https://www.resistir.info/

O marxismo nos ensina que toda totalidade é composta por elementos diferentes e portanto entre eles há contradições. Mesmo quando o todo é conceptualizado como uma totalidade, deve haver uma consciência implícita destas contradições. Esta cautela não deveria ser esquecida quando estudamos a economia política de regimes autoritários ou fascistas.
Os marxistas desde há muito vêem tais regimes como baseados no sólido apoio do capital monopolista; isto de facto é crucial para a sua tomada do poder. O renomado economista marxista Michal Kalecki, por exemplo, via os regimes fascistas europeus da década de 1930 como repousando sobre uma "parceria de grandes empresas com arrivistas fascistas". Em troca do apoio que estende a tais regimes, o capital monopolista extrai o seu quinhão na forma de enormes contratos, concessões e portanto lucros. Se bem que todos os segmentos do capital monopolista se beneficiem imensamente com tais regimes fascistas, semi-fascistas e autoritários, nem todos se beneficiam igualmente. No interior do big business há alguns – tipicamente determinados novos grupos monopolistas – que são especialmente favorecidos por tais regimes, um fenómeno que também tem recebido muita atenção em análises marxistas.
O escritor francês de esquerda Daniel Guerin, no seu livro Fascism and Big Business (1936), distinguira os antigos grupos monopolistas cuja base repousava em indústrias tradicionais como têxteis dos novos grupos monopolistas mais interessados na indústria pesada e nos armamentos, os quais tinham uma ligação particularmente estreita com os regimes fascistas na Europa. No caso do Japão, igualmente, faz-se uma distinção entre os antigos zaibatsu e os novos (chamados shinko zaibatsu ). Os antigos zaibatsu (ou casas monopolistas) como Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo e Yasuda, abrangiam um vasto conjunto de actividades, mas estas eram dominadas pelos sectores tradicionais. Os shinko zaibatsu, dentre os quais era proeminente a Nissan, estava, em contraste, voltados para actividades mais recentes como a indústria pesada, armamentos e extracção mineral no estrangeiro. A Nissan estava envolvida na mineração em grande escala na Coreia utilizando mão-de-obra local sob condições de trabalho atrozes a fim de alimentar a máquina de guerra do Japão pobre em minerais. Não é preciso dizer que os shinko zaibatsu estavam muito mais próximos do regime militarista japonês da década de 1930.
Também na Índia foi avançada a hipótese de que a tendência em direcção ao autoritarismo, exibida por Indira Gandhi durante a Emergência, estava ligada a um fenómeno semelhante: o surgimento de um elemento mais novo dentro do capital monopolista que era mais agressivo em comparação com o seu homólogo tradicional.
Estas percepções devem ser lembradas ao analisar a presente situação do país. O facto de o regime de Modi ter chegado ao poder, tanto em 2014 como em 2019, graças ao apoio corporativo recebido é óbvio. De facto, a própria ideia de projectar Modi como um futuro primeiro-ministro surgiu em algum momento antes de 2014, numa "cimeira de investidores", com a presença dos principais líderes corporativos do país, realizada em Gujarat, onde Modi era o ministro-chefe. O papel do apoio corporativo na ascensão de Modi pode ser avaliado a partir de um simples facto: de acordo com uma ONG sediada em Delhi, o [partido] BJP gastou 270 mil milhões de rupias [3,41 mil milhões de euros] nas eleições parlamentares de 2019, muito acima do que qualquer outro partido burguês conseguiu, muito menos a esquerda. Isso significou aproximadamente 500 milhões de rupias por círculo eleitoral parlamentar. É impossível financiar despesas nessa escala a menos que se tenha um financiamento corporativo generoso.
Portanto, seria bastante apropriado considerar o regime actual como baseado numa aliança corporativa-comunal – e as corporações saíram-se bem desta aliança. É verdade que a economia está encravada numa crise que parece não ter fim sob o regime Modi. Mas a crise, não devemos esquecer, é sistémica, reflectindo o facto de que o neoliberalismo chegou a um beco sem saída. Dentro desta crise, no entanto, o regime de Modi tem sido bastante pródigo ao colocar lucros, bem como activos do sector público a preços de saldo, nas mãos do capital monopolista. De facto, a única preocupação que ele tem em meio desta crise é em como ajudar seus amigos no sector corporativo. E isso tem sido feito através de reduções fiscais maciças (no valor de Rs 1,5 mil milhões) sob o pretexto de estimular seus "espíritos animais"!
