sábado, 27 de julho de 2019

O “mérito” de Deltan: vaidade, ganância e o bom e velho patrimonialismo brasileiro

O “mérito” de Deltan: vaidade, ganância e o bom e velho patrimonialismo brasileiro
Arte e edição: André Zanardo

Por Felipe Araújo Castro
http://www.justificando.com/

A narrativa sobre sua infância é um típico relato da alta classe média; um núcleo familiar estável e bem estruturado, no qual ambos os pais possuem formação superior, com a presença de uma empregada doméstica e em uma casa grande o suficiente para contar com um jardim. 

Todos nós tendemos a racionalizar justificativas para nossas decisões e, principalmente, para as posições que ocupamos na sociedade. Somos encorajados e ensinados a enxergar o que temos e o que somos não como o resultado complexo da soma entre esforço pessoal e sorte, mas como fruto exclusivo de nosso “mérito”. Nessa equação social, o componente “sorte” se materializa numa série de condicionantes associadas ao nascimento; quero dizer, ninguém controla o local e as condições sobre as quais vem ao mundo – se nascemos ricos ou pobres, em um núcleo familiar estável e afetivo ou inseguro e violento, em meio a uma guerra civil ou num país com um forte sistema de seguridade social e níveis baixos de desigualdade etc. Condições essas que são tão importantes quanto, não raras vezes mais importantes, que os esforços individuais para determinação do nosso “sucesso na vida”.

Não existe sociedade, apenas o homem. No mundo de Margaret Thatcher a acumulação individual de capital é mais que recomendada; a concepção da vida admite. Nessa lógica, o indivíduo não deve contar com a sociedade e /ou o Estado para resolver seus problemas – não deve sequer historicizar ou questionar a origem destes –, antes, deve tratar a si mesmo como uma espécie de microempreendedor[1], consequentemente, tratando todos os demais como seus concorrentes. 

É apenas nessa luta cotidiana pela sobrevivência dos mais aptos que é possível obter “sucesso”, compreendido cada vez mais como acumulação de renda. Naturalmente, a questão subjetiva do quantum pode ser considerado “suficiente” ou “justo” abre as portas para indiferenciação entre uma adequada remuneração, tendo em conta o exercício de uma dada função em um dado contexto social, da simples ganância. Mas o mais importante é que o Mercado está aí para validar essa visão, ou seja, para recompensar os mais laboriosos e inventivos ao garantir-lhes o retorno justo pelos seus méritos. Portanto, na ideologia subjacente ao neoliberalismo, as imensas disparidades salariais e desigualdades sociais são explicadas não como condicionadas por variantes associadas à acumulação de capitais (econômico, cultural e social, atrelados a recortes de raça e gênero), mas sim como fruto exclusivo dos méritos individualmente considerados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário