FOTO: EVARISTO SÁ/AFP
Até João Doria, que já se apresentou como bolsodoria, repudia a aproximação eleitoreira ao lembrar o pai opositor da ditadura
O meu encontro com o Pinóquio de Walt Disney deu-se no fim de agosto de 1947, no Cine Broadway, Centro de São Paulo, quase na esquina cantada por Caetano Veloso. Nada tinha contra Mickey, Pato Donald, Tio Patinhas, Pluto, o Pateta e companhia, mas a americanização da personagem que havia encantado a minha infância me desagradou bastante. A Avenida São João me recebe de volta indiferente, nos seus rebuscados lampiões de catadura parisiense penduram-se gigantescos cartazes de Rita Hayworth no papel de Gilda, em exibição logo ali adiante, a uma centena de metros, no Cine Marabá. Nem isso bastou para me animar.
Eu estava à beira dos 13 anos, sabia apreciar, contudo, as curvas de Rita, sinistramente reforçadas, soube depois, por almofadinhas de plumas previamente depositadas em pontos tópicos da estrutura de Gilda. Pinóquio, obra de Carlo Collodi, é a mais bela e instrutiva fábula entre as que me marcaram nos anos verdes, algumas de Andersen, por exemplo, fábula tipicamente italiana, sem ogros, bruxas e florestas tenebrosas, talhadas figuras e selvas para assustar em vez de divertir.
Na semana passada, CartaCapital estampou na capa um Bolsonaro superdotado pelo nariz de Pinóquio por fazer da mentira uma tática de governo. Agora, ao meu Pinóquio peço perdão. Ao cabo do enredo desenrolado por Collodi, ele se redime das molecagens e da credulidade que o arrastou para malogradas aventuras e envereda pelo caminho de menino comum. O ex-capitão eleito pelos brasileiros é espantosamente incomum, vociferante exemplo de prepotência e ferocidade que alguém nas redes sociais compara a Hitler, este sim parecido em diversos aspectos.
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O episódio a colher o ex-capitão na segunda-feira 29 sentado na cadeira de uma barbearia enquanto corta os cabelos, ao vomitar seu desrespeito pela História e seus semelhantes, é o exemplo clamoroso da sua incapacidade nem digo de governar, e sim de viver em uma sociedade contemporânea do mundo. Da sua incompatibilidade com o cargo que muitos cidadãos, em demasia acabrunhadora, lhe deram.
As ofensas proferidas no tom de boss mafioso, para quem a cadeira de barbeiro assume a imponência de um trono, contra a memória do pai de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, desaparecido durante a ditadura quando estava engajado na resistência, e contra nós todos e o decoro presidencial, demonstram sem retoques o teorema: a demência brasileira começa por Bolsonaro. Nas redes sociais não foram poucos os internautas que se apressaram a aplaudir as invectivas presidenciais, ainda enquanto o chão da barbearia cobria-se de cabelos caídos como folhas outonais.
Até João Doria, governador de São Paulo que já se apresentou como bolsodoria, repudia a aproximação eleitoreira ao lembrar o pai opositor da ditadura. Ditadura? Existiu de fato, ou nasce do talento ficcionista dos comunistas? Estamos acostumados ao assalto às verdades factuais da História, à celebração de heróis como Caxias, principal responsável pelo genocídio paraguaio, e ilustres matadores de índios e escravos em fuga, sem contar que o cavalo de Pedro I foi um paciente muar. É a História desenrolada ao sabor de golpes de Estado de um país que aceita a arrogância de poucos e uma caterva de falsidades a bem de uma retórica primária justificada pela ignorância geral. Bolsonaro conseguiu superar tudo o que veio antes. E me acho novamente na calçada da Avenida São João, embora por lá já não encontre o Cine Broadway.
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