Documentos secretos do governo americano mostram como cinco bancos multinacionais ignoraram alertas e movimentaram dois trilhões de dólares de clientes investigados por crimes de todo tipo durante anos
CONSÓRCIO INTERNACIONAL DE JORNALISTAS INVESTIGATIVOS
Ilustração: Alicia Tatone/BuzzFeed News
Esta reportagem integra o FinCEN Files, projeto conduzido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ. Com base em documentos secretos da FinCEN (Financial Crime Enforcement Network), agência do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, a investigação de dezesseis meses desvenda fluxos de dinheiro ilícito pelo mundo. O trabalho reuniu mais de quatrocentos jornalistas do ICIJ e mais 109 veículos de 88 países. No Brasil, participam do projeto piauí, Época e Poder360.
Documentos secretos do governo dos Estados Unidos analisados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) revelam que cinco bancos multinacionais movimentaram 2 trilhões de dólares em operações sinalizadas como suspeitas pelos organismos de controle das próprias instituições financeiras. A suspeição era de que as operações servissem para lavagem de dinheiro ou que os recursos fossem provenientes de atividade criminosa. Os documentos vazados, batizados de FinCEN Files, incluem mais de 2.100 relatórios de atividades suspeitas enviados por bancos e outras empresas financeiras à Rede de Execução de Crimes Financeiros do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. A agência, conhecida como FinCEN, é uma unidade de inteligência do sistema global de combate à lavagem de dinheiro. O equivalente no Brasil é o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf.
A análise do ICIJ se deteve sobre transações realizadas entre 1999 e 2017 – incluindo 514 bilhões de dólares que passaram pelo JPMorgan e 1,3 trilhão de dólares movimentados pelo Deutsche Bank. Também foram analisadas transações do HSBC, Standard Chartered Bank e Bank of New York Mellon. Embora os relatórios de atividades suspeitas reflitam as preocupações dos auditores dos bancos e não sejam obrigatoriamente evidência de conduta criminosa, os documentos mostram que os cinco bancos seguiram lucrando com a movimentação dos recursos mesmo após terem sido multados pelas autoridades dos EUA por falharem em conter o fluxo de dinheiro suspeito.
O BuzzFeed News obteve os documentos sigilosos e os compartilhou com o ICIJ. Eles se referem a clientes de bancos em mais de 170 países. Por isso, o ICIJ coordenou uma rede de mais de 400 jornalistas de 110 organizações noticiosas em 88 países para investigar os registros sobre operações suspeitas. No Brasil, participam do projeto a piauí, Época e Poder360. Reportagens sobre clientes brasileiros ou ligados ao Brasil que tiveram suas movimentações marcadas como suspeitas pelos auditores dos bancos são publicadas hoje e nos próximos dias pelos três veículos.
Os FinCEN Files mostram que o JPMorgan – maior banco com sede nos Estados Unidos – movimentou mais de 1 bilhão de dólares para o financista fugitivo que protagonizou o escândalo do fundo de investimento estatal 1MDB da Malásia. Também passaram pelo JPMorgan mais de 2 milhões de dólares destinados à empresa de um jovem magnata acusado de enganar o governo venezuelano e ajudar a causar apagões elétricos em grandes áreas da Venezuela. Ainda segundo os documentos analisados pelo ICIJ, o JPMorgan também processou mais de US$ 50 milhões em pagamentos ao longo de uma década para Paul Manafort, o ex-diretor da campanha eleitoral do presidente Donald Trump condenado à prisão por fraude bancária e fiscal.
Em resposta a esta reportagem, o JPMorgan declarou que está legalmente proibido de falar sobre clientes ou transações. A instituição disse que assumiu um “papel de liderança” na busca de “investigações proativas lideradas por inteligência” e no desenvolvimento de “técnicas inovadoras para ajudar a combater o crime financeiro”.
A FinCEN e seu controlador, o Departamento do Tesouro, não responderam a uma série de perguntas enviadas no mês passado pelo ICIJ e seus parceiros. A FinCEN disse ao BuzzFeed News que não comenta a “existência ou inexistência” de relatórios de atividades suspeitas específicas, também conhecidos como “SARs” (sigla em inglês para “suspicious activity reports”). Dias antes da divulgação da investigação pelo ICIJ e seus parceiros, a FinCEN anunciou que estava buscando maneiras de melhorar o sistema dos Estados Unidos contra lavagem de dinheiro.
Os FinCEN Files representam menos de 0,02% dos mais de 12 milhões de relatórios de atividades suspeitas que as instituições financeiras protocolaram junto à FinCEN entre 2011 e 2017. Além de analisar os FinCEN Files, a rede do ICIJ obteve mais de 17,6 mil outros registros de fontes internas e denunciantes, arquivos judiciais, solicitações pelas leis de acesso às informações públicas e outras fontes. A equipe entrevistou centenas de pessoas, incluindo especialistas em crimes financeiros, policiais e vítimas de crimes. De acordo com o BuzzFeed News, alguns registros vazados foram solicitados como parte das investigações do Congresso dos Estados Unidos sobre a interferência russa nas eleições presidenciais americanas de 2016. Outros foram obtidos pela FinCEN após pedidos de órgãos judiciais, segundo o BuzzFeed.
As autoridades dos Estados Unidos, que desempenham um papel de liderança na batalha global contra a lavagem de dinheiro, ordenaram que grandes bancos reformulassem suas práticas, aplicaram multas de bilhões de dólares e fizeram ameaças de acusações criminais contra eles. Mas essas táticas não funcionaram. Grandes bancos continuam desempenhando papel central na movimentação de dinheiro ligado a corrupção, fraude, crime organizado e terrorismo.
“Ao falhar totalmente em evitar transações corruptas em grande escala, as instituições financeiras abandonaram seu papel de linha de frente contra a lavagem de dinheiro”, disse ao ICIJ Paul Pelletier, ex-oficial sênior do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e promotor de crimes financeiros.
Ele afirmou que os bancos sabem que “operam em um sistema amplamente ineficaz”.
