
(Claudius)
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Passados 25 anos, agora na contramão dos neoliberais de todo o mundo, o atual governo brasileiro continua com os mesmos propósitos de destruir o Estado e os mecanismos de regulação pública. Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a intenção é privatizar todas as estatais.
Na segunda metade dos anos 1990, o Brasil se destacou no cenário internacional ao implementar um dos maiores programas de privatização dos serviços públicos do mundo. O governo de Fernando Henrique Cardoso, com o Programa Nacional de Desestatização, passava para as mãos do setor privado, além de bancos e estatais nas áreas de mineração, siderurgia e petroquímica, a gestão das telecomunicações, da eletricidade, de ferrovias, portos e rodovias, abrindo espaço também para privatizações na área do saneamento básico e da distribuição de gás.
Para tornar atrativa para o setor privado a exploração desses serviços públicos, o governo reajustou as tarifas antes das privatizações. As agências reguladoras desses serviços, a partir de então, viram-se controladas por representantes do setor privado.1 Os monopólios e cartéis empresariais passaram a ditar os preços.
A pressão empresarial, nacional e internacional, fez o Estado se retirar das atividades econômicas e deixar esse espaço para as empresas privadas. O interesse público foi substituído pelo interesse privado, que transformou bens públicos comuns em mercadorias. E, como o objetivo dessas empresas é a maximização de seus lucros, os preços aumentaram continuamente e os serviços se deterioraram. Afinal, os lucros são distribuídos para os acionistas e não são reinvestidos na melhoria dos serviços.
Passados 25 anos, agora na contramão dos neoliberais de todo o mundo, o atual governo brasileiro continua com os mesmos propósitos de destruir o Estado e os mecanismos de regulação pública. Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a intenção é privatizar todas as estatais.
Acontece que não só as privatizações não trouxeram os benefícios esperados de redução de custos e melhoria da gestão e dos serviços, como também agora as empresas concessionárias estão buscando socorro junto ao Estado, pois seu modelo de negócios está em colapso com a pandemia. O sistema de pagamento por tarifas, pelo usuário, está em xeque. O sistema público de transporte, já fortemente subsidiado pelo Estado, é expressão desse colapso.
Depois de 25 anos de gestão privada da água por um duopólio, por decisão legislativa, em 2010, a Prefeitura de Paris retomou a administração direta da água. As razões para a retomada do serviço público: os preços subiram de forma continuada durante o período e a qualidade do serviço deteriorou-se. A conclusão anunciada pelos legisladores é de que os interesses das empresas privadas são incompatíveis com a prestação de um serviço público.
Desde o início do século XXI há um forte movimento de remunicipalização de serviços públicos na Alemanha, na França, na Inglaterra, no Canadá e em municípios dos Estados Unidos. Em 265 municípios, os governos locais remunicipalizaram a gestão da água nos últimos vinte anos, algo que envolve cerca de 100 milhões de pessoas.2
“Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa no setor privado, a remunicipalização da água leva à melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de água, bem como a preços mais baixos, o que pode ser observado em casos tão diversos como os de Paris (França), Arenys de Munt (Espanha) e Almaty (Kazakhstan). Em alguns casos os novos operadores públicos também aumentaram dramaticamente o investimento nos sistemas de água, como é o caso de Grenoble (França), Buenos Aires (Argentina) e Arenys de Munt (Espanha)”.3
A revalorização do papel do Estado como provedor de serviços públicos está no centro desse processo de construção de novos bens comuns. Água, moradia, saúde, educação, transporte, segurança alimentar, serviço social são direitos humanos e precisam ser garantidos para todos. Tornam-se, por essa razão, políticas públicas de cobertura universal, isto é, com garantia de acesso para todos. Estamos na fronteira de criação/recuperação de bens comuns.
O colapso do modelo baseado na cobrança da tarifa abre espaço para a reestatização desses serviços, para que sejam financiados pelos impostos e se tornem de uso universal e gratuito, ou seja, se tornem bens comuns. É a reforma tributária cobrando mais impostos e evitando a sonegação das empresas e dos mais ricos que garante esse novo modelo.
Para que adquiram essa qualidade de bens comuns, as políticas públicas que se orientam para atender a essas demandas não podem ser fruto apenas do saber técnico. Elas precisam da participação dos coletivos que na sociedade civil representam esses interesses. Elas precisam da voz do usuário, do beneficiário. Impõe-se a democratização da gestão dessas políticas.
Com a remunicipalização da gestão da água, Paris criou um conselho com a participação de usuários, trabalhadores em saneamento, cientistas e representantes públicos, uma inovação democratizadora que abre uma nova relação do governo com a cidadania.
No Brasil, para nossa desgraça, temos um governo federal que continua a defender, mesmo em plena pandemia, as políticas de austeridade. Na contramão das principais correntes do neoliberalismo, que acabam de reconhecer a importância do Estado e do investimento público para tirar o país do atoleiro, o Ministério da Economia quer continuar as reformas de privação de direitos e privatizações para destruir o Estado, ceder o patrimônio público aos interesses privados e reduzir os custos das empresas com a mão de obra. Interesse público? Zero.
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Armando Castelar Pinheiro e Kiichiro Fukasaku, “A privatização no Brasil: o caso dos serviços de utilidade pública”, OCDE/BNDES, 1999.
2 Júlia Dias Carneiro, “Enquanto Rio privatiza, por que Paris, Berlim e outras 265 cidades reestatizam saneamento?”, BBC Brasil, 23 jun. 2017.
3 Sandoval Alves Rocha, “A remunicipalização dos serviços de água e esgoto é uma tendência global”, 7 fev. 2020. Disponível em: https://amazonasatual.com.br/a-remunicipalizacao-dos-servicos-de-agua-e-esgoto-e-uma-tendencia-global/.
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