sábado, 11 de abril de 2020

Bolsonaro, o coronavírus e o funcionamento do poder central no Brasil, por Flavio Goldberg e Murilo Naves Amaral

O ódio e a intolerância alicerçada no discurso presidencial, expõe, sobretudo, a decadência de uma nação que já não diferencia posições políticas de posições institucionais.

Por Jornal GGN
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Bolsonaro, o coronavírus e o funcionamento do poder central no Brasil

por Flavio Goldberg e Murilo Naves Amaral

Historicamente, o funcionamento das estruturas de poder no Brasil se constituiu a partir de uma premissa baseada na sustentação do poder central pelos poderes regionais, de modo que, a manutenção ou a destituição do chefe de governo e de Estado, sempre foi dependente de sua habilidade em lidar com as demandas provenientes dos poderes locais. 

Tal contexto, foi o que permitiu a manutenção da unidade territorial brasileira, a medida em que as revoltas regionais eram apaziguadas com violência, ao mesmo tempo, em que se buscava uma pacificação mediante o agrado das elites das unidades federativas, para que assim, o poder central pudesse se alicerçar em uma estrutura pela qual todos se beneficiavam. 

Por outro lado, quando o poder central deixava de atender as elites regionais responsáveis pela sua sustentação, os representantes dessas elites, muitas vezes se juntando a interesses internacionais, passavam a conspirar pela derrubada do chefe de Estado, de forma a estabelecer uma nova liderança que pudesse manter as mesmas premissas de privilégios e garantias em favor desses grupos. 

Ressalta-se, que essa realidade se trata de algo que é possível de ser verificada desde o Império, quando, por exemplo, houve a abolição da escravatura. Nesse caso, a medida em que o poder central contrariou os interesses regionais, que buscavam manter a escravidão, abriu-se a possibilidade de um golpe de Estado que culminou na proclamação da república em 1889.

Com a queda do imperador e a instituição da república dos oligarcas, a estrutura de poder do país passou a ser conduzida pela chamada política café com leite, em que dois grupos regionais, baseados nas elites de São Paulo e Minas Gerais, passaram a liderar os grupos locais na sustentação do governo central. Nesse período se tem também a instituição da chamada política dos governadores durante a presidência de Campos Sales e o fortalecimento da elite coronelista da região Nordeste, que se tornaram cruciais para a estruturação do poder central, que em troca, garantia a manutenção das velhas práticas de exercício do controle local. 

Com o advento de Getúlio Vargas ao poder, em 1930 e o fim da chamada república velha, a perpetuação de tal lógica encontra-se presente, de modo que somente após a derrota dos paulistas na fracassada tentativa de contragolpe ao poder central em 1932 (que muitos ainda insistem em chamar de revolução constitucionalista), é que Getúlio se consolidou no presidência e conseguiu acalmar os ânimos dos poderes regionais, o que foi crucial para o exercício de suas funções enquanto governante. 

Observa-se, que com a redemocratização de 1946, e até mesmo com o golpe de Estado de 1964, a premissa de sustentação do poder central nos poderes regionais não se alterou, tendo mudado, talvez, a forma com o que isso se organizava, mas sem modificar a essência de que o chefe do Executivo somente se mantinha se as elites locais lhe dessem suporte. A própria manutenção do Congresso Nacional durante a ditadura, para além de buscar uma aparência democrática, já que a democracia real não existia, era uma linha de comunicação com as estruturas regionais de poder. 

Após a ditadura militar e o processo de redemocratização pactuada que culminou no advento da Constituição de 1988, os presidentes eleitos sempre respeitaram essa estruturação de poder, buscando distribuir funções governamentais que agradassem e atendessem os mais variados grupos das elites regionais. Assim é o que se verifica desde o governo Sarney até o governo Temer, incluindo-se a presidências de Fernando Henrique Cardoso e Lula. 

