segunda-feira, 25 de março de 2019

Lavagem cerebral: sobre a loucura coletiva brasileira

         Marcia Tiburi
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Imagem do cérebro humano criada pela Dutch National Ballet para o TEDxAmsterdam, em 2011 (Reprodução/Vimeo)

Fora do Brasil, ninguém acredita no que está acontecendo dentro do Brasil. Tenho falado com cidadãos americanos das mais diversas profissões, não somente com professores ou intelectuais, e o sentimento de perplexidade, consternação e pena quanto ao Brasil são comuns. A imagem do povo cordial, afetuoso e amoroso cai por terra, mas não sem questionamento. Todos se perguntam: Como o Brasil chegou a isso? Como foi capaz de eleger o fascismo? Como Bolsonaro chegou ao poder? Quem recebeu as notícias do envolvimento da família do presidente com as milícias e o assassinato de Marielle, quem viu as diversas atitudes do presidente que culminaram no famoso vídeo do golden shower conspurcando o Carnaval, quem assiste a subserviência do presidente a Donald Trump, mesmo sendo cidadão americano, está mais do que estarrecido e com vergonha alheia. Assim como os brasileiros que permanecem lúcidos, todos percebem que há algo de muito estranho acontecendo.

Quem viu as falas dos ministros, sobretudo da ministra das mulheres sobre a sexualidade de pais e bebês holandeses, ou entendeu a farsa do kit gay e da “mamaroca” (algo muito difícil de explicar para qualquer pessoa), percebe que não estamos vivendo em um padrão de normalidade.

Ouvi manifestações de consternação sobre o Brasil, não apenas de pessoas democráticas e liberais, mas também de pessoas conservadoras nos hábitos e na compreensão da economia. Ou seja, parece que, apesar de Trump, o bom senso e a razoabilidade ainda são considerados por aqui. Embora também haja gente perturbada pelo fascismo nos EUA desde muito tempo (lembremos do grande estudo A personalidade autoritária, de Adorno, feito nos EUA dos anos 40), até agora não encontrei nenhum fascista dizendo-se orgulhoso de seu fascismo como encontrei nas ruas do Brasil.

Verdade é que, também nos Estados Unidos, a classe média baixa se deixa levar pelo fascismo. E as classes cultural ou economicamente superiores se chocam com isso. Ninguém entende por que alguém é capaz de defender o fim da seguridade social como quer Trump, ou de defender o fim de um direito qualquer. Pressupõe-se que direitos são bons para todos e isso é uma base subjetiva fundamental à democracia. É claro que há no Brasil, assim como nos EUA, quem, dependendo da previdência social, também deseje o seu fim, mas enquanto houver perplexidade podemos esperar que as pessoas reajam e acordem.

Classe média

Salvo engano, foi o escritor João Antonio quem primeiro usou a expressão “classe mérdia”. Com pesar, há semanas escrevi sobre a “merda” como metonímia explicativa do Brasil atual. Quem quiser pensar sobre o lodo que nos afunda e sua “qualidade” pode ler o artigo publicado nesta coluna. Nele, não trabalhei a questão da classe social que menciono agora com a preocupação de trazer à luz mais um aspecto para nossa reflexão infinita sobre a grande questão ética que nos deve mover na vida: Como nos tornamos quem somos?

Menciono a classe média porque ela é originalmente objeto de estudos de todos os teóricos do fascismo. Originalmente, a classe média é a classe que se deixa levar pelo fascismo. Ela adere à propaganda fascista manipulada por dirigentes do governo, do estado ou das corporações interessadas em manipular. No Brasil há milícias midiáticas em ação tentando destruir reputações, como sabemos. Eu mesma sou vítima disso. Estou até escrevendo um livro sobre isso, pois é muito interessante analisar como funciona. Mas em outro momento falarei melhor sobre o assunto.

