Gravura de Goya retrata violências napoleônicas na Espanha do início do século XIX, mas comparativo com o Brasil de Bolsonaro é inevitável
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Tampoco (1810-1814), gravura de Francisco de Goya
Diarreia, vômito e visão turva: sintomas do presidente cloroquinado
Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)
As gravuras produzidas por Goya retratando as violências napoleônicas na Espanha do início do século XIX revelam: banalização da violência, fascínio perverso dos poderosos pela dor do outro e exposição espetacular da morte como acentuação da perda de dignidade.
Tampoco é um desses testemunhos. Com este título vago, Goya mostrou um soldado mercenário polaco, dos muitos que integravam a tropa do então líder supremo, contemplando placidamente um soldado enforcado. As calças arriadas do morto escangaram o apetite pelo horror e o aviltamento da barbárie, como se algo nos dissesse: nenhuma brutalidade comove o paladar do poder que normaliza a morte do outro. Afinal, matar é inevitável em alguns tempos e deixar morrer também, portanto, que se usufrua do espetáculo.
O soldado de Tampoco bem que poderia ser Bolsonaro; o enforcado, por sua vez, um representante dos brasileiros. É que na pandemia, o presidente apenas contempla os mortos; ignora a violência mortífera de milhares de vidas; sente-se confortável, de onde se encontra, apenas degustando o macabro desenrolar dos acontecimentos. Nada o comove; nada o demove com relação ao flerte com a morte. Além disso, diante da dor dos outros, na acepção de Susan Sontag, ele ritualiza o seu poder apenas para afirmar suas convicções delirantes e autoconvencidas. Como soldado bárbaro, ele é apenas um consumidor da violência como espetáculo, ridicularizando os esforços daqueles que lutam contra a morte.
A vacância constante de liderança no Ministério da Saúde revela a sua redução a uma corda de cadafalso: a função do Ministério, assim, passa a ser deixar morrer e não zelar pela vida. Nenhum Ministro, com efeito, será capaz de se antepor ao soldado da morte; todo Ministro da Saúde terá de se render ao abuso autoritário e ao fascínio insensível pela morte. Por isso mesmo essa insistência no uso da cloroquina contra o Covid-19.
Na bula de tal remédio encontram-se inúmeros efeitos colaterais, sendo absolutamente comum: diarreia, vômito e visão turva, dentre outros. Nesse caso, isso não importa ao atual governo, pois ele não dissocia sua fala de vômito, seus atos de uma diarreia e sua política de uma visão turva. O que ele sabe mesmo é contemplar a morte e normalizá-la “no tocante a isso aí”.
A ignorância em um poder absoluto redobra as maldades consequentes do próprio poder absoluto, pois despreza, inclusive, a ciência. A nota técnica da Fiocruz orientando o uso da Cloroquina para tratamento de Covid-19 é enfática: “É necessário gerar evidências sobre a segurança e a eficácia da cloroquina para tratar pacientes infectados com o SARS-CoV-2, agente etiológico da Covid-19. A dose diária de cloroquina deve ser inferior a 25 mg/kg, pois uma única dose de 30 mg/kg pode ser fatal. O medicamento deve ser administrado sob estrita supervisão médica em ensaios clínicos e por um tempo curto”.
(https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/orientacoes_sobre_a_cloroquina_nota_tecnica_.pdf. Grifos meus.)
Como se vê, pequeno desvio na dose da cloroquina mata. É óbvio que a cloroquina não é medicamento para ser usado como se fosse chá de hortelã ou de panaceia. Se não tivéssemos um governo ignorante, vil e insensível à dor de seus cidadãos, seguiria a ciência e também deixaria incensar a morte como fato banal. Mas esse governo já começou cloroquinado. Antes mesmo da pandemia dava sinais patológicos com diarreia, vômito e visão turva. Por isso foi na direção de suprimir regras e equipamentos de segurança no trânsito; de ignorar a vida dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, com suas idiossincrasias existenciais; de instigar a letalidade nos agentes policiais, notadamente para pobres e negros da periferia urbana; de instigar a violência da milícia armada no campo e na cidade; de precarizar as proteções dos direitos dos trabalhadores; de suprimir o programa Mais Médicos etc.
O problema agora, entretanto, é que o governo tomou gosto pela contemplação de cadáveres. Ainda que, por ora, não estejamos na pilha dos mortos, uma coisa é fato: as nossas calças estão arriadas e somos expostos à violência de seu autoritarismo ignorante. Não à toa, a função demandada para o Ministério da Saúde pelo líder supremo, como ele gosta de se enxergar – coisa do efeito colateral da visão turva – não será diferente dessa: deixar morrer e contemplar a morte. E semelhante ao cenário de Tampoco, o contraste que se estabelece entre a vida e a morte se reduz ao lugar onde o poder se instala, de modo conveniente, apenas para olhar o cenário mortificante de um horror programado.
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