Relato é da FinCen, o Coaf dos EUA | Alerta cita acusações de lavagem | Informação do Tesouro é de 2016 | Eucatex e Maluf não comentaram / Caso faz parte investigação do ICIJ
Sérgio Lima/Poder360 - 10.out.2017
Paulo Maluf enquanto deputado federal; teve mandato cassado por decisão do STFSérgio Lima/Poder360 - 10.out.2017
Paulo Maluf nasceu em berço de ouro e foi criado como 1 príncipe árabe. Aos 18 anos, ganhou 1 Porsche vermelho conversível de presente dos pais quando entrou no curso de engenharia da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo). Era 1950.
Quando queria mostrar que era multimilionário, ia para a escola com o carro da mãe: 1 Rolls-Royce que havia sido comprado junto com o carro presidencial que Getúlio Vargas importou em 1953. Maria Maluf tinha 1 dos 4 Rolls-Royce que existiam no Brasil.
Enquanto a fortuna materna era composta de mais de 5.000 imóveis, a paterna tivera origem num novo negócio: uma serraria moderna, que já nos anos 1960 se tornaria a maior da América Latina, a Eucatex.
Maluf foi condenado por lavagem de dinheiro. Vive em prisão domiciliar e está com a saúde debilitada.
As condenações do ex-prefeito agora resvalam na galinha dos ovos de ouro dos Malufs: a Eucatex. A empresa foi apontada por 1 banco norte-americano como suspeita de envolvimento em operações de lavagem de dinheiro.
A empresa que deu origem à Eucatex, nos anos 1950 reprodução – site de relação com investidores da Eucatex
Documentos sigilosos do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos mostram que o Standard Chartered Bank, de Nova York, considerou suspeitas operações que somam US$ 264,4 milhões, o equivalente a R$ 1,4 bilhão em valores correntes. As 946 movimentações suspeitas ocorreram de agosto de 2009 a agosto de 2016, de acordo com documento produzido por 1 braço do Tesouro chamado Rede de Combate aos Crimes Financeiros.
“Informações de domínio público indicam que a Eucatex lavou recursos obtidos por Paulo Maluf por meio de desvios e corrupção quando era prefeito e governador de São Paulo”, diz o texto em seu primeiro parágrafo. Os norte-americanos têm interesse em apurar a legalidade das operações da empresa porque ela tem uma filial nos Estados Unidos e usa bancos daquele país.
A documentação à qual o Poder360 teve acesso foi obtida pelo BuzzFeed News nos Estados Unidos e compartilhada pelo ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists, ou Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), por meio do projeto chamado FinCen Files (Arquivos FinCen), a sigla em inglês de Financial Crimes Enforcement Network, seção dentro do Departamento do Tesouro dos EUA (o Tesouro norte-americano é equivalente ao Ministério da Economia no Brasil).
Criada em 1990, a FinCen é uma espécie de Pentágono que atua contra lavagem de dinheiro, terrorismo e outros tipos de crimes financeiros. No Brasil, o organismo equivalente seria o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), só que a FinCen tem muito mais poder.
O ICIJ é uma instituição jornalística sem fins lucrativos baseada em Washington D.C. que revelou grandes escândalos internacionais como o Panama Papers e o SwissLeaks. O projeto FinCen Files envolve mais de 400 jornalistas de 88 países e 110 meios de comunicação. Analisou operações como valor total pouco acima de US$ 2 trilhões. No Brasil, a investigação ficou sob responsabilidade de 3 veículos de comunicação: este jornal digital Poder360, a revista Piauí e a revista Época (do grupo Globo).
O Poder360 é parceiro do ICIJ por meio do diretor de Redação, Fernando Rodrigues, que é integrante do consórcio há 20 anos.
A Eucatex entrou no radar das autoridades norte-americanas por causa das condenações de Maluf por lavagem de dinheiro e desvio de recursos públicos quando foi prefeito de São Paulo, de 1993 a 1996, segundo o documento da FinCen.
A documentação norte-americana fala na condenação de Maluf no uso da Eucatex para receber dinheiro desviado, e frisa que, no caso atual das suspeitas sobre a empresa, o ex-prefeito não tem qualquer envolvimento.
“Maluf não pode ser diretamente vinculado a essas transações observadas”, afirma o documento de 11 páginas, datado de 3 de outubro de 2016.
Os papéis encaminhados ao Tesouro norte-americano pelo banco de Nova York são chamados de SARs (Suspicious Activity Report, ou Relatório de Atividades Suspeitas). Sempre que 1 banco, corretora, companhia de seguro ou cassino, entre outras atividades, depara-se com uma movimentação que considera suspeita, precisa encaminhar 1 relatório com as dúvidas para as autoridades do FinCen. No caso de suspeita de lavagem, o alerta precisa ser enviado com transações a partir de US$ 5.000.
Só em 2019, houve 12.148 instituições financeiras enviando 2.751.694 comunicados com suspeitas ao Departamento de Tesouro. O relatório pode ser o marco zero de uma investigação criminal ou de caráter cível. Há, entretanto, dúvidas sobre como evoluiu o alerta de 2016 usado nesta reportagem e que representava risco para a Eucatex. Como muitas empresas fazem acordos sigilosos com o governo para fugir das pesadas punições, não dá para concluir que a empresa da família Maluf ainda esteja sob investigação nos EUA.
