A verdade nem sempre foi o principio editorial da mídia tradicional. É muito importante ter isso em mente para que possamos discutir o tema
do Portal Disparada
por Renato Zaccaro
Adaptação da palestra proferida na Universidade Prebiteriana Mackenzie, 11/02/2019
Não é privilegio dos nossos tempos a existência e a divulgação em massa de notícias falsas.
25 de março de 2016, revista VEJA- O plano secreto de Lula – Lula, em vias de ser julgado, teria armado um plano com o diplomata italiano em busca de ajuda numa suposta fuga com ares holywoodianos.
7 de setembro de 2003, SBT. Encapuzados, supostos membros do PCC ameaçam governador, apresentador de televisão e todo Brasil: “Vamos botar fogo no país”.
Os encapuzados eram estagiários do SBT numa farsa protagonizada pelo diretor “Magrão”, conhecido pela falta de escrúpulos.
13 de março de 2013, Estadão “’Golfinhos assassinos da Ucrânia estão à solta”.
Um suposto cardume de golfinhos treinados pelo governo para atacar seres humanos (!) teria saído do controle e fugido pelas águas da Ucrania. Obviamente, nunca houve golfinho algum.
A verdade nem sempre foi o principio editorial da mídia tradicional. É muito importante ter isso em mente para que possamos continuar a discutir o tema de fake news e suas conseqüências nas democracias modernas.
Golfinhos do Estadão
Mídia tradicional: entre a cruz e a espada
A última década pôs fim a qualquer esperança da mídia tradicional exercer a mesma influência que vinha exercendo desde o final do século XIX.
A tiragem dos jornais e revistas caiu drasticamente, o número de assinantes digitais não supre as antigas margens de lucro balofas. A audiência da TV aberta aparece em queda-livre. Vamos ao Brasil, como exemplo, a Globo: Segundo o IBOPE, em 1993, a emissora carioca tinha média-dia de 23,5 pontos; agora, são 16,8 pontos. Uma queda de 28% em 25 anos. Na mídia escrita, o cenário não é diferente. Segundo os números da ABI, entre os anos de 2015-2018 os grandes jornais perderam meio milhão de leitores pagantes ( 520 milhões de exemplares impressos à menos frente 30 mil assinaturas digitais novas).
As mídias alternativas, pelo contrário, ganharam força. Tanto as capitalizadas por partidos e movimentos politicos ( Brasil 247 pelo PT, Do terça livre pelo MBL) como as filhas da grande mídia (Antagonista, Poder 360). Sobrou até para os pequenos, como este portal, com crescimentos de 3 dígitos.
O Fact Checking como garantidor do status quo
As mais relevantes agências de Fact Checking do Brasil são propriedade dos grandes jornais.
Acreditar no bom mocismo das mídias tradicionais é apostar na fé cega. As agencias de checagem nascem unicamente com o intuito de tentar salvar o poder de influência da grande mídia, colocando-a como garantidora da verdade. Sabe-se que a credibilidade é algo conquistado e que algumas das empresas tradicionais do ramo possuem história o suficiente pra creditar-lhes o mínimo de confiança. Contudo, torná-las bastiões da verdade é ignorar a história e o esforço das mídias alternativas para quebrar o oligopólio da comunicação.
Quem decide o que é ou não fake news? Definitivamente não pode ser a – historicamente -maior propagadora delas, que é a mídia tradicional.
A legalidade a serviço do oligopólio
A solução para o embate com as fake-news não é jurídica. O poder judiciário tende sempre a proteger os conglomerados de comunicação. Exemplo claro é o lobby da lei do “direito de resposta”, cuja jurisprudência matou a possibilidade de algum ofendido defender-se na mesma proporção da ofensa.
Quando ouvimos a famosa frase, dita tanto por liberais quanto por progressitas, de que “é necessário criminalizar as fake-news” devemos colocar os dois pés atrás. Injúria, calúnia e difamação já são crimes. O que se quer criminalizar é a informação dada por veículos alternativos. E isso é muito claro nas falas dos ministros o STF que vivem nos assombrando com suas síncopes legisladoras.