A importância dessa forma de condução governamental se exibe de forma evidente, ao se analisar, por exemplo, a própria queda da presidenta Dilma Rousseff, que ao se mostrar incapaz de impedir os avanços da operação Lava Jato, cujos interesses subterrâneos que a conduziu serão melhores estudados no futuro, acabou minando a possibilidade dela própria de rearticular seu governo e impedir o impeachment, que foi instaurado de forma bastante controversa. Vale lembrar, que a operação Lava Jato, praticamente, estabeleceu um cerco em relação a todos os grupos ligados a partidos políticos aliados do então governo, de modo que, tais aliados eram exatamente os representantes dos grupos regionais, que são imprescindíveis para a sustentação do poder central. Quando viram que Dilma Rousseff estava incapacitada em agir, acabaram por derrubá-la por meio de um impeachment, que se baseou em uma infração menor de natureza contábil, sem que o crime de responsabilidade fosse claramente apontado. 

No caso de Jair Bolsonaro essa premissa estruturante de poder ainda se encontra em vigor, o que se mostra como algo a ser observado, pois, a medida que a crise da pandemia global do coronavírus avança no país, avançam também os desgastes entre os governos locais representados pelos governadores e o comando central na figura do presidente. Observa-se, que o contexto atual retrata uma situação que, caso venha a se agravar e seguir a lógica histórica do país, poderá resultar na queda do presidente Bolsonaro. Isso porque, com a progressão da pandemia do coronavírus e a insistência do presidente da república em aplicar medidas contrárias a ciência e a razão, o isolamento do chefe do executivo se torna cada dia mais claro, inclusive em relação a setores militares que o apoiaram. 

Sem a sustentação dos poderes regionais, Bolsonaro não terá condições de continuar na presidência, abrindo-se espaço para a reorganização da política tradicional, que nunca deveria ter sido condenada como foi, ou, caso contrário, para a volta e consolidação dos militares ao poder, situação esta, que seria preocupante. 

Ocorre que, Bolsonaro jamais será capaz de visualizar tal contexto. Mesmo porque, falta-lhe dimensão intelectual de análise, para, como parece desejar, conseguir se perpetuar no poder. Se teve de fato, como muitas vezes aparentou, o interesse de implementar um regime autoritário, Bolsonaro, para nossa sorte, perdeu a chance, pois nada mais vantajoso no tocante àqueles que possuem sentimentos antidemocráticos do que aproveitar de uma pandemia para tal fim, como por exemplo, vem acontecendo na Hungria com Viktor Orbán. Por outro lado, se os seus rompantes autoritários são apenas fachada, para agradar a parcela fanática do seu eleitorado, Bolsonaro também não estaria atuando de forma inteligente, pois, as instituições vão acabar barrando suas intenções, reduzindo seus poderes até que o resultado disso, seja a sua destituição. 

Cabe destacar, que a eleição de Jair Bolsonaro, não se deu por situações que poderíamos chamar de circunstâncias típicas, mas sim em decorrência de fatores atípicos, que se estabeleceram após o clima criado no país em razão da aliança de setores da mídia com um grupo obscuro de autoridades de Curitiba, pela qual, com argumentos simplistas de um embuste justificado por um certo “combate à corrupção”, propagou-se um discurso de ódio à política e, principalmente, aos partidos de esquerda. Ao criminalizarem a política, estavam abrindo as portas para posições extremistas, que, na exaltação da ditadura militar, saudava torturadores, assassinos e tudo aquilo que representasse o aniquilamento de ideais que não fossem compatíveis com a enfermidade do ódio. Sendo fruto dessa circunstância, a eleição de Jair Bolsonaro se concretizou quase que naturalmente, com eleitores que passaram a manifestar todo o ódio que se encontrava enrustido na sociedade, ao mesmo tempo que se mostravam ávidos por soluções mágicas na economia, ainda que o candidato vencedor não tivesse qualquer proposta sólida. 

