Bolsonaro: sinais tormentosos da primeira semana
por Aldo Fornazieri
Em análise de conjuntura política não é aconselhável emitir sentenças definitivas sobre o curso dos acontecimentos. Até mesmo os fatos já consumados são passíveis de reinterpretações a partir das mudanças dos tempos ou de novas descobertas acerca das circunstâncias em que se desenrolaram. Assim, partindo da posse e da primeira semana do governo Bolsonaro apenas é possível perscrutar algo sobre o seu futuro a partir das indicações iniciais das palavras e atos do novo presidente e de sua equipe. É sempre importante observar que, dada a natureza mutante da política, um governo pode começar bem e acabar mal e outro pode começar mal e acabar bem.
Feita essa ressalva, o que se pode dizer acerca da posse e da primeira semana do governo Bolsonaro é que os sinais que foram emitidos são mais do que preocupantes, indicando que as forças democráticas e progressistas da sociedade precisam estar em alerta e em prontidão para defender o Brasil, sua soberania, sua débil democracia e sua Constituição. Quanto ao simbolismo da posse e à governabilidade da primeira semana pode-se dizer que se as indicações se tornarem regra, os riscos do governo caminhar para uma rápida desmoralização e desgoverno são altos. A provocação e a incitação a possíveis atos de violência que Bolsonaro fez no final do discurso no parlatório do Planalto indicam que ele não entende o que é ser presidente da República e não tem nenhum apreço pela dignidade do cargo. Tratou-se de algo mais afeto à arruaça política do que a alguém que acaba de ser investido com a mais alta magistratura do país.
Os desencontros de Bolsonaro com sua equipe também suscitaram altas preocupações acerca da capacidade do novo presidente governar o país. Alguns pontos saltaram aos olhos: as confusões em torno do IOF, da redução do imposto de renda para os mais ricos, em torno da reforma da previdência e a da ideia de conceder aos Estados Unidos o direito de instalar uma base militar no Brasil. As declarações sobre os três primeiros pontos criaram perplexidades na equipe econômica e desmentidos da Casa Civil. A ideia da base militar gerou desconforto nos militares.
Bolsonaro e membros de sua equipe parecem não ter entendido que as palavras geram consequências. Em sua carreira como militar, Bolsonaro provocou dúvidas e suspeitas a seus superiores. Sua carreira política foi marcada por evidentes e perigosos exageros retóricos. Se o novo presidente não tiver consciência de que deve respeitar a dignidade do cargo poderá resvalar para caminhos perigosos. A única forma de conte-lo seria estabelecer uma tutela dos generais sobre ele. Assim, ele seria resguardado dos inconvenientes públicos e protegido de si mesmo.
Mas se Bolsonaro adota deliberadamente a confusão como forma de governar, correrá riscos ainda maiores. Poderá perder a credibilidade, pois será visto como um governo espalhafato e do ridículo. O grave é que alguns ministros o secundam nesta perspectiva, notadamente o Ministro das Relações Exteriores, da Educação e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, todos imbuídos de uma ideologia reacionária, conservadora, retrógrada típica dos carolas de sacristia e dos falso moralistas do neopentecostalismo que erguem o estandarte de Deus para esconder seus conluios com o demônio. A necessidade de desconfiar daqueles que, permanentemente, apelam a Deus para justificar atos prosaicos e humanos deve ser uma regra. Testemunho disso é o caso do médium João de Deus.
O recurso a Deus, na verdade, faz parte de uma estratégia da extrema-direita norte-americana e internacional com o objetivo de combater o universalismo lácio e a globalização por conta de uma mal digerida tese de Samuel Huntington que fez uma crítica às pretensões universalistas do Ocidente e defendeu a necessidade da afirmação dos pressupostos da civilização ocidental. Se a direita internacional já entendeu mal Huntington, a direita bolsonarista, desprovida de capacidade intelectual, entendeu mal a direita internacional. Assim, o apelo a Deus aparece de forma literal, grotesca, nada sutil e a impressão que fica é a de que se trata de pessoas movidas por um fanatismo religioso ignorante e primário. Por isso mesmo, não deixa de ser um fanatismo perigoso, pois pode causar muitos estragos na educação, nos direitos civis e na política externa.