Em 2012, o HSBC, maior banco da Europa e que tem sede em Londres, assinou com autoridades dos Estados Unidos um acordo de suspensão da acusação e admitiu ter lavado pelo menos 881 milhões de dólares para cartéis de drogas latino-americanos. Os narcotraficantes usavam recipientes que cabiam nas aberturas dos caixas automáticos do HSBC para despejar enormes quantias de dinheiro obtido com a venda de drogas e movimentá-lo pelo sistema financeiro. Pelo acordo com a promotoria, o HSBC pagou 1,9 bilhão de dólares. Em contrapartida, o governo concordou em suspender as acusações criminais contra o banco e arquivá-las após cinco anos se o HSBC cumprisse a promessa de combater o fluxo de dinheiro sujo.
Durante esse período probatório de cinco anos, conforme mostram os FinCEN Files, o HSBC continuou a movimentar dinheiro para personagens questionáveis, incluindo suspeitos de lavagem de dinheiro russos e um esquema de pirâmide investigado em vários países. Ainda assim, o governo permitiu que o HSBC anunciasse em dezembro de 2017 que havia “cumprido todos os seus compromissos” sob o acordo – e que os promotores estavam descartando em definitivo as acusações criminais.
Em uma declaração ao ICIJ, o HSBC se recusou a responder a perguntas sobre clientes ou transações específicas. O HSBC disse que as informações do ICIJ são “históricas e anteriores” ao fim de seu acordo de cinco anos no processo adiado. Durante esse tempo, segundo o banco, ele “embarcou em uma jornada de vários anos para revisar sua capacidade de combate ao crime financeiro… O HSBC é uma instituição muito mais segura do que era em 2012”. O HSBC observou que, ao decidir liberar o banco da ameaça de acusações criminais, o governo americano teve acesso a relatórios de um monitor que revisou as reformas e práticas do banco.
O Departamento de Justiça se recusou a responder a perguntas específicas. Em nota, um porta-voz da divisão criminal do departamento disse: “O Departamento de Justiça defende seu trabalho e continua comprometido a investigar e processar crimes financeiros de forma agressiva – incluindo lavagem de dinheiro – onde quer que os encontremos”.
“Todo mundo está agindo errado”
Odinheiro lavado é, frequentemente, movimentado entre contas de obscuras empresas de fachada registradas em paraísos fiscais. A análise do ICIJ descobriu que os bancos citados nos FinCEN Files processavam regularmente transações para empresas registradas em países que mantêm sob sigilo o verdadeiro proprietário da conta. Os titulares de contas corporativas geralmente fornecem endereços no Reino Unido, Estados Unidos, Chipre, Hong Kong, Emirados Árabes Unidos, Rússia e Suíça. Pelo menos 20% dos relatórios continham um cliente com endereço nas Ilhas Virgens Britânicas.
A análise do ICIJ constatou que na metade dos relatórios os bancos não tinham informações sobre uma ou mais entidades por trás das transações. Em mais de 680 relatórios nos FinCEN Files, as instituições financeiras pediram mais informações sobre as entidades, e em mais de 160 ocasiões outros bancos não responderam. Alguns bancos ou filiais em países como a Suíça citaram leis de sigilo em suas jurisdições para negar as informações.
Estimativas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime indicam que 2,4 trilhões de dólares em fundos ilícitos são lavados a cada ano – o equivalente a quase 2,7% de todos os bens e serviços produzidos anualmente no mundo. Mas a agência estima que as autoridades detectam menos de 1% do dinheiro sujo no mundo.
“Todo mundo está agindo mal“, reconheceu David Lewis em entrevista ao ICIJ. Ele é secretário-executivo da Força-Tarefa de Ação Financeira – uma parceria de governos de todo o mundo, com sede em Paris, que define critérios contra a lavagem de dinheiro. Os relatórios da organização, que investiga como os bancos e agências governamentais cumprem as leis de combate à lavagem de dinheiro, mostram pouco progresso. Muitos países parecem mais preocupados em ter boa aparência no papel do que realmente reprimir a lavagem de dinheiro, disse Lewis.
Bombardeio em Jerusalém
Para algumas instituições financeiras, como o Standard Chartered, o cliente problemático não é um indivíduo, mas outro banco.
Em uma manhã de 2003, Steven Averbach estava no ônibus número 6 em Jerusalém, quando um homem correu e embarcou no ônibus que partia. “Havia muitas coisas estranhas” no homem, lembrou Averbach, que cresceu em Nova Jersey (EUA), mas migrou para Israel quando adolescente. O homem vestia calças pretas compridas, camisa branca e paletó preto, o traje típico de um judeu ortodoxo, mas usava “sapatos de bico fino” que não combinavam com a indumentária da seita ortodoxa, e seu paletó estava saliente. Em sua mão direita havia um dispositivo que parecia uma campainha de porta.
Averbach, que já tinha servido como instrutor-chefe de armas da polícia de Jerusalém, sacou sua arma. Mas quando o ex-policial se virou para encarar o homem “ele se detonou”, afirmou Averbach em um depoimento em vídeo. A explosão matou sete pessoas e feriu outras 20, deixando Averbach paralisado do pescoço para baixo. Ele morreu em 2010 devido às sequelas dos graves ferimentos.
Nessa época, Averbach e sua família haviam se tornado querelantes em um processo nos Estados Unidos, acusando uma instituição financeira jordaniana, o Arab Bank, de movimentar fundos que ajudaram a financiar terroristas envolvidos no atentado ao ônibus e outros ataques. Os FinCEN Files mostram que, à medida que o litígio lançava uma sombra sobre o Arab Bank, ele se beneficiava de uma relação funcional com um banco muito maior e mais influente: o Standard Chartered.
Com sede no Reino Unido, o Standard Chartered ajudou os clientes do Arab Bank a acessarem o sistema financeiro norte-americano depois que os reguladores encontraram deficiências nos controles de lavagem de dinheiro do Arab Bank em 2005 e o forçaram a limitar suas transferências de dinheiro nos Estados Unidos. O Standard Chartered continuou seu relacionamento com o Arab Bank enquanto o processo contra o banco jordaniano corria nos tribunais dos Estados Unidos e mesmo depois que as autoridades notificaram o banco britânico de que ele deveria interromper o processamento de transações para clientes suspeitos.