Como decorrência desse contexto, Bolsonaro, que nunca se destacou como parlamentar ou membro das Forças Armadas, após ser eleito, continuou atuando, com uma coerência monstruosa, no âmbito da política rasteira, focada em práticas eleitoreiras e na disputa com possíveis adversários, que passam a ser tratados como inimigos. Por esse motivo, Bolsonaro nunca conseguirá ter uma visão de Estado, e muito menos de estadista. Falta a sua pessoa, capacidade intelectual e cognitiva para entender os meandros que envolvem as grandes questões da nação. Juntamente com isso, falta-lhe capacidade de compreender o país e, consequentemente, as jogadas de poder. 

Tendo caído quase que por acidente na presidência da república, após transformação do país em um verdadeiro programa policial, com a temática única de combate a corrupção, de forma a estimular um antipetismo doentio, Bolsonaro ainda se comporta como aquilo que sempre foi, ou seja, membro do baixo clero da política. Por essa razão, dificilmente, com o avanço da crise pandêmica, haverá mudanças em seu comportamento, o que resultará no agravamento da situação que será estendida aos aspectos políticos, mediante, conforme já vem ocorrendo, a perda daquilo que é essencial na manutenção da unidade do país, que é o alicerçamento do poder central no apoio das elites regionais. 

Como resultado de todo esse processo, a presidência de Jair Bolsonaro se mostra ameaçada, tendo em vista que não consegue atender as demandas que surgem em razão dos problemas que se apresentam. Mesmo porque, com a pandemia do novo coronavírus, (ou melhor dizendo, do COVID-19) e as sequelas que naturalmente se verificam, como aquelas provenientes dos prejuízos de ordem econômica e de natureza psicológica, além, claro, daquilo que é incomparavelmente mais grave, que são os danos oriundos das perdas de vidas humanas, os que hoje batem panela, enfurecidos com as leviandades que são propagadas no discurso presidencial e com a falta de propostas robustas para a sociedade, talvez, nesse momento, uma parcela deles possa ver, o que de fato representa o desmerecimento do cargo mais importante do país, ao elegerem um sujeito tão despreparado para conduzir a nação.

Mais trágico do que a tragédia do coronavírus, foi a necessidade de uma pandemia, para que muitos pudessem enxergar, que não se brinca com o futuro de um país, acreditando-se em falsos “messias” ou salvadores da pátria. Ironicamente, a pandemia atual, pode ser a forma com que a sociedade descubra a cura da doença anterior causada pelo ódio sem limites, que já estava alastrada, de forma mais intensa e disseminada do que o vírus que vem preocupando a todos. Pode-se dizer, que com o coronavírus, a tragédia chega ao seu extremo, e isso ocorre, mesmo antes da doença se manifestar nas favelas ou em relação aos moradores de rua, que ao contrário das celebridades e da classe média alta, não poderão ficar em casa fazendo vídeos e contando experiências. 

Jair Bolsonaro não é a causa da doença social passível de ser diagnosticada pela racionalidade e o bom senso, contudo, é, talvez, seu sintoma mais grave, e por essa razão, o ódio e a intolerância alicerçada no discurso presidencial, expõe, sobretudo, a decadência de uma nação, que já não tem a intenção de ser liderada por estadistas, que já não diferencia posições políticas de posições institucionais, e que por esse motivo, permitiu que um grupo contrário ao contrato social pudesse ascender ao poder e assim pregar tudo aquilo que elimina a possibilidade de um cenário democrático, onde prospera a exposição de ideias divergentes. A conclusão disso, é que nos encontramos em uma situação extremamente séria, pois, diante das circunstâncias, a figura simbólica de Bolsonaro se transformou em um dano maior do que ele próprio no exercício da presidência, de modo que sua queda, que se tornou uma possibilidade real, poderá implicar na solução de inúmeros problemas, mas ao mesmo tempo, poderá significar, a inauguração de uma era que será desencadeada em graves distúrbios sociais e institucionais. 

Está ponderação convida à posições que respeitem a Constituição evitando conflitos capazes de ameaçar a integridade nacional e por outro lado garantindo os princípios democráticos e os direitos humanos.

Flavio Goldberg, advogado e mestre em Direito.
Murilo Naves Amaral, advogado e professor de cursos de graduação e pós-graduação em Direito.

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