Evidentemente, não haverá recuperação da crise em consequência da sua generosidade com as corporações. De facto, se a receita perdida resultar num corte na despesa pública ou em maiores impostos sobre os trabalhadores para manutenção da despesa pública, a crise só poderá ser agravada. Mas, mesmo que a crise se agravasse em consequência desta generosidade, as corporações ainda assim teriam sido ganhadoras líquidas com a mesma.
Um exemplo numérico esclarecerá esse ponto e lançará luz acerca da intenção real do governo. Suponha que o governo, tendo efectuado cortes de Rs1,5 mil milhões nos impostos corporativos reduza as suas próprias despesas num valor equivalente, isto é, Rs1,5 mil milhões. Vamos ignorar as complicações do comércio exterior assumindo aqui uma economia fechada. E vamos assumir que o rendimento do sector corporativo seja um quarto do PIB, do qual ele poupa um terço. E dos três quartos do PIB que vão para o resto da economia, um terço é mais uma vez poupado. Então, o rácio geral poupanças-PIB na economia é de um terço. Com as despesas do governo cortadas em Rs1,5 mil milhões, o PIB cairá em Rs4.5 mil milhões (porque o valor do multiplicador é a recíproca da taxa de poupança, que resulta em 3). A queda no rendimento corporativo antes dos impostos será de um quarto de Rs4,5 mil milhões, que é aproximadamente Rs1,1 mil milhões; mas o rendimento corporativo após impostos teria aumentado em Rs400 mil milhões. Portanto, mesmo se a concessão fiscal do governo às corporações reduzisse seus gastos de modo equivalente e, dessa forma, reduzisse o rendimento das empresas antes de impostos, a concessão fiscal ainda assim significaria um aumento do rendimento das corporações após os impostos, apesar de agravar a crise e o desemprego.
As medidas do governo, em suma, são destinadas não tanto a aliviar a crise e sim a garantir que, mesmo durante a crise, os lucros das corporações continuem a aumentar. Mas, embora as medidas do governo beneficiem as corporações como um todo, entre as corporações há uma preocupação especial para com algumas que são equivalentes aos nossos próprios shinko zaibatsu; são elas os estabelecimentos novos e agressivos que promovem esse regime.
Dentro do sector corporativo, em suma, há uma distinção que se pode traçar, entre estes novos estabelecimentos – dentre os quais destacam-se as duas empresas Ambani e as Adanis, as quais são as favoritas especiais da munificência de Modi e que obtêm uma parte substancial dos benefícios graças ao compadrio – e os demais que também são beneficiários do regime Modi, mas não na mesma medida que o primeiro grupo. A ideia de dois grupos dentro da burguesia corporativa, os tradicionais e os novos e agressivos, com o segundo grupo sendo particularmente integrado de modo estreito ao governo autoritário parece ter uma certa validade no actual contexto indiano.
A ascensão dos Adanis à proeminência em Gujarat esteve intimamente ligada ao mandato de Narendra Modi como ministro-chefe do estado, e com Modi chegando ao plano nacional, os Adanis também se moveram para o centro do palco. A proximidade entre os dois é destacada pelo facto de em 2014 Modi se ter empossado como primeiro-ministro no avião de Adani. Da mesma forma, a firma de Anil Ambani foi favorecida, apesar de ter pouca experiência, em relação à HAL (Hindustan Aeronautics Limited) do sector público no acordo do [caça] Rafale, o que certamente constitui o exemplo mais claro possível de compadrio que se possa imaginar. Analogamente, a BSNL, empresa [de telecomunicações] do sector público está a ser deitada abaixo a fim de criar, segundo a opinião geral, um monopólio para a Jio de Mukesh Ambani. Em resumo, estes são os estabelecimentos especialmente favorecidos.
A conceptualização da oligarquia corporativo-financeira como uma totalidade não deveria impedir de vermos também as diferenças e, portanto, as contradições que existem nisto. As críticas abertas [do bilionário] Rahul Bajaj ao governo numa reunião de negócios em que Amit Shah estava presente, o que lhe valeu a ira de numerosos trolls do BJP, deve ser visto neste contexto. O regime fascista indiano está portanto a mostrar as mesmas características que tais regimes sempre apresentaram na história.
02/Fevereiro/2020
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0202_pd/layers-within-corporate-financial-oligarchy . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12