Autoridades de Nova York concluíram em 2012 que o Standard Chartered havia “tramado com o governo do Irã” durante quase uma década para movimentar 250 bilhões de dólares em transações secretas, arrecadando “centenas de milhões de dólares em taxas” e deixando “o sistema financeiro dos Estados Unidos vulnerável a terroristas e traficantes de armas, chefões do tráfico e regimes corruptos”. Esse padrão de conduta custou ao Standard Chartered quase 670 milhões de dólares em penalidades no segundo semestre de 2012, como parte de dois acordos de suspensão da ação penal e outros acordos com autoridades de Nova York e dos Estados Unidos.
Apesar de suas promessas de evitar clientes suspeitos, o Standard Chartered processou 24 milhões de dólares em 2.055 transações para clientes do Arab Bank entre setembro de 2013 e setembro de 2014, mostram os FinCEN Files. No final de setembro de 2014, o Standard Chartered teve mais um motivo para se afastar do Arab Bank. Na ação judicial decorrente do atentado a bomba no ônibus em Jerusalém em 2003 e de outros ataques, um júri do Brooklyn (Nova York) considerou o Arab Bank responsável por apoiar conscientemente o terrorismo ao transferir dinheiro disfarçado de doações de caridade em benefício do Hamas, o grupo militante palestino que os Estados Unidos classificam como organização terrorista. Mas isso não bastou para o Standard Chartered pôr fim a seus negócios com o Arab Bank.
O Standard Chartered transferiu quase US$ 12 milhões para clientes do Arab Bank após o veredicto condenatório. Isso durou até fevereiro de 2016, de acordo com um relatório de acompanhamento de atividades suspeitas incluído nos FinCEN Files. Relatório do próprio banco observou que “atividades ilícitas” estavam potencialmente sendo financiadas “sob o disfarce de caridade”. O veredicto civil contra o Arab Bank foi anulado quando um tribunal de apelações encontrou falhas nas instruções do juiz ao júri. O Arab Bank então fez um acordo com quase 600 vítimas e parentes de vítimas por um valor não revelado.
Em um comunicado, o Arab Bank disse ao ICIJ que “abomina o terrorismo e não apoia nem incentiva atividades terroristas”. O banco disse que as acusações contra ele datam de quase 20 anos, época em que as leis, ferramentas e tecnologias contra a lavagem de dinheiro eram diferentes das atuais. “Em todos os países onde opera, o Arab Bank está em situação correta com os reguladores do governo e acata as leis antiterrorismo e de lavagem de dinheiro”, disse o banco. Os limites regulatórios dos EUA de 2005 contra o banco foram formalmente suspensos em 2018.
O Standard Chartered disse à BBC, parceira do ICIJ, que “iniciou o fechamento da conta” ligada ao Arab Bank logo após o veredicto do júri. “Esse processo pode levar tempo em alguns casos”, disse o banco, “mas em todos os casos o banco continua cumprindo suas obrigações regulatórias” enquanto fecha as contas.
O Arab Bank observou que “desfruta de um relacionamento de longa data com o Standard Chartered”, que “continua hoje”. O Standard Chartered não processa mais transações em dólares americanos para o Arab Bank, mas ainda fornece outros serviços bancários para a instituição financeira jordaniana, disse o Arab Bank ao ICIJ.
Recompensas e riscos
OJPMorgan pagou 88,3 milhões de dólares em 2011 para resolver as denúncias das autoridades reguladoras de que havia violado as sanções econômicas contra o Irã e outros países sob embargo dos EUA. Funcionários do Tesouro acusaram o banco em 2013 de ter “deficiências sistêmicas” em seus esforços de combate à lavagem de dinheiro, pois o banco “não conseguiu identificar volumes significativos de atividades suspeitas”.
Então, em janeiro de 2014, o JPMorgan pagou 2,6 bilhões de dólares a agências americanas para encerrar as investigações sobre seu papel no esquema fraudulento de pirâmide financeira montado por Bernard Madoff. O banco registrou lucros de mais que o dobro desse valor apenas naquele trimestre. Madoff se declarou culpado e está cumprindo pena de 150 anos em uma prisão federal.
O JPMorgan continuou, após essas ações de coação, a movimentar dinheiro para pessoas envolvidas em supostos crimes financeiros, como mostram os FinCEN Files. Entre elas, Jho Low, financista acusado por autoridades de vários países de ser o mentor do desvio de 4,5 bilhões de dólares de um fundo de desenvolvimento econômico da Malásia, chamado 1Malaysia Development Berhad, ou 1MDB. Ele movimentou pouco mais de 1,2 bilhão de dólares por meio do JPMorgan de 2013 a 2016, segundo os registros.
Low ganhou notoriedade por se divertir com Paris Hilton, Leonardo DiCaprio e outras celebridades. Certa noite, em um clube na Riviera francesa, ele entrou em uma guerra de lances por um lote de champanhe Cristal – vencendo o concurso com uma oferta final de 2 milhões de euros, de acordo com o livro O blefe de um bilhão de dólares, best-seller sobre a fraude do 1MDB. Figura-chave no escândalo do 1MDB, o chamado “roubo do século”, Low foi alvo de um mandado de prisão emitido por Cingapura em abril de 2016. As autoridades dos Estados Unidos, da Malásia e de Cingapura ainda estão tentando capturá-lo.
O JPMorgan também transferiu dinheiro para empresas e pessoas ligadas a escândalos de corrupção na Venezuela que ajudaram a criar uma das piores crises humanitárias do mundo. Um em cada três venezuelanos não está recebendo o suficiente para comer, informou a ONU neste ano, e milhões fugiram do país.
Um dos venezuelanos que receberam ajuda do JPMorgan foi Alejandro “Piojo” Isturiz, um ex-funcionário do governo que foi acusado pelas autoridades norte-americanas de participar de um esquema internacional de lavagem de dinheiro. Os promotores alegam que entre 2011 e 2013 Isturiz e outros solicitaram propinas para fraudar contratos de energia com o governo. O banco movimentou mais de US$ 63 milhões para empresas ligadas a Isturiz e ao esquema de lavagem de dinheiro entre 2012 e 2016, revelam os FinCEN Files.
Isturiz não foi localizado para prestar declarações.