Contudo, é fato que a maneira com que lidamos com o assunto não é satisfatória. Mas a solução da doença não é matar o doente. Tampouco entregá-lo para o a bactéria que o debilitou.
A confusão entre fake news, ascensão conservadora e desmantelamento da esquerda
Creditou-se às fake news a vitória do presidente Jair Bolsonaro e outros políticos da extrema direita.
Afirmar isso é subestimar a capacidade dos movimentos da “nova direita”. O conjunto de ferramentas de comunicação utilizadas pelo campo ultraconservador é MUITISSIMO mais sofisticado e não deve ser simplificado. Ele engloba engenharias complexas e este sim, é o desafio – POLÍTICO – que todos os progressistas do mundo devem se preocupar.
Para isso, é subliminar que não nos apeguemos às simplificações partidárias e grosseiras. Não existe uma verdade universal capaz de livrar a todos da ignorância. Existe a narrativa e sua disputa e é nesse trabalho que devemos nos concentrar.
Trump, ideologia e fake news
A primeira vez que ouvimos falar no termo “fake news” da forma como conhecemos hoje foi na eleição de Donald Trump. Conversaremos abaixo sobre alguns pontos da campanha do presidente americano, que pautou as eleições em todo o ocidente servindo como mola propulsora de um movimento conservador organizado.
O estrategista principal da campanha de Trump à Casa Branca, Steve Bannon– guardem esse nome- foi o responsável por boa parte da ascensão conservadora no mundo ocidental.
Bannon é um sujeito de uma carreira estranha. Começou nos anos 70 e 80 sendo militar de certa relevância, passou pelo tradicional banco Goldman Sachs e terminou em holywood, dirigindo documentários conservadores. Ou seja: conhece três das principais armas do imperialismo americano: a mídia, a economia e a inteligência militar.
Em 2007 ajuda a criar o site Breitbart News, cuja fórmula consiste na síntese de seu movimento. Um nacionalismo subserviente aos bancos, racista e ultra-conservador.
Assumiu a campanha de Trump, que até o último momento, parecia não vingar. A estratégia era focar em temas sensíveis aos cidadãos médios do país. Em tempo: o neoliberalismo criou uma série de mecanismos pra afastar o povo da política. As palavras difíceis, os “risco Brasil” e etc fizeram os políticos se dirigirem à uma “elite inteligente” durante décadas. Ambos estavam domados: a elite e os políticos. Bannon voltou-se ao homem médio, que não entende de rising ou subprime.
Quais seriam esses temas sensíveis? Um incômodo com as transformações culturais das últimas décadas, a imigração e o desemprego. Da primeira cabe lembrar que toda a justa ação do politicamente correto gerou uma reação até então silenciosa. Bannon soube aproveitar o silêncio e hoje essas vozes gritam suas barbaridades dentro de salões presidenciais.
O desemprego é inerente da revolução tecnológica e o sistema capitalista terá que pensar nisso se quiser continuar a existir nos moldes que hoje existe. Além disso, a economia globalizada tendeu a desempregar massas de trabalhadores locais em troca do semi-escravagismo em países periféricos. Bannon também soube utilizar-se isso e centrou a campanha exatamente nos “esquecidos da América”, que eram homens e mulheres diretamente prejudicados pela globalização. O resultado está aí.
Steve Bannon
O mecanismo das narrativas
Voltando ao nosso tema, Bannon foi conhecido por disseminar e criar mecanismos sofisticados de propagação de narrativas conservadoras, normalmente confundidas com as simples fake news.
Enquanto as fake news são normalmente criadas por lobos solitários e com o intuito de arrecadar uns trocados, as narrativas difundidas por Bannon – e amplamente copiadas no mundo – possuem um arcabouço ideológico muito mais complexo. Vejamos no Brasil: a candidatura de Jair Bolsonaro, apoiada por Bannon, possui enraizamento intelectual e base social em todas as camadas da sociedade. Seja nas classes baixas, com a hegemonização do movimento dos caminhoneiros; ou nas classes médias e altas, com cursos como “Brasil Paralelo” e seminários do guru Olavo de Carvalho.
