sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Adolf Eichmann: um “cidadão de bem” do seu tempo

Adolf Eichmann: um “cidadão de bem” do seu tempo
Arte: Gabriel Pedroza / Justificando

Por Raique Lucas de Jesus Correia e Marta Gama

Era 11 de Abril de 1961, quando Adolf Eichmann, após ser capturado na Argentina, enfim foi levado a julgamento por crimes praticados contra o povo judeu. Ao contrário do que as circunstâncias poderiam fazer acreditar, sentava-se no banco dos réus, um homem pacífico, comum, nada “assustador”, a bem da verdade, um homem de muitas “virtudes”.

Despido dos “estereótipos”, Eichmann não era o que a promotoria e, de certa maneira, toda opinião pública esperavam, nem mesmo o que ele próprio imaginava ser, pois sua vida pautada em várias tentativas de se tornar uma pessoa importante no governo nazista, foi tão frustrada quanto os esforços dos seus acusadores em colocá-lo como um dos arquitetos da Solução Final, ao extremo de enquadrá-lo como um antissemita pior ou tão pior quanto Hitler. 

Eichmann não era um monstro ou alguém movido pelos ideais mais diabólicos, surpreendentemente, qualquer um que o conhecesse, não enxergaria nada além de um homem absolutamente monótono e “normal”, como a maioria das pessoas são, sem qualquer traço de maldade, ou qualquer característica que pudesse induzir a imagem de um sujeito cruel e perverso. Pessoalmente, escreve Hannah Arendt, “ele não tinha nada contra os judeus; ao contrário, ele tinha ‘razões pessoais’ para não ir contra os judeus”[1], conta-se, inclusive, de um relacionamento amoroso que ele havia tido com uma mulher judia antes de todo o horror do regime nazista.

Como se pode ver, estamos diante de um sujeito totalmente estranho daqueles julgados em Nuremberg, não se tratava de alguém do alto escalão, como Göring ou Kaltenbrunner, muito menos, um antissemita radical, Eichmann estava mais para o que sobrou do nazismo, do que para sua real encarnação. Nem burro, nem doutrinado, uma pessoa em perfeito estado mental, Eichmann é um daqueles casos que desafiam a lógica; como seria possível admitir que uma pessoa como Eichmann pudesse ser capaz de promover a morte e o sofrimento de centenas de milhares de pessoas?

Para esta pergunta, não há uma resposta óbvia, completa ou absoluta, o que há – e o que de fato nos interessa – são pistas de um fenômeno maior, de um dilema moral profundo e que talvez nunca se esgote, sobretudo, se imaginarmos que Eichmann não foi o único nestas condições, ele não era uma exceção dentro do Reich — a propósito, naquele cenário só se podia esperar que os “anormais” agissem dentro da “normalidade”. Estamos, portanto, diante de uma espécie de “mal” sem sua face diabólica, um “mal” que não se pode enxergar tão claramente quanto se pôde ver luminoso em Hitler e, por essa razão, um “mal” que é mais devastador que todos os outros tipos juntos. 

De fato, não encontraremos em Eichmann o “mal explícito” ou uma personalidade sádica, contudo, isso não o torna menos assustador, ao contrário, só mostra como o “mal” é multiforme e, por isso, dispensa sua face demoníaca. Neste sentido, a “banalidade do mal”, em seu aspecto mais autêntico, nada mais é do que uma falta de consciência sobre os próprios atos, a tal ponto do “mal” torna-se imperceptível, algo natural e, inclusive, exigível. Não à toa, milhares de alemães — muitos dos quais assim como Eichmann, sem ódio aos judeus ou qualquer predisposição a perversidade, em outros termos: “cidadãos de bem” —, tornaram-se os mais sanguinários algozes do último século.

Respeitador das leis, defensor da família e dos bons costumes, contrário a corrupção, defensor vigoroso da pátria e com notável gosto pelo trabalho, Eichmann é a imagem perfeita de um eleitor do Bolsonaro, com a única diferença de que na sua época ainda não existia o WhatsApp e, claro, a bandeira da Alemanha não é verde e amarela. Salvo esses detalhes menores, Eichmann representa com maestria o que é ser um “cidadão de bem” e as consequências de se adotar uma postura como esta. 

Como um bom funcionário, Eichmann era implacável no cumprimento de suas funções, a ponto de “[…] embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado”[2] e, por isso, “só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam”[3]. Como um bom pai de família, “sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, ‘não [era] apenas normal, mas inteiramente desejável”[4]. Como um bom cidadão, quem haveria de negar, a rigor, seu exacerbado patriotismo, a ponto de permitir a morte de milhares de judeus por amor a sua nação. E, finalmente, enquanto muitos daqueles que ficaram conhecidos como “ala moderada” do partido nazista, já no período de decadência do Reich, inclusive, Himmler, apoiavam a venda de judeus, mesmo sabendo que esta não era a ordem da “Solução Final” ainda em curso, Eichmann quando tomou conhecimento destas práticas, não cedeu à corrupção, indignado, manteve-se firme até o último momento a Hitler e sua lei.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12