Os registros secretos mostram que o JPMorgan também forneceu serviços bancários à Derwick Associates, empresa de energia que ganhou bilhões de dólares em contratos sem licitação para consertar a deficiente rede elétrica da Venezuela. Uma análise de 2018 feita pela seção venezuelana do grupo sem fins lucrativos Transparência Internacional concluiu que a Derwick Associates falhou em fornecer a capacidade de energia esperada – e cobrou um valor excessivo do governo venezuelano em pelo menos 2,9 bilhões de dólares.
Alejandro Betancourt tinha cerca de 20 anos quando fundou a Derwick com um primo mais moço. Artigos na imprensa e postagens na internet em 2011 levantaram acusações sobre a Derwick. Posteriormente, a empresa entrou com um processo em que alegou ser vítima de uma campanha de difamação que a acusava falsamente de fazer parte de um “grupo criminoso”. O processo foi encerrado em condições não divulgadas.
Os FinCEN Files mostram que a Derwick usou contas no JPMorgan para movimentar pelo menos 2,1 milhões de dólares em 2011 e 2012 e que o banco processou outras transações de valores não divulgados para a Derwick e seus diretores pelo menos até 2013.
Em 2018, o Departamento de Justiça dos EUA acusou um executivo sênior da Derwick, Francisco Convit Guruceaga, de um suposto esquema de suborno e lavagem de dinheiro de 1,2 bilhão de dólares. Betancourt foi citado na queixa criminal como um conspirador não identificado, relatou mais tarde o Miami Herald, parceiro do ICIJ.
Um advogado de Betancourt disse: “Meu cliente nega qualquer irregularidade”. O advogado de Convit não quis comentar.
Em uma declaração geral, o JPMorgan observou que havia reconhecido em 2014 que precisava melhorar seus controles de combate à lavagem de dinheiro e que, desde então, investiu “recursos consideráveis” nesse esforço.
“Hoje, milhares de funcionários e centenas de milhões de dólares são dedicados a apoiar a aplicação da lei e os esforços de segurança nacional”, disse o banco.
O dólar poderoso
Alei americana atribui aos bancos a responsabilidade de evitar a lavagem de dinheiro, embora seus incentivos financeiros sejam totalmente voltados a manter o dinheiro – sujo ou limpo – em movimento. Embora os bancos tenham o poder de interromper uma transação se ela parecer duvidosa, não são necessariamente obrigados a fazê- lo. Eles simplesmente precisam apresentar um relatório de atividades suspeitas à FinCEN. A agência, que tem cerca de 270 funcionários, coleta e analisa mais de 2 milhões de novos relatórios de atividades suspeitas a cada ano de bancos e outras empresas financeiras. Compartilha informações com órgãos judiciais dos Estados Unidos e unidades de inteligência financeira de outros países.
Dentro dos grandes bancos, os sistemas para farejar fluxos de caixa ilícitos dependem de funcionários sobrecarregados e com poucos recursos. Documentos nos FinCEN Files mostram que trabalhadores encarregados da fiscalização em grandes bancos costumam recorrer a pesquisas básicas no Google para tentar descobrir quem está por trás de transferências que envolvem centenas de milhões de dólares. Em consequência, os documentos secretos mostram que os bancos frequentemente apresentam relatórios de atividades suspeitas somente depois que uma transação ou cliente se torna o tema de uma reportagem negativa ou de um inquérito do governo – geralmente depois que o dinheiro desapareceu há muito tempo.
Em entrevistas ao ICIJ e ao BuzzFeed, mais de dez ex-funcionários do HSBC questionaram a eficácia dos programas de combate à lavagem de dinheiro do banco. Alguns disseram que a instituição não lhes deu nada para fazer além de exames superficiais de grandes fluxos de caixa – e que, quando eles solicitaram informações sobre quem estava por trás das transações volumosas, as agências do HSBC fora dos Estados Unidos muitas vezes os ignoraram. “Eles diziam: ‘Claro, entraremos em contato com você’. Mas nunca retornavam”, lembra Alexis Grullon, que monitorou atividades suspeitas internacionais para o HSBC em Nova York de 2012 a 2014.
No Standard Chartered Bank, uma ação movida em dezembro de 2019 em um tribunal federal de Nova York afirma que os funcionários que se opuseram a transações ilegais não foram ignorados – eles foram ameaçados, assediados e demitidos. Julian Knight e Anshuman Chandra, os querelantes, afirmam que foram forçados a deixar cargos de direção depois que o banco soube que eles cooperaram com uma investigação do FBI sobre transferências de dinheiro que o Standard Chartered havia feito para entidades do Irã, Líbia, Sudão e Mianmar, que sofreram sanções dos Estados Unidos.
O Standard Chartered, afirma o processo, envolveu-se em um “esquema altamente sofisticado de lavagem de dinheiro”, alterando os nomes das partes sujeitas a sanções dos Estados Unidos em documentos de transação e criando uma solução tecnológica alternativa que permitiu que transações ilegais passassem pelo Federal Reserve Bank dos Estados Unidos sem ser detectadas.
Chandra, que trabalhou na filial do banco em Dubai de 2011 a 2016, concluiu que a eliminação das sanções ajudou a financiar ataques terroristas “que mataram e feriram soldados que serviam na coalizão liderada pelos EUA, bem como muitos civis inocentes”.
O processo afirma que o esquema permitiu ao banco lucrar com o “alto prêmio” que o Irã e seus agentes estavam dispostos a pagar para converter em dólares os riais iranianos – a moeda do país deprimida pelas sanções. “Você pode executar um programa como este provavelmente por alguns meses sem ser pego, se for um pequeno grupo que o administra dentro do banco”, disse Chandra em entrevista ao BuzzFeed, parceiro do ICIJ. “Mas algo como isso acontecendo num período de anos e chegando a bilhões de dólares, alguém no topo deveria ter feito a pergunta: como estamos ganhando esse dinheiro?”
Chandra e Knight afirmam que o banco reconheceu apenas uma fração de suas violações. Mentiu sobre quando as transações ilegais foram suspensas quando se apresentou e admitiu violações de sanções como parte de seu acordo em 2012 com as autoridades dos EUA. A agência prorrogou o período probatório do banco diversas vezes por vários anos. Então, em 2019, o banco pagou 1,1 bilhão de dólares a mais por violações contínuas de sanções contra o Irã e outros países e concordou em estender por mais dois anos seu acordo de suspensão da acusações.
