quarta-feira, 10 de abril de 2019

Ricupero: “Brasil tem um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital”

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Rubens Ricupero. Foto: Reprodução/YouTube
O jornalista Jamil Chade entrevistou o ex-ministro Rubens Ricupero no UOL.
(…)
Como o sr. avalia os primeiros cem dias da política externa brasileira sob o governo de Bolsonaro?
Ricupero  A política externa é inseparável do conjunto da obra, da política interna e da política econômica, social e cultural. Tudo faz uma unidade. Eu não acredito na possibilidade de isolar um setor e dizer: olha esse setor se salva e o resto é uma banda podre. Na verdade os governos são uma unidade. Por isso que eu acho que quando se avalia a política externa, é bom nunca perder de vista o que está acontecendo no resto. Esse início de governo, sem dúvidas nenhuma, é um dos piores de que se tem memória em toda história da república, talvez o pior em termos de confusões, de escolhas inadequadas, de dificuldade de articulação.

Tanto assim, que eu vejo sintomas já de deterioração do poder que são graves. Ao meu ver, tanto aquela decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o inquérito e a justiça eleitoral, e mais recentemente essa manifestação, que eles mesmos promoveram, de desagravo ao Supremo de um lado, como de um outro lado a súbita aprovação na Câmara e no Senado daquela emenda sobre o Orçamento, são sinais claros de que os dois outros grandes poderes, o Judiciário e o Legislativo, sentiram que o centro, quer dizer o poder, está se esvaindo. E isso é grave porque esse tipo de fenômeno pode acontecer quando um governo já está muito desgastado, quando passam anos de percalços, mas que eu saiba nunca aconteceu na história num governo que mal completou três meses. Então é um sinal muito grave porque este tipo de coisa está no ar. Você capta no ar. Eu acho, pessoalmente, de difícil reversão.
Por quê?
Não são fenômenos isolados. Eles têm que ser tomados em conjunto com outros fenômenos, como a queda muito brusca da popularidade dele em alguns setores, por exemplo da população que ganha até cinco salários mínimos, que foi no final decisivo na eleição, ele chegou a cair 18%. Então eu acho que isso, e sobretudo o quadro de fundo de uma economia que não mostra sinais de reação, ao contrário do que se esperava desde o ano passado, que ela ia começar a mostrar um vigor crescente neste ano, isso não está sucedendo.
As exportações estão caindo e o comércio internacional também está crescendo muito menos do que se imaginava. A própria OMC previu só 2,6% de expansão este ano. Então eu acho que se você tomar tudo isso em conjunto, é um quadro complicado. E não se pode abstrair a política externa desse quadro.
Mas o sr. considera que a diplomacia brasileira está agindo para corrigir essa queda internacional do comércio?
Eu acho que a política externa agrava o quadro do comércio exterior porque ela têm as prioridades erradas, ela antagoniza os países que deveriam ser prioritários em matéria de exportação, então ela tanto afeta no sentido de crescente deterioração do quadro, como ela também é influenciada por todos esses fatores: perda de apoio interno e o crescente sentimento de que o governo não está dando certo.
Em termos de política externa, qual a marca que o sr. considera como sendo a principal neste início de governo?
Me impressionou muito que na viagem a Washington, naquele jantar na embaixada, quando o presidente disse uma frase muito impressionante, que aliás se coaduna com tudo o que ele têm feito antes e depois de eleito. Ele disse: “o Brasil não é um terreno livre onde nós podemos construir alguma coisa em benefício do povo brasileiro. O Brasil é um terreno em que nós precisamos desconstruir muita coisa.” Eu vejo nessa frase um grande poder explicativo do que ele representa.
Eu acho que a política externa do Bolsonaro poderia ter até como epígrafe essa frase, porque é uma política externa em que não há nenhum discurso construtivo. Se você procurar, por exemplo os outros governos, em geral o discurso de posse do presidente, que era no Congresso, já tinha um capítulo grande sobre a política externa. Ele fez uns discursos inexpressivos. Na mensagem ao Congresso, só há uma apresentação inicial dele de algumas páginas, e nessa apresentação aparece a frase que “o Brasil há décadas vêm sofrendo o efeito da destruição dos valores da civilização judaica-cristã”. Ele usa essa expressão “décadas e décadas”, porque inclui nisso o Fernando Henrique Cardoso, não é só o PT, é tudo que se fez antes, a social-democracia. Esse tipo de coisa, ao meu ver, explica muito a política externa, porque é uma política externa de desconstrução, de destruição.
(…)
O sr. considera que houve algum resultado concreto da visita ao Chile?
Fundou-se o Prosul, algo sem maior importância, expressão da mania de cada governo de querer dar um carimbo de nome diferente ao que já existia, no caso a Unisul. Em relação à repercussão da visita de Bolsonaro ao Chile, ele não só foi repudiado pelos presidentes da Câmara e do Senado chilenos, que se recusaram comparecer ao banquete oficial em protesto pelos elogios de Bolsonaro a Pinochet e à ditadura militar. O próprio presidente Piñera teve publicamente que tomar distância das declarações de Bolsonaro em apologia a Pinochet. Criou embaraços ao próprio governo chileno. É triste ter de admitir que o Brasil tem hoje um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital, talvez nem mesmo nessas que visitou.
Diante dessa avaliação que o sr. faz, não corremos o risco de estarmos construindo inimigos?
A visão do governo brasileiro atual distorce a realidade do Brasil e do mundo. Nessa visão fantasista e conspiratória de uma suposta ofensiva sinistra contra a “civilização judaico-cristã”, Bolsonaro e o chanceler Araújo atribuem a Trump um papel de defensor dos valores cristãos que nem o próprio presidente americano se atribui a si mesmo. É preciso ser cego pela ideologia ou ter muita ingenuidade para crer que um homem sem valores morais ou princípios ético como Trump possa ser o defensor de valores que viola a cada momento. Aliás, pode-se dizer em favor de Trump que ele mesmo nunca se apresenta como defensor da civilização cristã, mas sim, como afirma claramente, que defende acima de tudo o princípio do “America first”. Nós, em lugar de seguirmos o conselho de Trump de defendermos os interesses brasileiros, nos alinhamos automaticamente contra os adversários não nossos, mas do governo americano: China, Rússia, Irã, palestinos, muçulmanos em geral, aos quais antagonizamos sem motivo.
O prejuízo que podemos sofrer por isso não é apenas o de retaliações, como a decisão do governo do Egito de suspender a visita do ministro de indústria e comércio do governo Temer, logo depois das declarações de Bolsonaro sobre a mudança da embaixada. Ou a decisão da Arábia Saudita de descredenciar alguns frigoríficos brasileiros da lista de exportadores de carne de frango. É claro que isso também se deve ao fato de que a Arábia Saudita quer estimular a produção de frangos no próprio reino. Mas na hora de escolher qual o país que vai retirar do seu mercado, ela vai escolher quem? Um país que é amigo dos árabes ou aquele que hostiliza a crença dos árabes e muçulmanos sobre o caráter sagrado de Jerusalém?
Estamos fechando para nossas exportações o potencial comercial de boa parte do mundo e da parte mais dinâmica, ao invés de abrir. E além, dos mercados, também sacrificamos a boa vontade, a simpatia política. Na ONU, no Conselho dos Direitos Humanos de Genebra, voltamos a votar como votávamos no auge do governo militar, isolados na companhia de governos párias, como eram então a África do Sul do Apartheid, o Portugal salazarista, Israel e Estados Unidos.
(…)

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