Esse arcabouço é resultado de anos de capitulação e hegemonização da internet. Não foi criado do dia para noite. Inclusive, seus mecanismos de difusão de fakenews são muito mais elaborados, como veremos a seguir.
Big Data e eleições
O Big data é o processamento e análise de dados extremamente volumosos. Devido ao seu tamanho e forma, é impossível analisá-los com as ferramentas convencionais de processamento de dados.
Com base nos seus gostos, likes e navegações, as empresas especializadas são capazes de direcionar a propaganda política a qualquer um que use habitualmente a internet.
Estas empresas categorizam as informações com base em 5 variaveis quantificáveis: abertura para novas experiências, extroversão, grau de consciência, amabilidade e grau de neurose. Em inglês, a sigla OCEAN. Cruzando os dados com base nessas 5 variáveis – e a ajuda a inteligência artificial – traçam um perfil completo de uma pessoa, aglutinando-a com seus “perfis semelhantes”.
Depois de aglutinados, os perfis são suscetíveis ao maior engajamento pela propaganda direcionada.
Métodos
Uma análise aprofundada é impossível nestas poucas linhas. A metodologia básica é entender os anseios e medos da população através da coleta de dados pessoais via big data, cedidos por você leitor, quando aceita aqueles joguinhos de “quem você é na Disney” e adjacência no seu facebook . Com seus dados coletados e analisados sofisticamente, fornecem respostas e problematizações simples com base no seu perfil. Vamos ao exemplo didático básico (entre outros muitíssimo mais sofisticados). Tome-se como exemplo um cidadão da indústria, classe média, desempregado.
Temos como notícia: “O desemprego nas classes médias é de 10%”. Os motivos reais são diversos, desde um problema estrutural do sistema aos percalços de uma economia ultra financeirizada. Numa segunda notícia, teríamos “Imigração cresce 10%”.
A “fake news” direcionada ao trabalhador seria, mais ou menos: “Desemprego cresce e é alavancado pelas imigrações.”
Desta forma, utiliza-se de premissas verdadeiras para provar uma falsa. As imigrações cresceram, o desemprego das classes médias também. Mas não há o nexo de casualidade entre uma e outra. O fio condutor é a mentira. E através dela, pode-se legitimar qualquer coisa, como a expulsão destes imigrantes e o clima de ódio na sociedade civil.
As redes sociais como ferramenta decisiva no debate público.
Até a difusão das redes sociais, a única forma de saber a opinião ou os feitos de um governante era através da mídia tradicional. Fosse ela privada ou estatal. Os governos populistas conservadores, objeto principal da análise deste artigo, foram os primeiros a retirar a barreira entre governantes e governados e conversar diretamente com o interlocutor.
Os presidentes twitteiros são muito menos caricatos do que a mídia tradicional os pinta. Na realidade, fazem parte de uma estratégia de sucesso em aproximar o eleitor e cativá-lo como um amigo ou alguém próximo. O processo não é simples.
Nas eleições brasileiras isso foi mais evidente. A candidatura detentora do monopólio televisivo – a do tucano Geraldo Alckmin – teve um desempenho pífio nas eleições do ano passado. Em que pese o fato da candidatura construída nas redes sociais ter-se consagrado vencedora.
A internet venceu. E se quisermos participar da arena de combate devemos ter a consciência que estamos enormemente defasados em relação aos adversários.
Um caminho
Definitivamente o combate às fake news não deve ser feitos no campo jurídico. Tampouco fortalecendo a grande mídia oligopolizada. O campo de batalhas é a internet e o fortalecimento das plataformas independentes. Perder o medo de debater e lutar ao máximo contra a histeria que tem tomado conta de nós nos últimos anos.
Precisamos também de mecanismos sofisticados, de analises de dados, tecnologia e engajamento. Para isso, é primordial entendermos o que nos trouxe até aqui. Redes de criação de conteúdo, com entretenimento, disputa de espaço e principalmente, apego aos princípios esquecidos por boa parte de nossos adversários e tão caros ao nosso povo. A tolerância, a boa política e o verdadeiro patriotismo.
Não há caminho fora da política.
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