O Standard Chartered não respondeu às perguntas do ICIJ e de seus parceiros sobre as afirmações dos ex-funcionários. Em documentos judiciais, o Standard Chartered disse que as denúncias são implausíveis e sem mérito.
“Estou morrendo”
Olesia Zhukovska, 21 anos, trabalhava como enfermeira na Ucrânia quando, no final de 2013, eclodiram os protestos no centro de Kiev, a capital. Durante o regime do presidente Viktor Yanukovych, bilhões de dólares estavam sendo contrabandeados para fora do país. Manifestantes protestavam contra a inclinação de seus líderes pela Rússia e a corrupção; diziam que o dinheiro destinado a remédios e equipamentos para salvar vidas estava sendo roubado por pessoas do próprio sistema.
Zhukovska trabalhava em um centro de saúde rural sem aquecimento ou remédios. Em dezembro de 2013, ela aderiu às manifestações contra o governo em Kiev, oferecendo-se para tratar manifestantes espancados pelas forças oficiais. Ela estava separando ataduras em 20 de fevereiro de 2014 quando a bala de um atirador de elite furou seu pescoço. Foi o dia do que ficou conhecido como “massacre dos atiradores de elite“.
Zhukovska sobreviveu, mas dezenas de outras pessoas foram mortas pelos atiradores da polícia. Yanukovych fugiu do país. O mesmo fez seu conselheiro mais próximo, o chefe de gabinete Andriy Klyuyev. Ambos acabaram exilados na Rússia, são procurados pelas autoridades ucranianas e sofrem sanções dos Estados Unidos, que os acusam de desviar fundos públicos e subverter a democracia ucraniana.
Uma investigação posterior descobriu que um grupo de energia solar administrado pela família de Klyuyev, a Activ Solar, se safou com centenas de milhões de dólares que seriam supostamente empréstimos de bancos públicos. Seus ativos foram canalizados para uma rede de empresas offshore controlada por membros da família Klyuyev, de acordo com um relatório da Unidade de Inteligência Financeira da Ucrânia, como parte de uma investigação multinacional do regime Yanukovich.
Em janeiro de 2010, ao mesmo tempo em que Yanukovych vencia o primeiro turno das eleições presidenciais na Ucrânia, alguém incorporou uma nova empresa no registro corporativo do Reino Unido, a Companies House, órgão do governo há muito criticado por conceder legitimidade a empresas com proprietários secretos. A nova empresa, NoviRex Sales LLP, afirmava estar no ramo de “eletrodomésticos”, mas sua documentação sugeria que algo mais estava acontecendo. Seu endereço oficial era uma pequena loja em Cardiff, no País de Gales. Recentemente ocupado por um salão de manicure, o mesmo endereço foi utilizado por centenas de outras empresas cadastradas na Companies House.
Os proprietários listados da NoviRex eram duas outras empresas, ambas constituídas nas Ilhas Virgens Britânicas e também sem proprietários visíveis. As mesmas duas empresas das IVB foram listadas como “proprietárias” de milhares de outras empresas na Companies House – muitas delas registradas na mesma loja em Cardiff. Documentos mostram que as duas empresas proprietárias da NoviRex também possuíam empresas vinculadas em reportagens a suspeitas de fraude em licitações e outros atos de corrupção, muitos deles centrados na Ucrânia.
Os FinCEN Files mostram que a NoviRex logo começou a disparar pagamentos de tamanho e frequência surpreendentes. Para uma empresa de eletrodomésticos, alguns dos motivos dados pela NoviRex para os pagamentos eram estranhos: 200 mil dólares por “lingerie” de uma empresa das Ilhas Virgens Britânicas; 34 mil dólares por “adesivos de teclado” de uma empresa de Hong Kong; quase 400 mil dólares em “botas de cano alto” de outra firma de Hong Kong.
Ainda assim, apesar de a NoviRex movimentar milhões de dólares pelo sistema bancário global, seus demonstrativos financeiros – disponíveis online na Companies House – indicavam que ela estava basicamente moribunda, gastando menos de 2.500 dólares por ano.
A NoviRex enviou todos os seus pagamentos de bancos em centros notórios de lavagem de dinheiro, incluindo o banco ABLV da Letônia. Mas para movimentar dólares internacionalmente a NoviRex precisava de mais que duvidosos bancos letões. Precisava de uma instituição global com acesso a contas na filial de Nova York do Sistema da Reserva Federal (banco central) dos EUA.
A NoviRex precisava do JPMorgan Chase. E o gigante bancário global forneceu ao ABLV uma conta em dólares americanos em Nova York, permitindo ao banco letão, por sua vez, oferecer contas em dólares a seus próprios clientes, incluindo a NoviRex.
No início dos anos 2000, enquanto os bancos enfrentavam novas obrigações nos termos da Lei Patriótica dos EUA, de 2001, para verificar cuidadosamente seus parceiros bancários estrangeiros, o JPMorgan reforçou os negócios fornecendo contas em dólares americanos para bancos estrangeiros. Em 2003, tornou-se o líder global em “bancos correspondentes”, processando pagamentos para clientes de outros 3.500 bancos em todo o mundo, ajudando a elevar o volume total de transações diárias em dólares do JPMorgan a mais de 2 trilhões de dólares para clientes em 46 países.
Em 2004, a FinCEN emitiu um alerta aos bancos globais sobre os bancos do Leste Europeu e seus clientes, empresas de fachada, relatando que 4 bilhões de dólares em transações suspeitas haviam sido relatados desde 1996.
Em 2005, ano em que Jamie Dimon foi nomeado presidente-executivo do JPMorgan, a FinCEN alertou que os bancos letões e sua “considerável” base de clientes não letões “continuam representando riscos significativos de lavagem de dinheiro”. A FinCEN disse: “Muitas das instituições da Letônia não parecem servir à comunidade letã, mas em vez disso atendem a empresas de fachada privadas estrangeiras suspeitas”. A FinCEN disse que os 23 bancos da Letônia mantinham cerca de US$ 5 bilhões em depósitos de “não residentes”, principalmente da Rússia e de outras partes da antiga União Soviética.
