Ao tentar, sorrateira, apropriar-se de recursos públicos, “força-tarefa” igualou-se aos corruptos que prometeu combater – com o agravante de entregar os segredos da Petrobrás aos EUA. É hora de trazer novos fatos à tona
por Antonio Martins
No final da tarde de ontem (12/3), nem a procuradora geral da República, Raquel Dodge, resistiu. Embora apoiadora constante da Operação Lava Jato, ela pediu ao Supremo Tribunal Federal que anule o acordo firmado em surdina, em janeiro, entre o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a direção nomeada pelo governo Bolsonaro para a Petrobrás e a força-tarefa da Lava Jato. Raquel considerou que tanto os procuradores da operação, que firmaram o acordo, quanto a juíza paranaense Gabriela Hardt, que o homologou, atentaram contra a Constituição. A ação da procuradora foi tardia. Antes dela, haviam manifestado assombro e repulsa ao compromisso autoridades como o governador do Maranhão, Flávio Dino, diversos meios de publicação alternativos, parlamentares e procuradores da República que mantêm espírito crítico. A mídia comercial tem tratado a assunto com notável mutismo. Que contém o acordo de tão grave?
O primeiro elemento é o desvio de recursos públicos. A Lava Jato tornou-se conhecida por revelar que diretores da Petrobrás transferiram, para seus partidos políticos e para suas próprias contas bancárias, bilhões de reais que pertenciam à estatal. Embora por caminhos distintos, os procuradores e juízes da operação fizeram exatamente o mesmo. Em setembro de 2018, o Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA aceitou devolver ao Estado brasileiro 80% da multa de US$ 853 milhões aplicada à estatal brasileira por, supostamente, ferir interesses de seus acionistas norte-americanos. Deveriam retornar ao país, portanto, US$ 682,4 milhões, ou R$ 2,88 bi. Em janeiro deste ano, contudo, a força-tarefa arranjou, com Petrobras e DoJ, que os recursos seriam apropriados por uma fundação privada, constituída pelos procuradores da Operação. A soma equivale quase nove vezes o orçamento do ministério da Cultura em 2018, último ano em que existiu. A alegação é que seria utilizada em… ações contra a corrupção – adotadas segundo critérios exclusivos dos procuradores e sem fiscalização alguma dos órgãos de controle brasileiros.
O mais grave está por vir. Por que o Estado norte-americano concordaria em transferir ao Brasil US$ 2,88 bi. Há cinco dias, o site Conjur encontrou a explicação, ao ter acesso ao acordo de setembro passado. Não se tratava de uma “doação”. Uma das cláusulas obriga a Petrobras a fornecer, ao Estado norte-americano, “relatórios” que “provavelmente incluirão informações financeiras, proprietárias (de patentes), confidenciais e competitivas sobre os negócios (da empresa)”. O documento reconhece, implicitamente, que se trata de dados estratégicos. Tanto que estabelece: ninguém, exceto as autoridades dos EUA, terão acesso a eles: “os relatórios e o conteúdo deles são destinados a permanecer e permanecerão sigilosos”. Resumo da história, nas palavras do Conjur: “Ao que tudo indica, a ‘Lava Jato’ tornou-se um canal para o governo dos Estados Unidos ter acesso aos negócios da Petrobras”.
Uma ação tão escandalosa abre brechas para chamar atenção da opinião pública a fatos que passaram despercebidos da maioria. Três dos textos que compõem nosso Dossiê Lava Jato procuram contribuir para isso. O primeiro é de Luís Nassif. Publicado em dezembro de 2016, traça um histórico pormenorizado das relações perigosas entre a Procuradoria Geral da República (à época chefiada por Rodrigo Janot) e o Departamento de Justiça dos EUA. Ferindo conscientemente as atribuições de seu cargo, mostra o artigo, Janot estabeleceu com o DoJ uma canal por onde circularam informações muito sensíveis não apenas sobre a Petrobras e o Pré-Sal, mas também sobre o programa nuclear brasileiro. O DoJ agiu segundo um padrão de pressões e espionagem adotado em outros países e descrito de forma circunstanciada pelo historiador Moniz Bandeira, que faleceu pouco depois.
Uma segunda peça essencial para montar o quebra-cabeças da Lava Jato é uma entrevista feita pela repórter Amanda Audi, na Agência Pública com o cientista político Ricardo Costa de Oliveira da Universidade Federal do Paraná. Líder de um grupo de pesquisa chamado “República do Nepotismo”, Ricardo coordenou um perfil sociológico sobre os integrante da operação. Suas conclusões, após descrever, uma a uma, a origem dos personagens objeto de seu estudo: a) embora jovens, os membros da “força-tarefa” pertencem, todos, às famílias oligárquicas do Paraná e da Região Sul, em linhagens que remetem ao coronelismo e às oligarquias da República Velha ou do Império; b) ideologicamente, todos “vivem na mesma bolha”: “são extremamente conservadores e têm perfil à direita, semelhante aos seus parentes que faziam parte do sistema na ditadura. Naquela época, seus pais eram gente do establishment. E eles herdam a mesma visão de mundo”; c) embora herdeiros, os juízes e procuradores cuidam de ampliar seus patrimônios. Chamam a atenção, por exemplo, as relações que mantêm, por origem familiar ou casamentos, com “a indústria advocatícia, com os grandes escritórios jurídicos”.
O terceiro texto, político-psicanalítico, é da escritora e poeta Priscila Figueiredo, nossa colaboradora. Mordaz, ela traça um paralelo entre a Lava Jato e o DSM — o famigerado Manual de Distúrbios Mentais que, criado nos Estados Unidos, espalhou-se pelo mundo ocidental. Entre diversas características comuns, provoca Priscila, “um vai fazendo réus onde lhe convém, o outro, doentes em toda parte e idade (de criança de menos de 3 anos a gente cujo luto passa do 16º dia), pois é o que lhe convém”. Mais importante: “ambos têm muitas convicções e poucas provas científicas, e fizeram como fazem estragos ainda insuficientemente mensurados”. Porém, se é assim, sugere a escritora, “tenho esperança que o próximo DSM, que seria o DSM-6, venha a incluir entre as patologias listadas o messianismo Jurídico e o Transtorno de Acumulação”…
Os poderosos perdem-se, frequentemente, por não compreenderem que suas próprias forças têm limites. Bolsonaro escorrega de degrau em degrau, nos dois primeiros meses de governo, por julgar que foi eleito devido a seus próprios méritos – não por circunstâncias dificilmente repetíveis. A Lava Jato quis formar seu “caixa 2 institucional” de R$ 2,88 bi e achou que seria aplaudida. Será um alívio – e um enorme passo adiante – se a sociedade tornar-se consciente destes dois contos do vigário.
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