O governo Bolsonaro poderá perder algumas de suas mais importantes consignas, defendidas durante a campanha, na posse e nesses primeiros dias de mandato. A primeira bandeira a ser perdida é a do combate à ideologia. Os bolsonaristas parecem não entender o que seja ideologia. O termo foi cunhado por Destut de Tracy (1801) designando a análise das sensações e das ideias. Em seguida a ideologia se constituiu numa corrente filosófica que procurava promover uma transição do empirismo iluminista para o espiritualismo tradicionalista. Mais tarde, Marx será um crítico das ideologias pois às identifica às concepções de mundo relacionadas aos modos de produção. Seriam formas de falsa consciência, destinadas a mascarar a forma científica de ver o mundo. Outros pensadores, a exemplo de Pareto, também contrapuseram ideologias e ciência. Hoje, genericamente, por ideologia se entende um conjunto de crenças que conformam determinadas visões de mundo. As ideologias visam ser convincentes em justificar formas de estabelecer controles sobre a conduta humana.
O governo Bolsonaro é o mais ideológico do período da redemocratização. Ao combater as ideologias no seu sentido formal, as ideologias de gênero, a globalização, a despetização, ao pregar o azul para os meninos e o rosa para as meninas etc., o governo está promovendo ações justificadas em ideologias de direita, reacionárias e retrógradas. Todo governo vem revestido de carga ideológica. Mas acima da ideologia o governo deve colocar os interesses do país, do povo, defender a democracia, a Constituição, o Estado de Direito, a moralidade pública, a ética e os princípios da transparência e da eficiência. Os primeiros sinais que vêm do governo Bolsonaro são os de que ele tende a colocar os interesses ideológicos acima dos interesses do país, da democracia e da Constituição.
Este é o caso da própria noção de soberania. Em nome de afinidades ideológicas, que no discurso de Ernesto Araújo aparecem designadas pelo termo “valores comuns”, Bolsonaro se dispõe a permitir a instalação de uma base militar americana no Brasil. Trata-se de uma clara violação da soberania. O Brasil deve ser um país amigo dos Estados Unidos tendo a consciência de que aquele país é a maior ameaça à soberania brasileira pelos seus interesses geopolíticos. Bolsonaro perderá não só a bandeira da defesa da soberania, mas será tachado de falso moedeiro, pois o Brasil não estará acima de tudo e a “Pátria Amada Brasil” será traída.
Se os sinais da posse e da primeira semana se confirmarem, o governo Bolsonaro não será apenas eivado de agudas divisões internas, mas suscitará uma avalanche de conflitos sociais e políticos. A revolução de gênero é um fato inarredável da luta de todos os tempos por igualdade. O século XXI vem sendo marcado pela ascensão das mulheres em todas as atividades. Elas tomarão o poder neste século, pois conquistarão a igualdade com os homens. Combater a luta das mulheres será uma batalha perdida para o bolsonarismo.
Combater a globalização é a mais inócua e desastrada estratégia. Em primeiro lugar, porque o Brasil não é um país globalizado e nem tem força de se contrapor a ela. Aliás, um dos problemas do desenvolvimento do Brasil consiste na falta de uma estratégia de globalização. Os Estados Unidos de Trump combatem a globalização porque estão diante do declínio. Somente Estados que têm estratégias de globalização terão êxito no século XXI. Por fim, mas não por último, querer combater o estudo de Marx nas Universidades é algo grotesco. Como um clássico do pensamento sociológico, filosófico e econômico, Marx precisa ser estudado assim como Maquiavel, Hegel, Kant, Ricardo, Smith, Aristóteles, Friedman, Hayek etc.
Se o governo Bolsonaro não tomar um rumo diferente daquele indicado na posse e na primeira semana comprará brigas monumentais com a comunidade acadêmica, com os trabalhadores, estudantes, militares, mulheres, negros, comunidade LGBT, periferias e setores da mídia. O que o bolsonarismo parece não entender é que, dos votos que lhe deram a vitória, a imensa maioria não o votou por conta de sua ideologia, mas porque queria mudanças. Se as mudanças não vierem em termos de melhoria de vida, Bolsonaro será abandonado pelos seus eleitores. Para atender as demandas da sociedade, o governo Bolsonaro terá que abandonar os discursos vazios, as veleidades belicosas e persecutórias, as fantasias ideológicas e a confusão como método. Os primeiros sinais indicam mais um governo tormentoso e menos um governo eficaz.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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