipo de ação política que cria outras possibilidades e aberturas. Nessas formas de ação política que têm na escuta um elemento primeiro e essencial, vários grupos têm investido nas últimas semanas por meio de um trabalho político na rua, com pessoas que saem do metrô, nos pontos de ônibus e em qualquer lugar público onde seja possível estabelecer um diálogo. São formas de resistência ao apagamento da política que tanto hoje como depois das eleições, seja qual for o resultado, são e serão em extremo necessárias para manter vivo o núcleo duro da política.
Esse núcleo duro da política é o que corresponde à sua impossibilidade, ao que nela é e sempre será inapreensível.[5] É o que no fundo nutre e repõe a nossa insatisfação permanente ligada às escolhas que fazemos no campo político, sempre atravessadas por dúvidas e perguntas intermináveis e sem respostas precisas. Mas isso, paradoxalmente, é o que também nos salva, num mundo que sempre “ou já está fora dos eixos ou para aí caminha”, como lembra Hannah Arendt.[6] Um mundo onde sempre precisamos retomar as perguntas que são essenciais e renovar as respostas, caso contrário poderá sobrevir o pior.
NOTAS
[1] Sobre a subjetividade neoliberal e a ideia de um consumidor consumido, há elementos importantes apresentados e desenvolvidos por Jorge Alemán em seu livro Horizontes neoliberales en la subjetividad.
[2] Um bom exemplo disso pode ser encontrado numa reportagem de Roberto Kaz recentemente publicada na revista Piauí, intitulada “Os formadores da Onda”, em: https://piaui.folha.uol.com.br/os-formadores-da-onda/.
[3] O nome Bolsonaro, nesse caso, é o que Lacan chama de significante-mestre. Na interessante obra de Ernesto Laclau, na qual um aspecto importante é como se constrói a hegemonia de determinado campo ideológico, o autor cria e utiliza o conceito de significante vazio para explicar como se dá essa construção. Em trabalhos que tenho desenvolvido, antes de tomar conhecimento da obra de Laclau, deparei-me também com o problema relativo à construção de um campo ideológico que se torna hegemônico, no caso da educação, e criei e comecei a utilizar o conceito de significante de ressonância, que se assemelha ao conceito de significante vazio que Laclau já havia desenvolvido. São conceitos que na verdade constituem pequenos desdobramentos do conceito de significante-mestre e que permitem analisar e explicar como um discurso se torna hegemônico, em razão também do efeito retroativo produzido na cadeia significante de onde determinado significante-mestre emerge, como podemos pensar a partir da teoria do discurso de Lacan.
[4] Cf. A lógica do Fantasma (Seminário 14). Centro de Estudos Freudianos de Recife.
[5] Essa impossibilidade é uma das que Freud sugere quando se refere aos três ofícios impossíveis: governar, educar e curar.
[6] Cf. A crise na educação, p. 243. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972.
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