Para o sociólogo e educador espanhol, governo aposta em discurso de medo, exceção e ameaça para questionar as escolas públicas
O anúncio do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares apresentado pelo governo Bolsonaro no início do mês se apoia em duas narrativas principais: a de que, sob gestão dos militares, as escolas conseguirão resolver a questão da violência – motivo pelo qual o plano considera aplicar a militarização em territórios mais vulneráveis – e ainda produzir melhores resultados educacionais, a partir de mais regras e disciplinas no ambiente escolar.
As justificativas não convencem o sociólogo e educador espanhol Miguel Arroyo, que vê o modelo com preocupação. Para ele, há perguntas anteriores que devem ser feitas antes de substituir educadores e gestores educacionais por militares e levar a lógica da militarização a esses espaços. “Por que há violência nas escolas e qual ideal de educação temos?”, questiona.
Em entrevista a CartaCapital, o educador explica o modelo de escolas militarizadas como parte integrante de uma política vigente de “criminalização dos mais pobres”, que questiona as estruturas democráticas, sobretudo as escolas, a partir de um discurso de medo, exceção e ameaça.
CartaCapital: Como o senhor avalia a narrativa de que a militarização das escolas resolverá a questão da violência dos territórios mais vulneráveis?
Miguel Arroyo: Em relação à violência, eu destacaria o seguinte: quais escolas serão militarizadas? Não serão as privadas, mas as públicas, locais que recebem as infâncias populares das favelas, dos campos. Digo isso para que pensemos: que infâncias estão sendo pensadas como violentas? Estamos em um momento no qual se busca a criminalização das infâncias e adolescências populares, bem como dos movimentos sociais de luta por terra, teto, transporte, o que eu chamo de política criminalizante dos pobres. E isso me soa de uma brutalidade assustadora. Portanto, o que ao meu ver legitima a criação das escolas militarizadas é o discurso de que as infâncias são criminosas, mas não todas, só as populares, ou se criminaliza quem está na escolas privadas? Esse é um alerta político muito sério, mas que não acontece de agora.
Nós já vínhamos há uns dois, três anos, pressionando pelo rebaixamento da idade penal. E a ideia que sustenta essa tese é a mesma, a de que as infâncias e as adolescências são violentas. Então, em vez de entregá-las às escolas públicas, aos educadores e educadoras, se defendia encaminhá-las à justiça penal, um jeito de tirar esses estudantes da escola e colocá-los na prisão.
A novidade agora é que não vamos mais tirá-los das escolas, mas colocar as próprias unidades sob o controle da justiça penal, sob a lógica policial, militar, o que eu vejo com extrema gravidade. A ideia da militarização representa a condenação da infância e seu controle pela polícia. Preferem isso a colocar uma questão fundamental: por que há violência nas escolas?
Não são as infâncias que são violentas. Elas são sim violentadas pela sociedade, pela pobreza, pelas favelas, pelas desigualdades sociais, de raça, gênero e isso chega às escolas. Mas preferem ocultar isso, a olhar com seriedade. As infâncias são vítimas de violência e respondem da mesma maneira às violações que sofrem.
CC: Do ponto de vista da política educacional e do direito à educação, o que a militarização das escolas representa?
MA: Está se decretando a falência da escola pública e não só dela enquanto instituição, mas também dos educadores e dos gestores educacionais formados para atuar na área. Ao substituí-los por militares, damos um recado claro: vocês fracassaram. E isso é muito sério. A tentativa é de desconstruir toda a luta por uma educação pública de qualidade, tal como podemos ver com os ataques direcionado às universidades federais, às Ciências Humanas. Na visão dos conservadores, a escola pública foi longe demais e precisa ser combatida. E quando se destrói a ideia da escola pública, rui juntamente a ideia do Estado público, de direitos, de cidadanias. É uma radicalidade terrível.
Outra questão que destaco ainda sobre o direito à educação é a tentativa de validar a chamada educação familiar, no bojo da destruição do Estado. Veja, o que se diz é que quem deve educar é a família ou que, caso ela não tenha condições, que seja o Estado militar. Nesse contexto, a criança não é pensada como cidadã, como um sujeito de direitos que tem, entre eles, a garantia a uma educação pública de qualidade fornecida pelo Estado.
E essa lógica será perpetrada pela escola militarizada, porque lá as crianças não são cidadãs. O militar não é símbolo do Estado cidadão, mas da soberania da pátria, da regra, da disciplina, do controle, da ordem. Todo Estado militarizado é anti cidadania, ou seja, não se afirma enquanto símbolo dos direitos cidadãos.
CC: O senhor acredita que esse modelo, baseado em regras rígidas, pode impactar no desenvolvimento das crianças e adolescentes?
MA: Uma das formas das infâncias e adolescências se afirmarem é por meio de seus corpos. Eu costumo dizer que não temos corpos, somos corpos. Trazemos nele a marca do nosso tempo, o corpo é a marca de cada tempo, da identidade. O que eu quero dizer com isso é que quando o menino usa boné, ou quando meninos e meninas optam por usar adereços ou até por um tipo de corte de cabelo eles estão simbolizando suas identidades, os corpos passam a ser afirmação de identidade, entende? E aí vem a escola militar e diz: basta! Não existe cabelo, corpo, nada. Isso é terrível, porque não reconhece as mudanças e as lutas que se acumulam na infância, adolescência e juventude.
Até o século passado, tínhamos uma visão limitada sobre essas etapas da vida, agindo com crianças, adolescentes e jovens como se não tivessem direito à fala. A palavra infância, aliás, no seu sentido etimológico denota um sentido negativo, não-falante. A adolescência chamávamos de ‘aborrescência’ e a juventude era vista como uma fase preparatória para a vida adulta. Mas isso mudou radicalmente. Hoje a infância tem voz, a adolescência é o tempo da afirmação, da orientação sexual, das experiências que culminam, por exemplo, em tantos movimentos organizados pela juventude. E se estamos diante de novos tempos para esses indivíduos, a educação também deve ser outra. Ao tentar destruir identidades de corpos, raça, gênero, se destrói a identidade humana e isso não é pedagógico.
CC: Ainda assim, há famílias que endossam o modelo da militarização, justamente por acreditarem na solução da violência. Como o senhor vê esse movimento?
MA: Essa alternativa é validada à medida em que se cria e se fortalece a política de estado de medo, exceção e ameaça. Imagine só uma mãe que precisa trabalhar e deixar o filho na escola, claro que ela vai querer segurança. A questão é que se criou um clima de que a escola não dá conta de seu papel e isso é totalmente intencional e político, faz com que essas mulheres não confiem mais nas escolas e cedam à proposta da militarização. Veja, o caminho democrático é sempre melhor, mas quando se cria a ideia de que na democracia não há segurança, acabamos flertando com as regras, com as posturas ditatoriais e isso também chega às escolas.
CC: Outro ponto defendido pelo governo é a possibilidade das escolas militarizadas produzirem melhores resultados. Qual a análise do senhor?
MA: Quais resultados? As escolas militares têm bons resultados para formar militares, mas não são os melhores exemplos para formar cidadãos com valores de democracia, de igualdade, valores políticos. Eu me formei em uma escola militar na Espanha, na época do general Francisco Franco, e eu não aprendi nada disso, mas sim a marchar, bater continência, a ter meu corpo militarizado. Essa é a boa educação que queremos? Temos que nos colocar essa pergunta. Os resultados serão bons de acordo com o que temos como ideal, entende? E o que vejo é uma luta por uma educação para a cidadania, pautada em valores, em respeito aos outros, fraterna e participativa.
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