Os publicitários do fascismo seguem o exemplo de Goebbels, chefe da propaganda de Hitler e um dos seus homens mais importantes, e definem as linhas do fascismo em cada caso. Sem discurso de ódio o fascismo não se sustenta. Na Itália e na Alemanha foi o ódio aos judeus que encabeçou o ódio geral; no Brasil é o ódio à esquerda, sobretudo ao PT, às feministas e aos ativistas, todos colocados sob o guarda-chuva da paranoia geral “comunistas”. Falando sério, na prática não se pode dizer que haja comunistas no Brasil, embora possa haver algumas poucas pessoas que se guiem ética e politicamente pela utopia de um mundo sem desigualdade e perfeito de um ponto de vista comunitário, econômico e social. Com todo o respeito, é um evidente exagero chamar de “comunista” qualquer pessoa simplesmente porque ela defenda direitos fundamentais. Ou será maldade? Ou será burrice mesmo? Quando conto aos estrangeiros que no Brasil pessoas que têm uma mentalidade democrática são chamadas atualmente de comunistas, eles dizem “então eu também sou comunista”.

Voltarei a esse assunto em algumas semanas, pois precisamos falar sobre comunismo. A tarefa de quem pensa analiticamente continua sendo combater a mistificação.

Lavagem cerebral

Chamar de “lavagem cerebral” o que vem se passando no Brasil não é um exagero. Lavagem cerebral não é apenas uma expressão metafórica como muitos pensam. É uma prática psicossocial relativamente simples para quem a põe em curso. Segundo Naomi Klein, que se dedicou a expor o seu funcionamento em A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (Record), livro que sempre recomendo, a lavagem cerebral tem uma história intimamente ligada à violência, às catástrofes, à manipulação de crises que fazem com que as pessoas aceitem políticas econômicas que não aceitariam em sã consciência. A ideia de um livre mercado contrário a um mínimo Estado de bem estar social é o que visa a “doutrina do choque”, um método organizado para destruir países inteiros e suas democracias.

Vale a pena ler o livro para entender os casos que ela conta, dos “choques” corporais aos econômicos, e o programa MK-Ultra, que compreendeu e especializou a tortura em seres humanos como procedimento de controle da mente, ou lavagem cerebral. Não é a toa que o presidente da república e seus filhos adorem o famoso torturador Carlos Alberto Ustra. O motivo pelo qual esse fato, secreto durante muito tempo, tornou-se motivo de orgulho é, no entanto, um mistério. Nos faz pensar se o orgulho exposto é apenas gozo perverso ou se entenderam que o cinismo é uma ótima técnica para arregimentar otários. Talvez as duas alternativas sejam válidas para o caso.

Talvez a partir dessas considerações seja mais fácil entender as falas e atitudes absurdas do presidente. Desde o simples vestir-se de modo muito inadequado até praticar o tal golden shower sobre o Brasil, desde fazer um discurso patético em Davos até falas racistas e homofóbicas, o presidente abre janelas diariamente para perturbar mentalmente a população.

A função disso tudo, e de objetos tais como a “mamaroca”, é criar confusão mental. Ora, a moral é uma função mental, uma função psicológica facilmente manipulável. Sejam objetos, sejam ideias estapafúrdias, tudo serve como chave que abre janelas emocionais em qualquer pessoa. A experiência da loucura coletiva, ou seja, a perturbação emocional nas massas é provocada. Você tem que estar muito protegido por reflexão, amor próprio, compreensão do sentido e valores democráticos para não cair nesses jogos. E se sua comunidade ou família não ajuda estando ela mesma a dormir um sono dogmático, então, as pessoas realmente podem sucumbir ao delírio.

A cultura e a educação tendem a dar estofo para as pessoas contra esse abismo. Mas esse estofo é tirado diariamente de todos pelos discursos prontos das corporações televisivas e religiosas. A indústria cultural manipula o pavor e o êxtase, reduzindo cada um a um rato de laboratório ébrio de fake news e desinformação. Nesse cenário, permanecer lúcido é a única resistência real para que o seu cérebro e a sua alma não se vão com a água do banho de estupidez que práticas como o golden shower visam produzir sobre pessoas desassistidas.

PS: É sobre essas questões e muitas outras que escrevi em meu novo livro Delírio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação que está chegando nas livrarias nos próximos dias.

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