O documento afirma que, além da condenação de Maluf, há 2 fatores negativos relacionados à Eucatex: o bloqueio de recursos da empresa em 2013, no valor de R$ 520 milhões, e as dúvidas sobre quem fez o depósito e quem é o real beneficiário dos recursos que passaram pelas contas da empresa em bancos norte-americanos ou de paraísos fiscais que têm negócios com as instituições financeiras dos Estados Unidos.
A empresa já foi acusada de receber US$ 172 milhões que foram desviados pelo ex-prefeito. O dinheiro desviado teria retornado à companhia por meio de compra de ações por fundos de investimentos. Até hoje as autoridades não sabem quem são os reais controladores desses fundos que investiram na Eucatex.
Em 2013, a Justiça determinou o bloqueio de R$ 520 milhões em ações da empresa (íntegra da decisão – 520 KB), o equivalente ao valor desviado que teria voltado para a empresa. O montante continua bloqueado e servirá, eventualmente, para indenizar a prefeitura paulistana pelos desvios.
As transações consideradas suspeitas, segundo a documentação, ocorreram logo em seguida ao bloqueio das ações da Eucatex, quando havia a suspeita de que a família Maluf estava retirando recursos da empresa para criar outra composição acionária para o negócio.
Segundo o Ministério Público de São Paulo, era uma estratégia para livrar a Eucatex de punições. A companhia negou que a mudança serviria para escapar da Justiça e disse que o objetivo era ingressar numa área da Bolsa de Valores chamada novo mercado, que tem padrões de controle mais elevados. Até hoje a Eucatex continua fora do novo mercado.
O relatório mostra ainda o uso pela Eucatex de bancos nas Bahamas, “uma jurisdição de alto risco em relação a corrupção, crimes financeiros e lavagem de dinheiro”.
A Eucatex não tem contas no Standard Chartered Bank, mas recursos da empresa circularam por bancos do Caribe que são correspondentes da instituição financeira de Nova York.
O Standard Chartered emitiu o alerta sobre a Eucatex porque ele pode ser punido se 1 banco correspondente movimentar recursos ilícitos.
A empresa afirmou o seguinte em nota ao Poder360: “A Eucatex informa que nunca trabalhou com o Banco Standard Chartered, citado na pauta, e que tampouco movimentou as quantias referidas pelas chamadas ‘empresas de papel’”.
A reportagem informou que jamais havia dito que a Eucatex tinha trabalhado com esse banco e questionou se a empresa não teria interesse em enviar informações ou comentários adicionais aos questionamentos que tinham sido feitos. A Eucatex respondeu que não.
A assessoria de Maluf também não quis comentar as suspeitas sobre a Eucatex. O ex-prefeito sempre negou que tivesse desviado recursos da prefeitura. Repetia 1 dos motes que o tornaria famoso: “Maluf não tem e nunca teve conta no exterior”. A sentença judicial que marcou o começo de sua derrocada, nas Ilhas Jersey, diz que ele teve, sim.
Maluf é o ponto de partida da suspeita. O documento do Tesouro dos EUA afirma que o Standard Chartered Bank encaminhou 1 relatório com as dúvidas sobre a legalidade das movimentações da Eucatex por causa do “envolvimento [da empresa] em 1 escândalo associado com Maluf”.
O gatilho da suspeita foi a condenação do ex-prefeito em Nova York, em março de 2016. Ele recebeu a pena de 3 anos de prisão por lavagem de dinheiro e o uso de bancos e instituições financeiras norte-americanas para movimentar os recursos.
No ano passado, o filho mais velho de Maluf, Flavio, presidente da Eucatex, recebeu a pena de 8 anos e 4 meses de prisão da Justiça brasileira por ter usado 1 banco norte-americano, o Safra National Bank de Nova York, para transferir dinheiro.
No curso desse processo em Nova York, Maluf tentou enganar 1 procurador norte-americano: disse que poderia pagar uma multa de até US$ 17 milhões para encerrar o processo. Conseguiu autorização para passar o Réveillon na Itália e nunca mais voltou a falar com as autoridades daquele país sobre acordo.
Por conta desse episódio, Maluf foi parar na lista de procurados da Interpol em 2010 e só saiu em 2016. Nesse período, o ex-prefeito seria preso e deportado para os EUA se deixasse o Brasil.
As autoridades norte-americanas começaram a investigar Maluf em 8 de março de 2007, por uma decisão de promotores de Nova York (o jornal New York Times relatou o fato). A Procuradoria de Nova York recebeu documentos do Brasil, por meio de cooperação internacional, segundo os quais bancos norte-americanos ajudaram a movimentar US$ 11,6 milhões desviados de duas obras da Prefeitura de São Paulo: a construção do túnel Ayrton Senna e a ampliação da Avenida Água Espraiada, depois rebatizada de Jornalista Roberto Marinho.
O mecanismo de cooperação internacional permite que as autoridades brasileiras compartilhem documentos com as norte-americanas com o objetivo de que os Estados Unidos ajudem no processo brasileiro e também julguem Maluf pelo fato de ele ter usado bancos estrangeiros para circular dinheiro de origem suspeita.
O procurador Robert Morgenthau, uma estrela de grandes casos de Nova York, criticou o que chamou de “conservadorismo da Justiça” porque só uma fração das movimentações foi levada em conta no processo judicial. Segundo o procurador, havia provas de que ao menos US$ 140 milhões desviados pelo ex-prefeito circularam por bancos norte-americanos.
O Ministério Público de São Paulo, que começou a apuração sobre Maluf em 2001 depois de alertas enviados pela Suíça, tem uma conta muito mais alta dos desvios atribuídos ao ex-prefeito: cerca de US$ 400 milhões.
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