Ao permitir uma transferência, um banco correspondente (em um caso simples) deduz o valor da conta do banco remetente e credita a conta do banco recebedor, cobrando uma taxa. Ao conceder a bancos estrangeiros acesso a dólares americanos, o JPMorgan estava abrindo as portas do sistema para seus clientes, incluindo empresas de fachada anônimas como a NoviRex.
Em troca desse poder de controle e das taxas que ele acarreta, a lei dos EUA exige que o JPMorgan e outros bancos como ele monitorem cada transação compensada segundo instruções de bancos estrangeiros – e escolham os bancos estrangeiros com os quais faz negócios.
Uma investigação posterior descobriria que 90% dos clientes do ABLV eram considerados de “alto risco” pelo próprio ABLV, principalmente porque eram empresas de fachada registradas em jurisdições sigilosas.
Algumas dessas estavam movimentando bilhões de dólares, posteriormente rastreados até a corrupção na Ucrânia. As autoridades americanas concluíram que o ABLV institucionalizou a lavagem de dinheiro como “um pilar das práticas de negócios do banco”, propagou agressivamente esquemas de lavagem de dinheiro para clientes e produziu documentação fraudulenta de “alta qualidade” para apoiar esses esquemas – ao mesmo tempo subornando funcionários letões para proteger o banco de ameaças ao seu modelo de negócios.
Dois especialistas em crimes financeiros que analisaram as transações da NoviRex a pedido do ICIJ disseram que os sinais de lavagem de dinheiro eram claros. A NoviRex se comportou como nenhuma empresa legítima jamais faria.
“Se eu estivesse no JPMorgan e visse isso, pensaria: ‘Isso é horrível'”, disse um dos especialistas, o ex-detetive da polícia do Reino Unido Martin Woods. “Que empresa normal compra computadores, lingerie e baldes?”
No início de 2014, enquanto os cidadãos enchiam as ruas para protestar contra Yanukovych, Klyuyev e outros líderes do governo, a NoviRex movimentou mais de 188 milhões de dólares em transações por meio do JPMorgan.
No final de 2014, o JP Morgan havia encerrado contas de correspondentes de cerca de 500 bancos estrangeiros, incluindo, de acordo com um representante de um grupo comercial bancário da Letônia, bancos desse país. Em um relatório de dezembro de 2014 aos acionistas, o banco reconheceu “erros cometidos e lições aprendidas com nossas experiências em bancos correspondentes estrangeiros”. “Toda empresa comete erros (e nós cometemos vários), mas a marca registrada de uma grande empresa é o que ela faz em resposta”, escreveu Dimon, o CEO, em uma carta de apresentação. Ele não citou Ucrânia, Letônia, ABLV ou NoviRex.
Ele tampouco mencionou que, pouco antes da retirada, as autoridades americanas emitiram uma avaliação contundente das salvaguardas contra a lavagem de dinheiro do JPMorgan e ordenaram que o banco revisasse suas práticas bancárias correspondentes.
Àquela altura, o tesouro da Ucrânia havia sido saqueado e as taxas do JPMorgan, embolsadas. O grupo de serviços de tesouraria do JPMorgan, a matriz de seu negócio como banco correspondente, relatou uma receita de 4,13 bilhões de dólares em 2013. A remuneração total de Dimon em 2014 foi de 20 milhões de dólares.
A história da NoviRex poderia ter terminado aí.
Mas então, em novembro de 2016, Donald Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos. Logo depois, o Departamento de Justiça dos EUA nomeou Robert Mueller como procurador especial para investigar a interferência da Rússia nas eleições americanas e outras questões relacionadas a Trump e seus parceiros.
Um destes foi Paul Manafort, ex-diretor da campanha presidencial de Trump. Manafort também atuou como consultor e lobista do ex-presidente da Ucrânia, Yanukovych. Os FinCEN Files mostram que a equipe do escritório de compliance do JPMorgan em Columbus, Ohio, ficou preocupada com relatos da imprensa da Ucrânia sobre pagamentos secretos a empresas de fachada controladas por Manafort, disfarçados de pagamentos de equipamentos de informática.
O banco observou que a NoviRex tinha feito esses pagamentos. Conforme o escrutínio das negociações estrangeiras de Manafort se intensificava, mostram os FinCEN Files, o JPMorgan apresentou mais relatórios de atividades suspeitas detalhando – anos após o fato – milhões de dólares em pagamentos ao consultor, seus associados e suas empresas.
No julgamento de Manafort em 2018, o nome da NoviRex veio à tona como uma das várias empresas de fachada usadas por oligarcas ucranianos para enviar pagamentos por trabalho de lobby político às empresas de fachada do próprio Manafort. Ao todo, a NoviRex pagou secretamente US$ 4.190.111 para Manafort em nome do Partido das Regiões, de Yanukovych.
Manafort acabou sendo condenado por fraude bancária, falha em relatar uma conta bancária estrangeira e outros crimes. Em um dos julgamentos de Manafort, seu ex-parceiro de negócios, Rick Gates, finalmente revelou a pessoa por trás da NoviRex : Klyuyev, o braço-direito de Yanukovych.
A ajuda que o JPMorgan deu à empresa de Klyuyev não foi citada durante o julgamento. Ao todo, segundo mostram os FinCEN Files, o JPMorgan efetuou 706 transações para a NoviRex, totalizando pelo menos US$ 230 milhões, de 2010 a 2015. A maior parte desse montante foi para empresas constituídas em paraísos fiscais secretos.
Em 2018, a FinCEN declarou o ABLV uma “grande preocupação sobre lavagem de dinheiro” que movimentou “bilhões de dólares” para magnatas ucranianos acusados de saquear ativos do Estado. A FinCEN proibiu os bancos dos Estados Unidos de fornecerem ao ABLV acesso às contas de correspondentes no país – uma etapa conhecida nos círculos financeiros como “pena de morte”. Ele está agora em liquidação e alguns de seus banqueiros foram detidos pelas autoridades letãs.
Em resposta a perguntas do ICIJ, uma porta-voz da ABLV disse que durante a liquidação um auditor está realizando uma revisão dos ex-clientes do banco e suas transações. Ela acrescentou: “Não podemos comentar publicamente sobre nenhuma pessoa física ou jurídica específica”.
