segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Terrorismo, Bozo, Lula e um sentimento de haver perdido nada, por Armando Coelho Neto

Era isso, e agora, em novo momento, a leitura do mundo era outra, já que cenas nebulosas do passado ganharam significado, o suficiente para entender o choro de Marias e Clarices.

            Por ARMANDO COELHO
            https://jornalggn.com.br/
Escher

Terrorismo, Bozo, Lula e um sentimento de haver perdido nada

por Armando Rodrigues Coelho Neto

Escrevo a propósito de uma sobrinha de apenas dez anos que me trouxe um trabalho escolar: entrevistar alguém que viveu no tempo da ditadura. Não sei bem a que se presta um trabalho dessa natureza. Seria um professor ousado tentando fazer com que seus alunos diante da lição do passado possam entender o presente e planejar o futuro? Ou seria uma trama da tal “Escola Sem Partido”, absolutamente partidarizada, querendo mapear quem conhece quem, quem tem o pé na esquerda ou semente dela? Sem resposta, aceitei ser entrevistado com perguntas capciosas, verbalizadas em suave inocência.

Ela me perguntou sobre notícias que circulavam à época da ditadura. Disse àquela sobrinha, que o que sei não li, nem ouvi na rádio. Eu tinha apenas treze anos, num bairro de periferia de Recife. Lembro de pessoas queimando livros e folhetos na rua. Lembro que os homens que organizavam a cooperativa que vendia produtos mais baratos aos pobres, passaram a ser perseguidos e mal vistos. Mas, eram eles que iluminavam nossa sede de lúdico – com as festas de Carnaval, São João, Pastoril no Natal, soltavam fogos no Ano Novo.

Tempo!

Um daqueles organizadores passou um tempão escondido dentro de um bueiro, embaixo de uma barraca do irmão que consertava sapatos. Depois, fugiu para uma horta, onde ficara escondido – nem sei como, pois todo o bairro sabia. Finalmente preso, recordo as romarias de vizinhos para visitar o tal “Seu Oswaldo”. Não sei quanto tempo isso durou, nem quando entrou ou saiu da prisão. Mas lembro que dias após sair da prisão, ele faleceu. A esposa na rua em trajes precários, com mãos para o céu, pedia clemência a Deus, enquanto o filho dizia: os militares mataram meu pai. Nada disso ouvi nas rádios e não saiu nos jornais.
Eu vi e assisti… Até atingir a compreensão do que me viria tempos depois.

Tempo!

A expressão “fake news” não existia, mas um padre holandês da paróquia do bairro, onde vivi, encarregou-se de dizer que comunistas iriam cortar a cabeça das pessoas e pendurar nos postes. Não passou muito tempo, um outro padre de outra paróquia, Antônio Henrique, foi assassinado e seu corpo foi abandonado a menos de 300 metros de minha casa. Tinha marcas de tortura, estava queimado com pontas de cigarro, com as quais escreveram nele a sigla CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Hoje, no local onde foi abandonado, não há sequer placa alusiva ao fato. No terreno contíguo, foi edificada uma escola militar.

Pausa!

Tempos depois, estudando na Faculdade de Direito, colegas foram sequestrados na unidade do Exército que ficava ao lado. Presos, só sabiam que estavam ao lado da faculdade, por causa do inconfundível som do carrilhão que anunciava a hora e denunciava o lugar. Não fora isso, não saberiam onde estavam, depois de rodar a cidade com olhos vendados.

Terrorismo!

Era isso, e agora, em novo momento, a leitura do mundo era outra, já que cenas nebulosas do passado ganharam significado, o suficiente para entender o choro de Marias e Clarices. O país trôpego e claudicante viveu o alastramento da chaga da fome, do desemprego e do retrocesso social absoluto.

Tempo!

Entrou em cena um projeto popular liderado pelo ex-Presidente Lula. Milhões de brasileiros saíram da miséria absoluta num país que deixou a 13ª economia para se tornar a 6ª. Dos US$ 38 bilhões de reservas do início de gestão, chegou a ultrapassar a casa dos US$ 276 bilhões, valorizando o salário mínimo, sob invejáveis índices de desemprego na casa dos 4,8% (quase pleno emprego). Ao mesmo tempo, deu início à inclusão social de negros, índios e múltiplas vertentes sociais, melhorou o serviço público com recursos materiais e humanos.

O país conheceu a transparência absoluta na gestão das finanças públicas, até acontecer o pior: pobres passaram a circular em açougues, restaurantes e aeroportos… Imperdoável para as elites!

Reação!

Entrou em cena o ódio, o preconceito, a arrogância, a subversão do ordenamento jurídico e um surto de insanidade, de falso moralismo. A ideia de Estado como avanço mínimo do processo civilizatório e promotor do bem comum caiu em desuso. É como se um bando de primatas, retidos até então nas trevas dos tempos, tivessem saído ensandecidos para atacar a civilização. O terror que vi e temi na infância passou a ser enaltecido. Ustra, um dos maiores torturadores da história nacional, serviu de senha para derrubar uma Presidenta, para depois acabar com a democracia mediante fraude eleitoral e implantar o marasmo.

Abre parêntesis!

Eis que gentes, partes de nosso acervo sentimental, que por instantes soaram humanizadas, que por algum tempo encantaram nosso imaginário, iluminando nossas almas, revelaram-se pobres de espírito. Gentes que passaram a compor o imaginário da Dor Civil, junto com o barulho de helicópteros agourando do alto a Democracia na Av. Paulista e na praia de Copacabana. Buzinas de caminhões zoando como telefonemas aterrorizantes nos porões do terror salazarista. Tudo isso… Todo o imaginário que lhe cerca cai como sal na ferida da Dor Civil.

Famílias e amizades destruídas, restou ao humanismo a difícil tarefa de abandonar suas bolhas, dar elasticidade ao perdão e tentar entender o sentimento primata dos que apoiam a barbárie.

Fecha parêntesis!

Eis o sentimento que Lula, um dos maiores Líderes da história nacional, tenta disseminar ao de sua saída da prisão de prisioneiro político, após um sequestro político-judicial. É possível que sob a perspectiva política, a postura do Gênio da Raça seja decisão racional e estratégica. Mas, do ponto de vista pessoal, a guerra ao Bozo e tudo o quanto ele representa deixou em muitos a Dor Civil, o amargo sentimento coletivo de haver perdido tudo. Pessoalmente, Nada! Absolutamente Nada! Por serem aquelas pessoas desprovidas de um sentimento que me é essencial: a empatia para com a dor da miséria, o flagelo da injustiça social na Terra.
Mas… Não sei bem como explicar tudo isso à minha sobrinha. Quem sabe, dizer terem sido tempos difíceis, coisa e tal, mergulhar na magia dizendo: “Era uma vez um dragão furioso que tentou destruir uma princesa engajada numa amorosa luta-lúdica e libertária, que enquanto flor, renasceria a cada Primavera…”

Beijo do

Tio Armando.

Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário