Segundo Jung, toda religião é “uma existência ou efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário”. Ou seja: ela é uma atitude livre do espírito
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Jejum, oração e canalhices presidenciais covardes
Por Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)
Na vultosa obra Psicologia da religião ocidental e oriental, o psicanalista Jung explicou que toda religião é “uma existência ou efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário”. Em outros termos, por ser uma experiência também inconsciente da condição humana, a religião, qual seja ela, é uma atitude livre do espírito humano.
Daí a riqueza e a beleza das expressões religiosas. Cada uma emanaria a centelha inexplicável de ligação com a própria vida. Eis a necessidade também de se respeitar cada dimensão religiosa em sua plena liberdade, pois a fé singular é um encontro livre com a sua própria crença, com a expressão múltipla da força simbólica e dos desejos envolvidos naquilo que se crê e se pratica.
A religião se reduz, contudo, a ato arbitrário ao ultrapassar o limite espontâneo da experiência humana ligada ao simbólico. Assim, quando o cristianismo se transformou em religião oficial de Roma, com Constantino, também se fixou como forma de poder dominante de governamento, distanciando-se da experiência autêntica dos fiéis. O mesmo pode ser dito quando a Inquisição começou deliberadamente a perseguir, a julgar e a matar quem fosse pretensa ameaça à religião oficial.
Não foi diferente com Calvino expulsando de Genebra quem não aderisse ao presbiterianismo no século XVI. De igual modo ocorreu com a matança dos povos autóctones nos processos de colonização – povos destituídos de alma, como se dogmatizava – necessitados de conversão à marra; o mesmo diapasão valeu para os povos africanos escravizados com suas crenças e experiências religiosas idiossincrásicas, quase sempre consideradas diabólicas no caldo dos preconceitos dominantes.
No Brasil atual, vemos um presidente impondo o jejum e a oração como formas de combate à pandemia do Cov-Sars-2. Seria nobre, se não fosse um ato de cretinice covarde. Cretinice porque fez de tal convocação uma imposição ignorante contra o que é real: a ameaça concreta à vida de milhares de brasileiros, destituídos de amparo social e cuidados básicos de saúde.
Cretinice, pois ao necessitar de exames clínicos, cuidados médicos e intervenções cirúrgicas, o Presidente se dirige aos melhores hospitais e profissionais do Brasil, e não jejua e ora apenas, como deveria fazer. Nesse caso, aliás, a sua fé é faca cega. Cretinice porque manipula a possível fé autêntica de alguns em nome de sua incompetência e de seu delírio face às obrigações elementares que ele deveria executar como chefe de Estado.
O pior, no entanto, é que tal cretinice é covarde. Covarde porque coloca na linha de frente os mais humildes e desprotegidos de recursos quaisquer. Covarde porque faz do aparelho do Estado não uma engrenagem para ações concretas, mas simbólicas. É preciso lembrar que aos famintos Cristo multiplicou os pães e os peixes, não os mandou embora dizendo: “orem e tudo se resolverá”.
Covarde pois o Brasil é um país com pobreza estrutural, cujas pessoas não comem fartamente, ainda mais agora na precarização imposta como modo normal de vida. Covarde porque faz da religião um escudo contra o atestado de seu fracasso absoluto em governar, sem saber o que fazer, quando fazer e por que fazer.
Manipulada dessa forma, a religião se reduz a uma milícia, já que defende exclusivamente os interesses de alguns de modo impositivo, passando por cima de infindas necessidades de outros.
No tema do jejum e da oração, no entanto, uma coisa, o presidente ignorou. “Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? – diz o Senhor Deus: é romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, e quebrar toda espécie de jugo. É repartir seu alimento com o faminto, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu semelhante.” Podem conferir: está na Bíblia, no livro do profeta Isaías, capítulo 58, versículos 6 e 7.
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