“Truques e astúcia”
Odinheiro fluía da Califórnia, Peru, Bolívia, China e outros lugares onde famílias de baixa renda estavam dispostas a investir suas modestas economias – 2 mil, 5 mil, 10 mil dólares – em um fundo de investimento que mudasse suas vidas, como elas esperavam.
Com um clique num teclado, o dinheiro dos investidores foi canalizado pelas operações em Nova York do gigante bancário global HSBC. Em seguida, ele atravessou o mundo para contas nos amplos escritórios do HSBC em Hong Kong.
Como outros envolvidos no que ficou conhecido como esquema pirâmide do Mercado de Capitais Mundial (WCM na sigla em inglês), Reynaldo Pacheco, um pai de 44 anos de Santa Rosa, na Califórnia, divulgou o negócio para parentes e amigos. Quando a pirâmide começou a desmoronar, um dos investidores azarados que ele encorajou a aplicar dinheiro no negócio decidiu matá-lo.
Três homens o sequestraram e bateram em sua cabeça com pedras, deixando-o morto no leito de um riacho, com as mãos amarradas nas costas com fita adesiva e um cadarço de sapato.
Milhares de vítimas perderam cerca de 80 milhões de dólares no esquema.
Os FinCEN Files mostram que o HSBC continuou canalizando dinheiro para o fundo de investimento WCM em um momento em que autoridades de três países investigavam a empresa e os próprios fiscais internos do banco sabiam que era um suposto esquema de pirâmide. Mais de 30 milhões de dólares ligados ao WCM fluíram pelo banco em 2013 e 2014 – em um momento em que o HSBC estava em probação como parte de seu acordo com as autoridades americanas.
Mesmo depois que os órgãos reguladores dos EUA conseguiram uma ordem de restrição que congelou os ativos da empresa, a conta do WCM no HSBC em Hong Kong permaneceu ativa. De acordo com documentos judiciais apresentados posteriormente por advogados que buscavam indenização para as vítimas do esquema, o WCM drenou mais de 7 milhões de dólares da conta durante a semana seguinte, reduzindo seu saldo a zero.
A WCM não foi a única empresa ligada a atividades criminosas que movimentou dinheiro por meio do HSBC durante o período probatório de cinco anos incluído em seu acordo de suspensão da ação, de 1,9 bilhão de dólares. O escritório do banco em Hong Kong, por exemplo, processou mais de 900 milhões de dólares em transações envolvendo empresas de fachada vinculadas em registros judiciais e reportagens da mídia a supostas redes criminosas, concluiu uma análise do ICIJ.
Os promotores americanos e outras autoridades elogiaram os acordos de suspensão das acusações e outros tipos de acordos sobre lavagem de dinheiro como ferramentas eficazes para garantir que os grandes bancos sigam a lei e parem de servir aos criminosos. Quando as autoridades anunciaram o acordo de suspensão da acusação penal do Standard Chartered em 2012, uma autoridade do FBI declarou: “Nova York é uma capital financeira mundial e um centro bancário internacional, e você deve seguir as regras para realizar negócios aqui”.
A investigação do ICIJ mostra que cinco dos bancos que aparecem com mais frequência nos FinCEN Files – HSBC, JPMorgan, Deutsche Bank, Standard Chartered e Bank of New York Mellon – continuaram movimentando dinheiro para pessoas e empresas suspeitas depois de acordos firmados com a promotoria, e outras grandes medidas de repressão à lavagem de dinheiro.
Quatro desses bancos assinaram acordos de suspensão das acusações nos últimos 15 anos, comprometendo-se a tomar medidas relacionadas à lavagem de dinheiro. O único dos cinco bancos que fez um acordo diferente foi o Deutsche Bank: um acordo civil de 258 milhões de dólares em 2015, em resposta a uma investigação pelos órgãos reguladores dos Estados Unidos e de Nova York. Eles descobriram que o banco tinha movimentado bilhões de dólares em nome de instituições financeiras iranianas, líbias, sírias, birmanesas e sudanesas e outras entidades sancionadas pelos EUA.
O Bank of New York Mellon foi um dos primeiros grandes bancos a pagar uma grande penalidade às autoridades dos Estados Unidos por falhas no combate à lavagem de dinheiro. Em 2005, dois anos antes de sua fusão com o Mellon Financial, o Bank of New York pagou 38 milhões de dólares e assinou um acordo de suspensão da acusação depois que uma investigação federal concluiu que havia permitido que 7 bilhões de dólares em dinheiro russo ilícito passassem por suas contas.
Mas mesmo tendo evitado grandes ações legais na última década ou mais, o Bank of New York Mellon continuou fazendo negócios com figuras suspeitas, mostram os FinCEN Files. Os registros vazados revelam, por exemplo, que o Bank of New York Mellon movimentou mais de 1,3 bilhão de dólares entre 1997 e 2016 em transações vinculadas a Oleg Deripaska, bilionário russo e antigo aliado do presidente Vladimir Putin.
Desde 2008, Deripaska tem sido alvo de denúncias em reportagens na mídia que o conectam ao crime organizado. Quando as autoridades norte-americanas anunciaram sanções contra ele em 2018, disseram que ele já havia sido acusado de ameaçar a vida de rivais corporativos, subornar um funcionário do governo russo e ordenar o assassinato de um empresário.
Deripaska nega ter lavado fundos ou cometido crimes financeiros. Em 2019, o governo Trump suspendeu sanções financeiras a três companhias ligadas a ele. As sanções contra o próprio Deripaska permanecem, e ele está processando os Estados Unidos na tentativa de revertê-las.
“O BNY Mellon leva a sério sua função de proteger a integridade do sistema financeiro global, incluindo a apresentação de Relatórios de Atividades Suspeitas”, disse o banco em um comunicado. “Como membro de confiança da comunidade bancária internacional, cumprimos integralmente todas as leis e regulamentos aplicáveis e ajudamos as autoridades no importante trabalho que realizam.”
Por que as penalidades financeiras não mudaram o comportamento dos bancos?
John Cassara, especialista em crimes financeiros que trabalhou como agente especial designado para a FinCEN de 1996 a 2002, disse que o volume das penalidades pagas pelo HSBC e outros grandes bancos pode parecer grande, mas é uma pequena fração de seus lucros. E o dinheiro não é pago pelos banqueiros que deveriam ser responsabilizados, disse ele – é pago pelos acionistas.
James S. Henry, economista, advogado e escritor de Nova York que investiga o mundo do dinheiro sujo desde os anos 1970, diz que as ações de fiscalização dos Estados Unidos nas últimas duas décadas tiveram algum impacto no comportamento dos grandes bancos – pelo menos em comparação com qualquer época anterior, quando operavam quase sem restrições. Mas ele disse que será necessária mais “vontade da promotoria e colaboração internacional” para realmente mudar a relação entre os bancos e os fluxos de caixa ilícitos. Isso significa responsabilizar os bancos como instituições – e também os principais banqueiros. “Temos que colocar em risco alguns executivos graduados que estão no comando dessas coisas”, disse Henry. “E isso significa multas e/ou prisão.”
Tanque de tubarões
Parecia algo saído de um romance de espionagem: os funcionários do Deutsche Bank instruíram clientes do Irã e de outros locais críticos a incluir em suas mensagens de pagamento palavras-código que acionariam um tratamento especial. Um executivo pediu aos trabalhadores que empregassem “truques e astúcia” para evitar serem detectados pelas autoridades americanas.
Esses truques do ofício foram expostos por autoridades bancárias de Nova York em novembro de 2015. O Deutsche Bank, disseram autoridades estaduais, foi pego transferindo quase 11 bilhões de dólares entre 1999 e 2006 em nome do Irã, da Síria e de outros países que sofriam sanções dos Estados Unidos. Após um acordo de 258 milhões de dólares com o Estado e o Federal Reserve, o Deutsche Bank concordou em reformar suas práticas e demitir funcionários envolvidos na operação. Em comunicado, o Deutsche Bank pintou o acordo como uma notícia velha: “Essa conduta cessou há vários anos, e desde então encerramos todos os negócios com partes dos países envolvidos”.
Um mês depois que o acordo foi anunciado, mostram os FinCEN Files, o Deutsche Bank trabalhava nos bastidores para movimentar dinheiro para Ihor Kolomoisky – bilionário ucraniano que, como alegaram mais tarde promotores dos Estados Unidos, estava envolvido em um enorme esquema de lavagem de dinheiro que canalizava fundos para o interior americano.
Promotores americanos dizem que Kolomoisky é conhecido pela “crueldade e até violência” nas negociações comerciais, uma vez que contratou “capangas armados” para invadir os escritórios de uma empresa petrolífera estatal. Em um artigo no Wall Street Journal, um associado lembrou que se encontrou com Kolomoisky e viu o oligarca apertar um botão de controle remoto que jogou carne de lagostim para tubarões famintos num aquário em seu escritório.
Os arquivos vazados mostram que o Deutsche Bank movimentou 240 milhões de dólares de dezembro de 2015 a maio de 2016 para uma empresa de fachada registrada nas Ilhas Virgens Britânicas que, segundo registros na Justiça dos EUA, era controlada por Kolomoisky e um sócio.
Um processo aberto no ano passado em um tribunal estadual em Delaware alega que Kolomoisky usou a empresa de fachada Claresholm Marketing Ltd. para ajudar a realizar uma “série de esquemas claramente fraudulentos” via PrivatBank, instituição ucraniana controlada por Kolomoisky e um parceiro até o final de 2016. Os novos proprietários do banco afirmam no processo que Kolomoisky e seus associados desviaram bilhões de dólares do banco por meio de empréstimos falsos e depois lavaram o dinheiro por meio de investimentos nos Estados Unidos
Em julho passado, as autoridades bancárias de Nova York chegaram a outro acordo sobre lavagem de dinheiro com o Deutsche Bank. Desta vez, o banco concordou em pagar 150 milhões de reais em penalidades relacionadas a suas negociações com o predador sexual condenado Jeffrey Epstein e com dois bancos não americanos envolvidos em escândalos de lavagem de dinheiro. Um mês depois, promotores dos EUA entraram com queixas de confisco civil em um tribunal federal da Flórida, que incluíam alegações de roubo e lavagem de dinheiro contra Kolomoisky, semelhantes às denúncias no processo de Delaware.
Os promotores dizem que grande parte do dinheiro supostamente roubado do PrivatBank entre 2008 e 2016 acabou em investimentos nos EUA – incluindo imóveis comerciais no Texas e Ohio, fábricas de aço em Kentucky, Virgínia Ocidental e Michigan e uma fábrica de celulares em Illinois.
Kolomoisky não respondeu às perguntas do ICIJ. Um advogado dele disse em agosto: “O senhor Kolomoisky nega enfaticamente as alegações nas queixas apresentadas pelo Departamento de Justiça”.
No caso do tribunal estadual em Delaware, advogados das empresas de Kolomoisky disseram que o processo não mostra violações de estatutos de extorsão ou outras leis. Kolomoisky também entrou com uma ação de difamação contra o PrivatBank na Ucrânia, alegando que o banco o acusou falsamente de fraude e outros delitos.
O Deutsche Bank não quis responder a perguntas sobre suas negociações com Kolomoisky, dizendo que está legalmente proibido de comentar sobre clientes ou transações. O banco disse ao ICIJ que reconheceu “fraquezas do passado” e “aprendeu com nossos erros”. E também que “abordou sistematicamente” essas questões. “Somos um banco diferente hoje.”
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Colaboradores:
Michael Hudson, Dean Starkman, Simon Bowers, Emilia Diaz-Struck, Tanya Kozyreva, Will Fitzgibbon, Sasha Chavkin, Spencer Woodman, Ben Hallman, Fergus Shiel, Richard H.P. Sia, Tom Stites, Joe Hillhouse, Delphine Reuter, Kyra Gurney, Agustin Armendariz, Margot Williams, Karrie Kehoe, Amy Wilson-Chapman, Hamish Boland Leme, Antonio Cucho, Gerard Ryle, Mago Torres, Miriam Pensack, Jelena Cosic, Miguel Fiandor, Michael Sallah.
Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo, o ICIJ, com sede em Washington, DC
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